Pressupostos fundamentais para reformulação dos códigos de ética médica (CEM)

AutorNedy Maria Branco Cerqueira Neves - José Eduardo de Siquiera
CargoDoutoranda do PPgMS-FMB-UFBA. Mestra em Educação pela FACED-UFBA. Professora de Ética Médica e Bioética da EBMSP-FBDC. - Doutor em Medicina pela UEL. Mestre em Bioética pela Universidade do Chile. Professor de Clínica Médica e Bioética da UEL.
Páginas40-45

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Introdução

As obrigações profissionais dos médicos para com os seres humanos estão expressas em vários documentos médicos, assim, a ética médica incorpora os valores nos quais a profissão deve estar embasada1. Nas normas deontológicas contidas nos códigos vêem-se incluídas as relações com pacientes e seus familiares, colegas e demais profissionais da área da saúde, além de normas relativas à responsabilidade profissional e direitos humanos2 6.

A lei é um dos instrumentos que compõem, com o bem e a liberdade, a edificação da ética7. As normas codificadas são instituídas como fronteiras, não restrita aos códigos profissionais, mas como raízes fundacionais do reconhecimento da dignidade intrínseca do ser humano8,9. Essas normas transcendem o âmbito da vida humana individual, demarcando no tempo e espaço as formas de relacionamento interpessoais de uma coletividade, o que favorece convivência social harmônica10.

O Código de Ética Médica (CEM) tem diferentes atribuições, entre elas, manter, promover e preservar o prestígio profissional; proteger a união profissional; garantir à sociedade padrões de prática profissional com amparo ético; estabelecer valores, deveres e virtudes profissionais. Assim, define-se um código de ética médica como um conjunto sistemático de princípios fundamentais e normas de conduta moralmente aceitas por um grupo social em determinado momento histórico11.

Por outro lado, as revoluções científicas têm ocorrido em intervalos de tempo cada vez mais curtos, e os produtos oriundos do conhecimento tecnocientífico são amplamente divulgados e comercializados sem respeitar as fronteiras nacionais. Neste cenário de rápidas mudanças, muitas ações têm enorme potencial de impacto quer no meio social como no ambiental12.

O Brasil detém um complexo sistema de regulação da prática da medicina13. Nos últimos anos ocorreram grandes mudanças no exercício profissional, como o inadequado assalariamento e o atendimento médico controlado preferencialmente por empresas de medicina de grupo, assim como a incorporação incontrolada e acrítica de tecnológica de ponta13 14>.

Considerando que os CEM enunciam normas éticas de vigência restrita no tempo, faz-se necessário que os mesmos sejam revistos periodicamente15. As normas não podem ser estacionárias, precisam ser reavaliadas ao longo da história da humanidade16. Assim, o CEM vigente requer uma revisão que o compatibilize com a moralidade social imperante neste início de milênio13.

O Conselho Federal de Medicina assumiu, em 2007, a iniciativa de promover uma revisão do atual CEM vigente desde 198817. Vale ressaltar, que de onze CEM reformulados em diferentes países do Ocidente,a maioria teve sua versão atualizada após o ano 2000.

Todo este novo cenário nos remete a muitas reflexões. Quais diretrizes deveriam ser contempladas num CEM que pretenda responder aos conflitos morais ora presentes na sociedade

O objetivo deste trabalho é o de identificar alguns parâmetros essenciais para integrar este novo documento.

Material e Métodos

Foi realizada uma busca de artigos e publicações sobre códigos de ética, códigos de conduta profissional e códigos de ética médica na base de dados Lilacs (combinando os descritores). Adicionalmente, foram verificadas as referências dos artigos encontrados sobre o tema em livros

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e publicações. Este trabalho foi realizado através do Programa de Pós-graduação em Medicina e Saúde da Universidade Federal da Bahia, na linha de pesquisa em Bioética.

Discussão

Desde suas origens com os filósofos da antiga Grécia, a ética foi apresentada como um tipo de saber normativo, isto é, um saber que pretendia orientar as ações humanas. A moral proporia normas relativas a ações concretas em casos concretos. A ética, como ramo da filosofia, passou a ser mais identificada às reflexões sobre as diferentes moralidades e as maneiras de justificar racionalmente as ações morais, de modo que sua ação passou a ser considerada indireta, ou seja, como horizonte dos máximos morais e as normas passaram a representar o território do horizonte da mínima moralia, de obediência obrigatória por todos os membros de uma comunidade humana18.

Em suma, a reflexão ética é realizada tendo como finalidade o aperfeiçoamento da norma ética instituída.

Preocupado com a insuficiência de valores universais na ordem ética, Kant propôs um recurso à conduta moral. O chamado imperativo categórico kantiano é parte da tentativa de universalizar uma conduta moral particular: Segundo a proposta do filósofo alemão, toda ação humana para ser revestida de amparo ético deveria ser assim condicionada: "(...) age de maneira tal que possas também querer que a máxima de teu agir se transforme em Lei universal da natureza (...)" 19.

De acordo com Nietzsche, a orientação da cultura ocidental advém da exacerbação do uso da razão e desconsiderando instintos mais primordiais do ser humano. O resultado deste desequilíbrio resultaria no crescimento da violência e o enfraquecimento moral das massas, destruindo a civilização e os valores morais mais elevados20.

Hans Jonas refez os termos do imperativo categórico kantiano afirmando:

(...) age de maneira que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de autêntica vida humana sobre a terra; ou formulado com outras palavras: age de maneira tal que os efeitos de tua ação não sejam destrutivos da possibilidade de autêntica vida humana futura na terra21.

Neste sentido, já se percebe uma preocupação com o meio ambiente e o futuro da humanidade, frente à destruição do planeta. Assim, Jonas, considera que não somente o ser humano, mas também, a natureza extra-humana deve ser caracterizada como portadora de igual respeito, sendo, portanto, um fim em si mesma.

É reconhecido que, no campo conceitual existem diferentes correntes de percepções filosóficos nem sempre convergentes, contudo, é imperioso considerar que dois são os níveis de valoração dos atos humanos, já anteriormente mencionados como a ética de máximos e de mínimos. Na elaboração de um CEM, os últimos seriam tipificados como normas e os primeiros comporiam a categoria dos princípios fundamentais.

Todos os códigos deontológicos brasileiros já elaborados apresentam um capítulo que trata das questões dos Princípios Fundamentais e o fazem utilizando denominações similares como: Dignidade Profissional (CEM de 1929 e 1945), Normas Fundamentais (CEM de 1953 e 1965) e Princípios Fundamentais (CEM de 1984 e 1988). Todos os documentos mencionados explicitam os princípios fundamentais como metas valiosas de caráter amplo e genérico que devem nortear a moralidade no exercício da medicina. Expõem grandes conceitos e se enquadram na categoria de moralidade máxima. Simultaneamente, apontam normas deontológicas de cumprimento obrigatório por todos os médicos e que descrevem situações específicas de possíveis transgressões ao CEM que caracterizariam o território da moralidade mínima exigida para o exercício da medicina.

O contexto humano

O ser humano é, essencialmente, um ser de relações, como diria Heidegger, um ser-no-mundo. Este complexo pode ser compreendido em três diferentes dimensões, o das coisas, o das pessoas e o da transcendência. O horizonte das coisas é representado pelos objetos mais simples, passando pelos diferentes estágios de vida vegetal e animal. As pessoas ocupam a dimensão do sujeito das ações exercidas sobre o reino das coisas. A transcendência representa o horizonte acima das coisas e das pessoas, abrindo-se para o campo dos valores com alto grau de abstração22.

Ante o exposto, a ética ficaria demarcada entre o domínio das relações, do tempo e do lugar. No campo das relações humanas há uma pluralidade de percepções

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morais, o que justifica os diferentes critérios de argumentação, julgamento e escolha. Portanto, na escala animal, somente o ser humano consciente é crítico, criativo e reflexivo22.

Na dimensão da temporalidade, Freire (1969) percebe a verdadeira medida das diferentes dimensões do tempo, antes considerado unidimensional,

"(...) atinge o ontem, reconhece o hoje e descobre o...

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