O (novo) regime da divisão (artificiosa) de contratos em lotes separados, constante do código dos contratos públicos

AutorJoao Diogo Stoffel
CargoAdvogado do Departamento de Direito Público da Uría Menéndez - Proença de Carvalho (Lisboa).
Páginas48-56

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1. Introdução

Considere-se a seguinte situação: uma empresa pública, sujeita ao âmbito de aplicação do Código dos Contratos Públicos1 (doravante, «CCP»), decide lançar um programa de modernização de vários edifícios públicos localizados na área metropolitana de Lisboa e, para tal, decide contratar, em simultâneo, diversos empreiteiros através de distintos procedimentos de ajuste directo2. Será válida a decisão de dividir este programa em vários contratos, de valor reduzido, um por edifício ou um por tipologia de trabalho, e, consequentemente, será válida a decisão de seleccionar vários empreiteiros através de procedimentos de ajuste directo? No caso de o valor total do referido programa de modernização de edifícios superar o limiar de aplicação das directivas da União Europeia sobre contratação pública, será ainda válida a decisão de escolha de um procedimento pré-contratual não concorrencial sem publicação de anúncio no Jornal Oficial da União Europeia (doravante, «JOUE»), em resultado da enunciada divisão?

Como é possível observar pela situação acima apresentada, o tema da divisão (artificiosa) de contratos em vários lotes, hoje tratado no ordenamento jurídico português no artigo 22.º (Divisão em lotes) do CCP, levanta múltiplas interrogações sistemáticas, particularmente complexas quando confrontamos o enunciado artigo com as regras de escolha do procedimento pré-contratual em função do valor do contrato.

Não tendo sido substancialmente estudado pela doutrina portuguesa nem tão pouco abordado com relevância pelos nossos tribunais, e considerando, por outro lado, que o artigo 22.º do CCP é uma disposição de interpretação especialmente complexa que carece de um esforço de concretização, deci-

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dimos reflectir sobre o enunciado tema da divisão de contratos em lotes separados, procurando dar resposta às várias questões que se colocam na inter-pretação do referido artigo, com especial enfoque na valoração e concretização de conceitos jurídicos indeterminados aí previstos e na sua articulação com o regime da escolha do procedimento précontratual em função do valor do contrato.

2. Evolução histórica e fundamentos da divisão em lotes

A problemática da divisão em lotes, no Direito da União Europeia, remonta ao n.º 2 do artigo 7.º da Directiva 71/305/CEE do Conselho, de 26 de Julho de 19713, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas. A referida disposição, de natureza proibitiva, pretendia acautelar que, por meio de uma divisão artificiosa de um projecto de empreitada em múltiplos lotes, as entidades adjudicantes se furtassem à aplicação das regras previstas na Directiva -em especial, a obrigatoriedade de publicidade internacional dos contratos-, já que esta apenas se aplicava a contratos acima de um determinado valor4.

Posteriormente, a Directiva 77/62/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1976, relativa à coordenação dos processos de celebração de contratos de fornecimento de direito público, acrescentou à mera proibição de divisão artificiosa de contratos em lotes separados uma disposição de concretização objectiva (o n.º 3 do artigo 5.º5) que previa a obrigatoriedade de consideração de todos os lotes -num projecto de aquisição de fornecimentos homogéneos- para efeitos de cálculo do valor do fornecimento. Com esta disposição, o legislador comunitário veio não só tornar mais claro o regime então em vigor como também reconhecer que a divisão de contratos em lotes separados -desde que cumpridas as regras de publicidade, quando aplicáveis, e, nessa medida, garantido o convite à concorrência de mercado-, constitui uma legítima opção das entidades adjudicantes, já que a sua utilização pode ter por fundamento a própria promoção da concorrência, o favorecimento de pequenas e médias empresas, o favorecimento de empresas regionais ou locais6 ou a própria racionalidade ou exequibilidade de um projecto7 e 8.

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Por fim, foi com a Directiva 89/440/CEE do Conselho, de 18 de Junho -que procedeu à alteração da referida Directiva 71/305/CEE do Conselho, de 26 de Julho de 1971-, que se delineou a arquitectura do regime da divisão em lotes que perdurou até aos dias de hoje -constando ainda das Directivas 2004/17/CE e 2004/18/CE, ambas do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março (doravante, «Directiva 2004/17/CE» e «Directiva 2004/18/ CE»), respectivamente, nos artigos 17.º e 9.º.

A Directiva 89/440/CEE, revogando o referido artigo 7.º da Directiva 71/305/CEE e aditando um artigo 4.ºA9, veio não só estabelecer a proibição da divisão fraudulenta e a obrigatoriedade da consideração de todos os lotes para efeito de cálculo do valor da empreitada, nos termos das referidas Directivas 71/305/CEE e 77/62/CEE, como, também, introduzir um elemento de flexibilização. As entidades adjudicantes passaram assim a estar dispensadas de aplicar a Directiva relativamente a vinte por cento do total dos lotes respeitantes ao mesmo projecto de empreitada, desde que o valor de cada lote calculado sem IVA, dentro dos referidos vinte por cento, fosse inferior a um milhão de ecus10.

Poderá então concluir-se que, a nível da União Europeia, o regime jurídico da divisão em lotes resulta, do ponto de vista prático, da necessidade de garantir a aplicabilidade das próprias directivas sobre contratação pública. Já do ponto de vista dos princípios, tal regime, ao assegurar a publicidade internacional no JOUE para contratos acima de determinado valor, procura salvaguardar as liberdades de prestação de serviços e estabelecimento e, simultaneamente, o princípio da não discriminação entre proponentes de diferentes Estados-Membros. Conclui-se também que, consciente da limitação provocada aos Estados-Membros com esta opção, o legislador comunitário permitiu alguma flexibilidade dentro do instituto da divisão em lotes.

Já no direito nacional, não diferindo muito quanto aos princípios que visa salvaguardar, a norma da divisão em lotes surgiu, do ponto de vista prático, associada aos regimes da escolha de procedimentos contratuais em função do critério do valor do contrato11 e ao regime de autorização de despesa pública12.

No que diz respeito à transposição para a ordem jurídica portuguesa do supra mencionado regime da União Europeia de divisão em lotes, esta ocorreu, primeiramente, com o Decreto-lei n.º 396/90, de 11 de Dezembro, respeitante às empreitadas de obras públicas, e consistiu numa mera transposição literal do referido artigo 4.º-A da Directiva 71/305/ CEE do Conselho, de 26 de Julho de 1971. Já quanto aos fornecimentos e aquisições de serviços, a transposição só veio a ocorrer com o artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 55/95, de 29 de Março.

Em síntese, poderíamos dizer que o regime da divisão em lotes, hoje disposto no artigo 22.º do CCP, resulta da transposição de normas das Directivas 2004/17/CE e 2004/18/CE e do esforço de codificação do legislador português, nomeadamente, na unificação dos vários regimes de empreitada de obras públicas, de fornecimentos e de prestação de serviços, e visa, por um lado, assegurar a aplicabili-dade das directivas da União Europeia, promovendo a publicidade internacional dos contratos e, nessa medida, a transparência e as liberdades de prestação de serviços e de estabelecimento no mercado único de compras públicas, e, por outro lado,

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assegurar o cumprimento do princípio da unidade da despesa pública e das regras internas da escolha do procedimento em função do valor do contrato.

3. Divisão em lotes no CCP
3.1. Do princípio subjacente à norma da divisão em lotes

O princípio subjacente ao artigo 22.º do CCP determina que na presença de vários lotes susceptíveis de constituírem objecto de um único contrato deverá aplicar-se a cada um o procedimento que -pelas regras da escolha do procedimento em função do valor- resultar da soma do valor de todos os lotes13. Assim, cabe, antes de mais, compreender em que circunstâncias vários lotes são susceptíveis de constituírem objecto de um único contrato para podermos então determinar a amplitude do somatório que nos levará à escolha do procedimento legalmente possível face à pretensão contratual da entidade adjudicante.

Dada a complexidade que envolve a interpretação do artigo 22.º do CCP, tendo por base uma interpretação conforme14 às Directivas 2004/17/CE e 2004/18/CE e a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante, «TJUE»), procuraremos de seguida, com a objectividade possível, valorar e concretizar os conceitos indeterminados constantes do referido artigo15.

3.2. Dos elementos interpretativos objectivos do n 1 do artigo 22º. do CCP

Como ponto prévio, refira-se que estão excluídos do escopo do artigo 22.º do CCP todos os lotes que sejam susceptíveis de ser adjudicados no âmbito de um procedimento escolhido em função de critérios materiais. Atendendo ao que acima se referiu quanto aos fundamentos do regime da divisão em lotes, a ratio do artigo 22.º do CCP fica esvaziada se na base da escolha do procedimento estiver um critério material. De resto, é já a solução que resulta do disposto no próprio artigo 18.º do CCP ao sobrepor os critérios materiais de escolha de procedimentos pré-contratuais ao critério do valor do contrato.

Analisemos então os dois conceitos vagos e indeterminados fundamentais deixados pelo legislador interno no artigo 22.º do CCP16:

(i) «prestações do mesmo tipo»; e

(ii) «susceptíveis de serem objecto de um único contrato».

Desde logo, cabe concretizar o...

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