Parecer PG/CES/1/98-DBB Em 16 de junho de 1998.

AutorDenis Borges Barbosa
CargoProcurador do Município do Rio de Janeiro, membro do Global Cyberlaw Network (Brazil)

Senhor Procurador Geral,

Dos fatos

Encaminha-me o ilustre Subprocurador Geral o presente processo, oriundo da Secretaria Municipal de Educação, com manifestação da Sétima Procuradoria Setorial, da qual extraio o seguinte relatório:

"Trata-se da criação de uma "home page" na Internet intitulada "PROJETO PAIS NA ESCOLA", onde foi detectado indevido comprometimento em nome do Poder Público Municipal.

texto constante do "site" diz que se trata de projeto independente e sem fins lucrativos que visa exclusivamente o cumprimento do artigo 206 da Constituição Federal.

Ofício E/CRE (07.24.012) nº 07/98, dirigido ao Gabinete da SME, esclarece o seguinte:

Segundo os criadores de tal projeto - Carlos Lobato, Clara Rollemberg e Flávio Mesquita - todos pais de alunos, este primeiro é de cunho genérico, visando favorecer a diversas unidades escolares do Município.

Ao que consta, entretanto, somente a Escola Municipal 07.24.012 Vice-Almirante Paulo de Castro Moreira da Silva seria foco dos propósitos dos criadores da "home page".

A diretora da escola em questão não foi consultada formalmente, fato que suscitou preocupação inclusive do CEC.

Atendendo a solicitação do CEC, foi realizada reunião na unidade escolar, na qual foi sugerida a modificação da abordagem da abertura da página bem como ressaltada a necessidade de que todas as ações referentes a tal unidade fosse passada pelo crivo da direção da mesma.

Buscando incentivo junto à iniciativa privada, foi divulgado o seguinte texto:

"... Aceitamos também patrocínio, com a exibição da sua logomarca no uniforme das crianças ou nas dependências da Escola. Caso haja interesse de sua parte em nos ajudar, enviaremos a documentação necessária, através de Ofício timbrado da escola e os demais documentos para que sua empresa possa fazer uso dos benefícios fiscais ...".

Para discutir o assunto, o CEC promoveu reunião em que compareceram os membros e o representante deste órgão bem como os pais "autores" do projeto.

CEC ressaltou a necessidade de uma atuação conjunta, solicitando que todo movimento pró-escola fosse feito com sua anuência.

Questionados os autores sobre a atitude isolada da criação da home page, sem prévia consulta, afirmaram que:

Não haveria problema em se retirar o nome da escola da home page, mas que o conteúdo permaneceria.

A home page estava sediada nos Estados Unidos, não havendo possibilidade de ser cometido ato ilícito no Brasil.

A reunião encerrou-se com o pedido formal do Presidente do CEC no sentido de que todos os atos feitos em nome da U.E. fossem previamente submetidos à apreciação da direção da Escola e ainda que se retirasse do "site" o nome da Escola Municipal 07.24.012 Vice-Almirante Paulo de Castro Moreira da Silva ou quaisquer vinculações até então existentes.

Na última semana, recebemos informação verbal de que não havia sido retirado o "site", conforme solicitado.

Cumpre transcrever literalmente o próprio texto inquinado como prejudicial ao Município, constante ainda à data em que se escreve, do endereço http://projeto.hypermart.net/projeto.html:

"O Projeto Pais na Escola é um projeto independente e sem fins lucrativos que visa exclusivamente o cumprimento do artigo 206 da Constituição. Este artigo garante a igualdade e a garantia do padrão da educação para o exercício da cidadania. Por isto nós pais, juntos com a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, estamos tentando melhorar as condições de ensino da Escola Municipal Vice Almirante Paulo de Castro Moreira da Silva - Registro(07.24.012) RJ, no Rio de Janeiro.

Infelizmente os recursos do Governo Municipal são escassos, e não nos resta outra alternetiva a não ser procurar parceria com a iniciativa privada.

Gostaríamos da sua participação no sentido de que nos doem desde brinquedos para o Jardim de Infância, até material para uma sala de ciências ou computação. O material doado pode estar com defeito, ter sido rejeitado no controle de qualidade ou proveniente de uma modernização de um setor da sua empresa. Aceitamos também patrocínio, com a exibição da sua logomarca no uniforme das crianças ou nas dependências da Escola. Caso haja interesse de sua parte em nos ajudar, enviaremos a documentação necessária, através de ofício timbrado da escola e os demais documentos para que sua empresa possa fazer uso dos benefícios fiscais. Informamos que material doado estará sempre disponível para a verificação de seu uso em qualquer dia do ano.

Os nossos colaboradores terão direito, pelo período de um ano, da exibição da sua logomarca e uma página com a descrição da empresa em nosso site na Internet. Informamos também que não aceitamos doações em dinheiro.

Desde já contamos com a sua colaboração.

Projeto Pais na Escola"

Constam do processo várias atas de reunião do chamado "Conselho Escola Comunidade" nas quais as pessoas envolvidas afirmam, de maneira enfática, sua convicção de que não só se isentam de qualquer autorização do ente público, como também pairam além da lei brasileira, em virtude da localização da página da Internet, sita no exterior.

Da quesitação

A matéria a nós submetida, desta maneira, pode resumir-se no seguinte questionamento:

Caso seja aplicável a lei brasileira, configuram-se como ilícitos os atos descritos no relatório?

Onde se situa a página da Internet em questão?

Aplica-se a lei brasileira ao evento em análise?

São competentes os tribunais brasileiros no evento em análise?

Quais meios judiciais ou extrajudiciais recomendáveis na hipótese?

Da ilicitude dos atos cometidos

Dos atos em si mesmos

É nosso objetivo, nesta seção, determinar se, na hipótese de ser aplicável a lei brasileira, os atos descritos constituem ilícito. Antes de enveredar pela difícil temática da aplicação da lei nacional ao ciberespaço, convém primeiro determinar se, ao fim da jornada, haverá aplicação prática de nossas cogitações.

Em primeiro lugar, cumpre notar que o uso da Internet da forma que se descreveu foi sentido pela direção da unidade da Administração Municipal como suscetível de aparentar uma vinculação entre os autores do texto e ao Poder Público Municipal (fls.5):

"Informo que o conteúdo do texto sugere nítida vinculação com a organização formal desta Unidade escolar, porém o próprio contexto contém informações que jamais poderiam lembrar tal vinculação se tivesse passado anteriormente pelo meu crivo".

Assim, é esta aparente vinculação com a Administração Pública que vem a ser questionada.

Da usurpação de função pública

Entendemos haver ilícito no relatado acima: na atribuição por pessoa privada de poderes, atributos ou competências próprias ao ente público. Tal categoria de ilícito - a que o Direito reserva a denominação de passing off, ou inculcamento - consiste exatamente em atribuir-se qualidades de que legalmente não se dispõe. Na esfera privada, no campo concorrencial, veda-lhe o disposto no art. 195, inciso III, da Lei 9.249, de 14 de maio de 1996.

Já o passing off realizado em detrimento do ente público se configura, em tese, com o ilícito do art. 328 do Código Penal:

Usurpar o exercício de função pública.

Pena - detenção, de três meses a dois anos, e multa.

Parágrafo único - Se do fato o agente aufere vantagem:

Pena - reclusão, de dois a cinco anos, e multa.

Notam os doutos que o particular é um dos sujeitos ativos do crime, sendo o objeto jurídico a administração pública . Diz a jurisprudência que entre os interesses protegidos está o prestígio e o decoro do serviço público (TJSP, RT 507/358).

tipo objetivo é usurpar o exercício de função pública, tendo tal natureza o exercício indevido, ilegítimo ou indébito, de função pública e de ato de ofício. Para a concretização do tipo, exige-se o efetivo exercício da função, não bastando que o agente apenas se arrogue a qualidade.

Como está claro, o cometimento do lícito independe de o agente auferir vantagem com o ato. Havendo vantagem, material ou moral, o crime é agravado.

Para configuração do ilícito, exige-se o ânimo de usurpar, ou seja, a vontade consciente de usurpação da função pública, excluindo o tipo subjetivo a boa fé. Já de outro lado inexiste ilícito penal se a função arrogada não se inclui entre aquelas pertinentes ao serviço público.

Do que consta do processo, verifica-se que o agente entende como sendo seu o atributo de solicitar e captar "doações" para a escola municipal em questão - ou seja, sendo a escola simples unidade da Administração Direta Municipal - para o Município. Poder-se-ía questionar se tal atividade seria função pública. Mas foge de qualquer dúvida que o agente usurpa função pública ao prometer disponibilizar propaganda nos uniformes dos alunos e nos prédios escolares.

Com efeito, o uniforme escolar, concebido como uma garantia a mais da igualdade de todos perante o provimento da educação pública, é determinado pela legislação municipal. Alterar tal uniforme, para incluir patrocínio, com publicidade, só poderia ser feito por alteração na legislação pertinente, competência do Legislativo ou, como norma regulamentar, do Executivo. A função pública do legislador ou regulamentador é usurpada pelo agente.

Mais ainda, a autorização de utilização do espaço público para publicidade, como contrapartida de "doações", compreende-se entre as atribuições próprias do Prefeito, ou da Superintendência de Patrimônio da Secretaria Municipal de Fazenda. Com efeito, diz o art. 236 da Lei Orgânica deste Município:

Art. 236. Os bens imóveis do domínio municipal, conforme sua destinação, são de uso comum do povo, de uso especial ou dominical.

§ 1º. Os bens referidos neste artigo serão administrados por um órgão de patrimônio imobiliário, organizado sob a forma de autarquia.

(...)

§ 3º. A destinação dos bens imóveis do domínio municipal será fixada por ato do prefeito, que poderá modificá-la sempre que o exigir o interesse público.

Sem precisar suscitar a questão de serem mesmo doações o que se solicita na página da Internet em análise, é ainda de se notar que a aceitação de doações com encargos fica sujeita à decisão do Prefeito...

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