Os espaços territoriais protegidos e a Constituição Federal1
Autor | Paulo Affonso Leme Machado<FN>2</FN> |
Diz a Constituição Federal:
"Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao poder público:
III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justificam sua proteção." (art. 225, §1º)
A Constituição inova profundamente na proteção dos espaços territoriais como, por exemplo, unidades de conservação, áreas de preservação permanente e reservas legais florestais. Poderão essas áreas ser criadas por lei, decreto, portaria ou resolução. A tutela constitucional não está limitada a nomes ou regimes jurídicos de cada espaço territorial, pois qualquer espaço entra na órbita do art. 225, § 1º, III, desde que se reconheça que ele deva ser especialmente protegido.
O inciso em análise é auto-aplicável, não demandando legislação suplementar para ser implementado, sublinhando-se que nele não está inserida a expressão "na forma da lei".
O texto constitucional preceitua que o poder público deve definir em todas as unidades da Federação espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos. Definir3 os espaços territoriais compreende localizá-los. Aí começa a proteção constitucional, não se esperando que se implantem quaisquer acessórios, como cercas ou casas de guardas.
O Professor José Afonso da Silva - um de nossos maiores constitucionalistas - ensina que "nem as florestas
e demais formas de vegetação de preservação permanente, ex vi legis, indicadas no art 2º, nem as do patrimônio indígena a elas equiparadas, mencionadas no § 2º do art. 3º, poderão ser suprimidas, nem total, nem parcialmente.
Mas não é apenas a técnica legislativa que nos leva a essa conclusão. A ratio legis, especialmente, é que orienta tal interpretação, pois seria uma inutilidade a lei reconhecer florestas de preservação permanente, só por efeito dela,
ao mesmo tempo em que se admitisse a possibilidade de sua supressão total ou parcial, ainda que em condições restritas"4.
Não se pode ter a ilusão de que esses espaços tornaram-se perenes pelo sistema constitucional ora introduzido,
mas, sendo a alteração e a supressão somente através de lei, abrem-se tempo e oportunidade para que os interesses pró meio ambiente façam-se presentes, perante os parlamentares. Como se sabe o procedimento de elaboração dos atos do Poder Executivo - decretos, portarias e resoluções - não prevê um debate público e um lapso de tempo antes
da sua edição. Não se quer sobrecarregar o Poder Legislativo, mas, sem uma intensa participação democrática,
as áreas protegidas serão mutiladas e deturpadas ao sabor do imediatismo e de soluções demagógicas, às vezes intituladas como de interesse social ou de interesse público.
A Constituição Federal, sob o aspecto aqui tratado, já foi objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal, por duas vezes. No primeiro caso5, foi deferida a medida cautelar, suspendendo decreto do Governador do Estado de São Paulo. O decreto paulista6possibilitava a modificação de parque estadual somente com Estudo Prévio de Impacto Ambiental, sem que houvesse lei autorizando a modificação. Oportuno citar-se o voto do relator Min. Moreira Alves: "Tendo em vista
a possibilidade de danos ecológicos e de difícil reparação e, por vezes, de reparação impossível, está presente no caso
o requisito do periculum in mora, que, aliado à relevância jurídica da questão, justificam a concessão da liminar".
O segundo caso, trata da ADIN promovida pelo Procurador Geral da República, visando a declaração da inconstitucionalidade do art. 1º da Medida Provisória n. 2166-67/2001, na parte em que alterou o art. 4º, caput, e §§ 1º a 7º da Lei 4.771/1965 (Código Florestal)7. Como questão central do pedido foi alegada a impossibilidade de a lei delegar ao administrador ou a ato normativo infra-legal o poder de supressão ou de alteração das áreas de preservação permanente, "permitidas somente através de lei" (225, §1º, III da Constituição). Liminarmente o Presidente do STF concedeu a medida, que não foi referendada pelo plenário, por voto da maioria. Consta da ementa do julgado que somente a alteração e a supressão do regime jurídico pertinente aos espaços territoriais especialmente protegidos qualificam-se como matérias sujeitas ao princípio da reserva legal.
O posicionamento da maioria dos juízes do STF, de que somente a mudança do regime jurídico é que deve ser feita mediante lei, diminui o alcance da proteção dos espaços territoriais a serem protegidos. O Poder Executivo da União, dos Estados e dos Municípios passa a ter o controle, praticamente exclusivo, da vida e da morte dos parques, reservas biológicas e áreas de preservação permanente.
O que foi escrito e pensado pelos Constituintes é diferente do que foi decidido pelo STF "data maxima venia". Acentue-se que a Constituição, ao querer que o Poder Legislativo participe ativamente do controle dos espaços ambientais importantes, continuou em sua linha de harmonia desse poder com os outros poderes constituídos.
Estão previstos na Constituição Federal, outros casos de controle de atividades mediante lei, como: "as usinas com reator nuclear deverão ter sua localização definidas em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas" (art. 225, § 6º); "aprovar iniciativas do Poder Executivo referentes a atividades nucleares", "autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de recursos minerais" e "aprovar, previamente, a alienação ou concessão de terras públicas com área superior a dois mil e quinhentos hectares" (art. 49).
Não há, também, nesses casos nenhuma inversão constitucional de competências. O que há é o compartilhamento
de funções visando construir uma sociedade livre, justa e solidária e promover o bem de todos, conforme o art. 3º
da Constituição Federal. A independência dos Poderes, prevista no art. 2º da Carta Maior, não significa ausência
de cooperação ou de entendimento, isto é de harmonia, nas ações compartilhadas. Os Poderes Legislativo, Executivo
e Judiciário não são fechados ou estanques e, por isso, tanto o Executivo submete a nomeação de chefes de missões diplomáticas ou de diretores do Banco Central à prévia concordância do Senado Federal, como o Judiciário depende
da aprovação prévia do Senado Federal para os integrantes dos tribunais superiores. O múltiplo controle de ações potencialmente danosas ao meio ambiente mostrará a prática de maior transparência e do exercício do direito
à participação na busca de proteção dos bens ambientais indispensáveis.
Razoável e constitucional que o Ministério do Meio Ambiente, através do IBAMA, os órgãos ambientais estaduais
e municipais tenham o desprendimento de co-participar do procedimento de autorização de atividades em APPs com
o Congresso Nacional, não querendo agir com exclusividade nesse campo. O Poder Executivo, nas suas três esferas, preparará o posicionamento do Legislativo ao fazer elaborar o estudo prévio de impacto ambiental. A presença
do Legislativo na gestão da APP deve visar uma maior uniformidade das decisões, fazendo com que a norma geral federal (art. 24, § 1º CF), inserida no Código Florestal (art. 2º) seja continuamente respeitada.
A redação do art. 225, § 1º, III da Constituição Brasileira foi fiel à Convenção para a proteção da flora, da fauna e das belezas panorâmicas naturais dos países da América, assinada e ratificada pelo Brasil8, que diz: "Os Governos contratantes concordam que os limites dos parques nacionais não serão modificados e que nenhuma de suas partes será desafetada sem a intervenção da autoridade legislativa". (art. 3º). Não se pode deixar de apontar que essa Convenção não foi levada em conta na ADIn 3540/2005.
Além da Convenção de Washington/1940, a Convenção Africana sobre a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais/19689 e a Convenção Africana sobre Recursos Naturais, Meio Ambiente e Desenvolvimento/200310 preconizam a prévia autorização legislativa quando se pretenda alterar espaços territoriais protegidos.
Sem as florestas nas bordas dos cursos de água e sem que as nascentes tenham um envoltório verde secarão
os nossos rios. Sem florestas nas encostas das montanhas, haverá desmoronamentos, povoados ou bairros serão destruídos e as pessoas morrerão. O que é óbvio precisa ser dito - sem água e sem solo adequados não se tem desenvolvimento econômico. O Arquipélago de Cabo Verde é um triste exemplo da carência de águas causada pelo desmatamento de áreas de preservação permanente11.
No texto do voto do ilustre Ministro Relator da ADIN (Medida Liminar) 3540/ 2005- Juiz por quem tenho imenso apreço, menciona-se que algumas obras de interesse econômico estariam com seu licenciamento ambiental retardado em razão da espera da solução do problema exposto. Como exemplo, foi citada a implantação do gasoduto Urucu-Porto Velho.
O controle legislativo dos espaços ambientais importantes, como as áreas de preservação permanente, não visa impedir as atividades econômicas. Mas, neste caso, põe-se à prova a aplicação ou não das funções social e ambiental da propriedade, previstas no art. 170, 182 e 186 da Constituição Federal. A ponderação de interesses, no caso em tela, aponta que o interesse ambiental não pode ser menosprezado.
Somente poucos espaços territoriais é que estão submetidos ao regime do art. 225, § 1º, III da Constituição Federal. Vale dizer que a maioria dos espaços territoriais do Brasil não necessita de um controle mais apurado ou mais intenso.
A solicitação de um pedido de autorização legislativa não irá paralisar o desenvolvimento econômico do país.
Não se nega que haverá uma espera maior para o deferimento ou indeferimento de pretendidas atividades em áreas especialmente protegidas. Essa demora, contudo, é necessária para uma maior reflexão e a busca de soluções viáveis do ponto de vista ecológico e econômico, que devem estar contidas no planejamento e no estudo prévio de impacto ambiental. Destaque-se que a pressa ou a precipitação no licenciamento de atividades em áreas de preservação permanente ou de outras áreas especialmente protegidas tem causado um desenvolvimento não sustentado.
A utilização dessas unidades de conservação e/ou áreas de proteção ambiental só poderá ser feita de modo que não comprometa a totalidade dos atributos, que justificam a proteção desses espaços. A Constituição foi explícita ao vedar toda forma de utilização que fira qualquer atributo do espaço territorial protegido. E vemos que foi necessária a previsão constitucional, pois recentemente tentou-se transformar uma via interna de comunicação do Parque Nacional de Iguaçu em estrada de rodagem, tendo a tentativa - apoiada por forças poderosas - sido obstada pelo Poder Judiciário, através da ação civil pública.
Ao dizer a Constituição "vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justificam sua proteção", a dimensão da vedação de utilização não ficou unificada para todos os tipos de espaços territoriais protegidos. Conforme o tipo de área haverá uma justificativa para a sua proteção. As características de cada tipo é que farão surgir o regime de proteção para esse espaço territorial, ficando proibida "qualquer utilização" que comprometa
a integridade das referidas características ou atributos. Veda-se a utilização para não fragmentar a proteção do espaço
e para não debilitar os "componentes" do espaço (fauna, flora, águas, ar, solo, sub-solo, paisagem) , isto é, o espaço territorial fica integralmente protegido conforme o seu tipo legal. Não se protege um ou outro atributo, mas todos ao mesmo tempo e em conjunto.
Não basta um carinho pelo meio ambiente praticado de modo genérico e difuso para que as áreas de preservação permanente continuem a existir. Uma proteção banal representa a perda dessas áreas. Não há uma meia proteção que salve essas áreas. Essas árvores e esses pedaços de chão merecem ser não só amados como venerados por todos.
A Constituição da República é o documento que deve formar, estruturar e dar o rumo para os que aqui nasceram ou que aqui residem. Assim, quanto à área de preservação permanente - APP, cumpra-se a Constituição do Brasil, sem subterfúgios e na sua totalidade.
INTERESSE PÚBLICO - Ano 8, n. 39. p. 13 -19. set/out. /2006.
------------------------------------------------------------
NOTAS
[1] Palestra no painel de abertura do seminário Nacional: Restauração de APP. Promoção do Ministério do Meio Ambiente. Brasília 12 de julho de 2006.
[2] Professor de Direito Ambiental na Universidade Metodista de Piracicaba - UNIMEP. Prêmio Internacional Elizabeth Haub (1985). Professor na Universidade Estadual Paulista -IB - Campus de Rio Claro (1980-2004). Pesquisador na Universidade de Louisiana - USA (1985). Professor Convidado na Universidade Quebec em Montreal - Canadá (1994). Professor na Universidade da Córsega - França (2001), Professor na Universidade de Lyon III - França (2003). Professor Convidado na Universidade de Limoges - França (1986-2003). Vice-Presidente do Centro Internacional de Direito Ambiental Comparado - CIDE.
[3] MACHADO, Paulo A L. Estudos de Direito Ambiental. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 131.
[4] SILVA, José Afonso. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo. 5ª ed Malheiros, 2004, p. 174.
[5] Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADIn 73-0-SP. Requerente: Procurador Geral da República e requerido: Governador do Estado de São Paulo. Rel. Min. Moreira Alves. Votação unânime. Julg. em 9.8.1989 (DJU 15.9.1989).
[6] Decreto n. 29.762 de 20 de março de 1989, que acrescentou parágrafo único ao artigo 24 do do regulamento aprovado pelo decreto n. 25.341 de 4 de junho de 1986 (o qual dispõe sobre parques estaduais).
[7] ADIN (Medida Liminar)- 3540 - Relator Min. Celso de Mello. Votaram, com o Relator, pela derrubada da liminar, os Min. Nelson Jobim, Eros Grau, Joaquim Barbosa, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Sepúlveda Pertence. Vencidos os Ministros Carlos Britto e Marco Aurélio. Ausentes Gilmar Mendes e Carlos Velloso. Plenário, 01/09/05. Acórdão, DJ 03.02.06.
[8] Washington, 12.10.1940 e entrada em vigor para o Brasil em 26.11.1965. Recueil des traités multilateraux relatifis à la protection de l´environnement. Nairobi, Kenya. Programme des Nations Unies pour l´ Environnement. p. 3 e 61. 1982. (minha tradução).
[9] Adotada em Alger, aos 15.9.1968 e em vigor em 9.10.1969. Recueil des Traités Multilatéraux relatifs à la protection de l´environnement. Éditeur: Alexandre Charles Kiss. Nairobi:Programme des Nations Unies pour l´Environnement. p.23 e 199. 1982.
[10] Adotada em Maputo, aos 11.7.2003.
[11] O Autor foi consultor da FAO em Cabo Verde, em 1992.