Resíduos de medicamentos: impacto ambiental e regulação

AutorFernanda Silva Graciani - Gabriel Luis Bonora Vidrih Ferreira
CargoFarmacêutica. Mestre em Toxicologia pela USP e Doutora em Biociências e Biotecnologia aplicadas à Farmácia pela UNESP. - Mestre en Derecho Ambiental por la UEA e Doutorando em Direito pela PUCSP. Professor da UEMS.
1. Introdução

O alto índice de consumo de medicamentos no Brasil acarreta a respectiva acumulação deste produto nas residências, em razão da falta de uso ou vencimento do prazo de validade.

Uma vez acumulado nas residências, os medicamentos tornam-se descuidadamente descartados sem maiores cuidados com a sua destinação amientalmente correta.

Portanto, a partir do momento em que se expira o prazo de validade ou quando fica em desuso pelo consumidor, o medicamento se converte em um tipo de resíduo trazendo consigo preocupações sobre a saude pública e o meio ambiente. Embora não existam dados oficiais sobre resíduos de medicamentos no Brasil, estudos acadêmicos e experiências de voluntariado estimam que são descartados a cada ano no país um total entre 10,3 e 19,8 mil toneladas, o que mostra a enorme complexidade do este assunto1.

Neste sentido , este artigo analisa a evolução do tratamento normativo relacionado ao descarte correto de medicamentos não utilizados ou com prazo vencido, identificando as alterações causadas pela Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) eo estágio de implementação da logística reversa neste segmento.

2. Impacto ambiental do descarte de medicamentos

Os resíduos de medicamentos podem ser considerados como uma espécie de contaminante ambiental emergente, convertendo-se em tema de importância para o governo e seus fabricantes.

O problema se torna mais relevante na medida em que estudos confirmam que a maioria dos sistemas públicos de tratamento da água não estão preparados para este problema, carecendo de mecanismos que promovam a eliminação correto dos compostos dos medicamentos2.

No entanto, o conhecimento disponível acerca dos efeitos toxicológicos dos resíduos de medicamentos no que tange à saude e ao meio ambiente ainda se mostra muito incompleto, carecendo de maioresa avanços3.

Entretanto, varios estudos indicam que estas substâncias possuem potencial para interferir no metabolismo e no comportamento de organismos4.

A respeito destes possiveis efeitos, a presença de resíduos de produtos farmacéuticos no meio ambiente pode causar resultados nocivos aos organismos aquaticos ou terrestres com efeito em todos os níveis da hierarquia biológica: célula - órgão - corpo - ecossistema5.

Ainda que os efeitos toxicologicos dos residuos de medicamentos tenham sido identificados apenas em laboratório, as concentrações de alguns destes compostos encontradas em pesquisas é suficiente para representar uma ameaça para a saúde6.

Neste sentido, pesquisa realizada por Pomati7 reportou que uma mescla de contaminantes farmaceuticos em concentrações de relevancia ambiental, recolhidas no rio Olona, proximo á região de Milão na Itália, inibiu o crscimento de células embrionárias (30% de diminuição na proliferação de células) com efeitos em sua fisiologia e morfologia constatados em laboratório.

Como destaca Pomati8, farmacologicamente todo medicamento a base de água pode ser considerado como uma preocupação ambiental, já que, diferente de outros contaminantes, os medicamentos foram desenhados com a intenção específica de proporcionar algum tipo de resposta biológica nos organismos. Assim, criados para alcançar uma via metabolica especifica no organismo de seres humanos ou animais, os medicamentos possuem sequencias de ação que nem sempre são bem conhecidas, inclusive em relação aos organismos alvo, sendo praticamente impossivel predizer seus efeitos em outras formas de vida2.

Efeitos ambientais mais graves podem ser constatados no que se refere aos compostos disruptores endócrinos, com alegações de que a exposição a plantas de tratamento de esgoto podem causar feminização das espécies de peixes6.

3. A PNRS e as novas diretrizes para a gestão de resíduos sólidos no Brasil

Os principais instrumentos que disciplinam os resíduos sólidos de serviços de saúde no Brasil (Resolução 358/2005 do CONAMA e a RDC 306/2004 da ANVISA) possuem aplicação estritamente interna voltada aos resíduos gerados no próprio ambiente dos estabelecimentos de saúde, não abrangendo ações que promovam a coleta e destinação final adequada para medicamentos descartados pelo consumidor.

Com o advento da PNRS, por meio da Lei 12.305/2010, este cenário passou a se alterar com o estabelecimento da premissa de que o processo de gerenciamento dos resíduos sólidos deve envolver atribuições a toda a sociedade, havendo a necessidade de cooperação entre as diferentes esferas do poder público, o setor empresarial e demais segmentos sociais. Com efeito, compreendendo que poder público, setor empresarial e a coletividade são responsáveis pela efetividade das ações de gestão dos resíduos sólidos, a PNRS fixou como uma de suas premissas a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos, prescrevendo obrigações a todos os envolvidos em na geração dos resíduos sólidos.

A responsabilidade compartilhada, nos termos da PNRS, representa um conjunto de atribuições que abrangem fabricantes, importadores, distribuidores, comerciantes, consumidores, prestadores de serviços de limpeza pública e manejo de resíduos sólidos, tendente a promover a minimização do volume de resíduos gerados e sua destinação ambientalmente adequada de modo a favorecer a diminuição dos impactos ambientais decorrentes do ciclo de vida dos produtos.

Como maneira de reforçar as diretrizes da responsabilidade compartilhada, a PNRS determina que as funções da cadeia de produção devem envolver o recolhimento de produtos e resíduos para sua eliminação ambientalmente correta. O objetivo deste instrumento, o qual estabelece a chamada Responsabilidade Extendida do Produtor (REP) consiste em ampliar a responsabilidade sobre o produto ou seu resíduo, inclusive depois do respectivo consumo, oferecendo aos produtores/fabricantes o conhecimento acerca do impacto ambiental de sua produção9.

4. Logística reversa e sua aplicação no descarte de medicamentos

Como conseqüência direta do estabelecimento da responsabilidade compartilhada, a PNRS prescreve a obrigação de estruturação e implementação de sistemas de logística reversa, que, sem prejuízo de exigências específicas fixadas em lei ou regulamento, poderão ser viabilizados, dentre outras opções, mediante medidas de compra de produtos ou embalagens usados, disponibilização de postos de entrega de resíduos ou parceria com cooperativas ou associação de catadores.

A PNRS conceituou a logística reversa como um instrumento econômico e social que envolve "um conjunto de ações, procedimentos e meios destinados a viabilizar a coleta e a restituição dos resíduos sólidos ao setor empresarial, para reaproveitamento, em seu ciclo ou em outros ciclos produtivos, ou outra destinação final ambientalmente adequada" (Brasil, 2010a).

Frisa-se que a PNRS, no âmbito da prescrição à responsabilidade compartilhada e consequentemente, da logística reversa, estabelece previsões que abrangem todos aqueles que direta ou indiretamente se envolvem na geração dos resíduos, inclusive os consumidores.

Neste sentido, o art. 33 § 4o da PNRS especifica que os consumidores são obrigados a proceder com a devolução de produtos e embalagens a serem descartados aos comerciantes ou distribuidores nos segmentos produtivos onde se aplica a logística reversa.

Embora os resíduos de medicamentos não estejam especificamente previstos no dispositivo que fixa a obrigatoriedade da aplicação da logística reversa para alguns setores (agrotóxicos, pilhas e baterias, pneus, óleos lubrificantes, lâmpadas fluorescentes, e produtos eletroeletrônicos e seus componentes), a PNRS estabelece mecanismos para extensão deste instrumento a outros segmentos de resíduos.

Nestes termos, considerando a viabilidade técnica e econômica, além do grau e extensão do impacto de certos resíduos à saúde e ao meio ambiente, o sistema de logística reversa será aplicável a outros produtos e embalagens mediante previsão em regulamento, termo de compromisso ou acordo setorial.

Trata-se, neste caso, de uma previsão genérica que mantém aberta e possível a aplicabilidade da logística reversa a outros setores que não aqueles especificamente mencionados na legislação, o que acaba por propiciar a inserção dos medicamentos no âmbito das premissas de responsabilidade compartilhada fixadas pela PNRS.

A Lei nº 7404/2010, que regulamenta a PNRS instituiu o Comitê Orientador para Implantação de Sistemas de Logística Reversa - Comitê Orientador (composto pelos Ministros do Meio Ambiente, Saúde, Desenvolvimento, Agricultura e da Fazenda) encarregado de implementar uma série de ações tendentes a favorecer a aplicação da logística reversa na gestão dos resíduos sólidos no Brasil 10.

No rol de competências do Comitê Orientador destacam-se as atividades de orientação estratégica para a implementação da logística reversa, estudos de viabilidade técnica e econômica, definição de prioridades e cronogramas para propostas de acordos setoriais, revisão de instrumentos que disciplinam a logística reversa, dentre outras.

Em suas ações, o Comitê Orientador é assessorado por grupo técnico composto pelos representantes de cada um dos ministérios que integram o referido comitê, havendo a possibilidade de se estender a participação sobre certas temáticas a representantes de outros ministérios, órgãos federais, estaduais, distritais e municipais além de entidades representativas de setores da sociedade civil diretamente impactados pela logística reversa10.

Neste sentido, em março de 2011, no âmbito do Comitê Orientador, foi criado o Grupo Temático de Trabalho (GTT) de Medicamentos sob a coordenação do Ministério da Saúde e apoio da ANVISA, contando com a participação de representantes de instituições públicas, do setor empresarial da cadeia farmacêutica, de entidades de classe e da sociedade civil.

As atribuições do GTT de Medicamentos consistiam em construir subsídios para a elaboração de Acordo Setorial para implantação de logística reversa de medicamentos desenvolvendo ações como o estudo de viabilidade técnica e econômica, avaliação de impactos da logística reversa de maneira oferecer informações para a tomada de decisão por parte do Comitê Orientador.

Os Acordos Setoriais se caracterizam, ao lado dos regulamentos e termos de compromisso, como um dos instrumentos disponibilizados pela legislação para a implementação e operacionalização da logística reversa.

O Acordo Setorial representa um ato de natureza contratual estabelecido entre o Poder Público e os agentes envolvidos no ciclo de vida de determinados produtos destinado a prescrever as obrigações de cada um dentro do âmbito da responsabilidade compartilhada.

Conforme estabelece a Lei nº 7404/2010, nos Acordos Setoriais desencadeados por iniciativa do poder público, a implantação da logística reversa terá início com a publicação de editais de chamamento pelo Ministério do Meio Ambiente, viabilizados após aprovação do Comitê Orientador quanto à sua viabilidade técnica e econômica promovida pelo grupo técnico.

A respeito dos trabalhos para aplicação da logística reversa quanto aos medicamentos, após mais de 2 anos de discussões no GTT de Medicamentos, o Comitê Orientador aprovou, em agosto de 2013, o edital de chamamento para elaboração do respectivo Acordo Setorial fixando prazo para que o setor envolvido apresente suas considerações a respeito (Brasil, 2013a).

O referido edital de chamamento estabelece algumas metas ambiciosas a serem cumpridas até o quinto ano após a aprovação do Acordo Setorial:

a) proporcionar a destinação final ambientalmente correta de 100% dos resíduos recebidos na totalidade dos municípios com população superior a 100 mil habitantes;

b) alcançar 5522 pontos de coleta de medicamentos em todo o país;

c) proporcionar o recolhimento de 3,79 kg de resíduos por mês em cada ponto de coleta.

5. Considerações finais

Qualificados como materiais sensíveis ao meio ambiente e á saúde humana, os medicamentos se caracterizam como uma classe de resíduos que requerem critérios específicos para sua eliminação ambientalmente adequada, o que somente deve ocorrer com a efetivação da logística reversa neste setor.

Neste contexto, a aplicação da logítica reversa no campo dos medicamentos é uma realidade que está tomando forma no Brasil através de mecanismos que permitem a participação das partes envolvidas.

Programas de coleta de medicamentos já foram implementados em vários países por todo o mundo e, na maioria dos casos, as farmácias e drogarias se consolidam como elementos centrais deste sistema como ponto de retorno dos produtos á cadeia produtiva.

Considera-se que este pode ser também o caso do Brasil, já que segundo dados do Conselho Federal de Farmácias, existem mais de 65.000 farmacias no solo brasileiro, o que alcança uma proporção de 3,34 farmacias para cada grupo de 10.000 habitantes.

Este aspecto pode contribuir significativamente para a afirmação da logística reversa no Brasil, levando em conta que o sistema pode ter uma capilaridade, quantitativa e geográfica, com pontos de recolhimento suficientes para manter o processo de retorno dos medicamentos não usados ou vencidos.

Do mesmo modo, se considera que esta posição confirma a evolução dos preceitos dos serviços de saúde a atenção farmacêutica, permitindo que as farmácias se estabeleçam como centro de saúde dirigido a proporcionar conscientização aos consumidores, não somente quanto ao uso racional mas também quanto a importância de destinação ambientalmente correta dos resíduos de medicamentos.

Referências

[1] BRANDÃO, A. Logística Reversa: Brasil busca solução para descarte inadequado de medicamentos. Pharmacia Brasileira, 2013; (87):7-11.

[2] MARTINHO, M.G.; SANTOS, J.M. Disposal of residential pharmaceutical waste An initial survey on attitudes, behaviors and risk perception in Portugal. In: International Conference on Environmental Pollution and Public Health (EPPH), 5th International Conference on Bioinformatics and Biomedical Engineering, (iCBBE) 2011. Wuhan, China.

[3] FENT, K.; WESTON, A.A.; CAMINADA, D. Ecotoxicology of human pharmaceuticals. Aquat Toxicol. 2006;76[4]:122-59.

[4] CARVALHO, E.V.; FERREIRA, E.; MUCINI, L.; Santos C. Aspectos legais e toxicológicos do descarte de medicamentos. Rev. Bras. Toxicol 2009; 22(1/2):1-8.

[5] BILA, D.M.; DEZOTTI, M. Fármacos no meio ambiente. Quim. Nova 2003; 26:523-30.

[6] BOUND, J.P; KITSOU, K.; VOULVOULIS, N. Household disposal of pharmaceuticals and perception of risk. Environ. Toxicol. Pharmacol. 2006;21[5]: 301-07.

[7] POMATI, F.; CASTIGLIONI, S.; ZUCCATO, E.; FANELLI, R.; VIGETTI, D.; ROSSETTI, C.; CALAMARI, D. Effects of a complex mixture of therapeutic drugs at environmental levels on human embryonic cells. Environ. Sci. Technol 2006; (40):2442-2447.

[8] POMATI, F.; ORLANDI, C.; CLERICI, M.; LUCIANI, F.; ZUCCATO, E. Effects and interactions in an environmentally relevant mixture of pharmaceuticals. Toxicol. Sci. 2008; (102):129-37.

[9] OECD. Extended producer responsability: a guidance manual for governments. Paris, OCDE, 2001.

[10] AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. Descarte de Medicamentos - Responsabilidade Compartilhada. 2013. Disponível em: http://189.28.128.179:8080/descartemedicamentos/gtt/o-que-e-o-gtt-de-medicamentos Acesso em 22 de outubro de 2013.

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