O momento oligárquico: a construçao institucional da república brasileira (1870-1891)

AutorChristian Edward Cyril Lynch
Páginas297-325

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Introdução

Nenhuma das constituições brasileiras foi cercada de tantas expectativas e considerações como aquela que primeiro serviu de marco legal à República. Quando, no fim do Império, os republicanos democratas volviam os olhos para a vizinha Argentina, ficavam extasiados com o seu crescimento econômico e o atribuíam ao seu modelo constitucional, elaborado à imagem e semelhança dos Estados Unidos. Para eles, a Constituição do Império continha um vício de origem: o fato de ter sido outorgada por Pedro I depois da dissolução da Constituinte. Agora tudo seria diferente. Derrocada a monarquia unitária que supostamente entravava o progresso e adotada a república federativa, legitimada por uma Constituição elaborada pelos representantes do povo, o País seria refundado; tudo seria diferente. Para esses entusiastas, a Constituição de 24 de fevereiro de 1891 (pois era assim que ela era conhecida) preparava o País para uma era de verdadeira democracia, grandeza e prosperidade, que nos associava definitivamente ao movimento do continente americano. Não poderia ser diferente: o principal autor do anteprojeto constitucional enviado pelo Governo Provisório àquela assembléia havia sido Rui Barbosa, o mais legítimo dos liberais democratas brasileiros, jurisconsulto verdadeiramente prodigioso.

No entanto, contrariando a expectativa dos liberais que haviam participado do processo contituinte, o exercício do poder político da Primeira República foi marcado pelo autoritarismo que sucessivamente lhe imprimiram as forças que a instauraram – o Exército e a aristocracia rural: primeiro, na forma de um militarismo positivista; depois, pelo conservadorismo oligárquico. Estabilizado depois de 1898, o regime republicano se acomodou como um arranjo das oligarquias estaduais coordenado pelo Presidente da República – a Política dos Governadores – cujo objetivo era o e impedir qualquer forma organizada de pluralismo político e, por conseguinte, preservar os vinte situacionismos da federação. Antes mesmo da instauração da República, já havia quem se opusesse à mudança do regime de governo, destacando a natureza flagrantemente aristocrática ou oligárquica que ela assumiria. Era o caso do mais lúcido ator político da quadra, Joaquim Nabuco, principal chefe da campanha abolicionista, que em 1888-1889 combatia a propaganda republicana: “Ninguém mais do que eu reconhece o que há de patriótico e elevado na concepção republicana do Estado, mas não posso me iludir no caso presente: o atual movimento republicano é um puro efeito de causas acumuladas que nada têm de republicanas; é uma contra-revolução social”1.

Uma vez que Nabuco não era ingênuo o bastante para crer na coincidência entre conteúdo manifesto e intenção dos atores que veiculavam a propaganda republicana, ele denunciava o republicanismo como uma campanha orquestrada pelas elites insatisfeitas com o abolicionismo monárquico para instaurar o regime oligárquico no Brasil.

Conhecedor dos pressupostos cívicos da vida republicana, principalmente porque servira por dois anos na legação brasileira em Nova York, para Nabuco uma eventual república brasileira tão cedo não poderia

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produzir efeitos democráticos ou republicanos, para além das formas constitucionais. Num país que acabava de sair da escravidão, fortemente hierárquico, analfabeto e rural, a república democrática era uma quimera: bastava observar o que se passava em todas as repúblicas ibero-americanas, que oscilavam entre a anarquia e a oligarquia. A forma possível do bom governo em sociedades atrasadas como a brasileira passava inevitavelmente pela existência de uma instância suprema de poder que fosse descolada das facções oligárquicas, capaz de garantir o bem comum e ampliar o espaço público em benefício do povo. Era o que garantia o Poder Moderador da monarquia. Entregue diretamente ao governo de suas elites agrárias, a república brasileira não passaria de um colégio oligárquico autoritário e reacionário, que fecharia as portas para toda e qualquer possibilidade de pluralismo político. Porque “as oligarquias republicanas, em toda a América, têm demonstrado ser um terrível impedimento à aparição política e social do povo”, Nabuco declarava estar “com o povo defendendo a Monarquia, porque não há na República lugar para os analfabetos, para os pequenos, para os pobres”2. Por isso, ele desenganava os republicanos que, de boa fé, esperavam que do novo regime pudesse emergir a regeneração do sistema representativo:

“Em países do nosso tipo, sob a forma republicana, nunca um partido cairá do poder senão pela revolução. Só do campo da guerra civil, das barricadas das cidades, poderão surgir novas situações políticas. O voto não vale nada”3.

Nabuco foi profético. Um ano depois de promulgada a Constituição, às voltas com a ditadura florianista e os efeitos do primeiro estado de sítio inconstitucional, o senador Amaro Cavalcanti já declararia querer “a Constituição como lei viva, não como letra morta”4. Do outro lado do plenário do Senado, contra aqueles que reclamavam, com menos de um ano de ordem constitucional, que aquela não era a república com que haviam sonhado, o conservadorismo republicano já havia articulado uma resposta. Para o patriarca conservador da República, o senador Campos Sales, o caminho para a república verdadeira exigia a ordem contra os agitadores, que só poderia ser garantida cercando do máximo de força a autoridade do Executivo:

"Por minha parte, também direi que esta não é a República que eu sonhava; mas, com uma diferença: nunca me passou pelo espírito a fantasia de ver a República com que sonhava, perfeitamente organizada dentro de tão pouco tempo depois da destruição da Monarquia. Não é esta a república que eu sonhava, mas, é este seguramente o caminho por onde se há de chegar a fazê-la; é através dessas dificuldades, dessas agitações, de todas essas comoções, que nós havemos de chegar ao regime definitivo da forma republicana em nosso País. Mas, para isso (...), o meio principal, senão o único, é dar força a esta entidade que representa uma sentinela ao lado da República – o governo do País. Pela minha parte, declaro que presto apoio absoluto e

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incondicional a este governo, ao qual não pedi e não pedirei outra coisa senão que tenha coragem, resolução e energia para manter a ordem e a paz públicas, e para garantir a estabilidade das instituições republicanas"5.

O projeto republicano que alcançaria maior popularidade no período apenas emergiria depois no final da primeira década do século vinte, concebido e alardeado por Rui Barbosa; no entanto, para além de sua marca fortemente liberal, ele permaneceria minoritário durante o período, sufocado pelo conservadorismo oligárquico. A Constituição ficou assim prisioneira de uma interpretação conservadora que propositadamente deixava fluidos os limites de seus comandos fundamentais para que fossem aplicados conforme a conveniência do situacionismo oligárquico. Num quadro de baixíssima competição e de escassa alternância no poder, causado pelo monopólio oligárquico e pela fraude eleitoral, oposição e situação jamais chegaram a um consenso mínimo acerca do modo como deveriam funcionar institutos como o estado de sítio, a intervenção federal, a jurisdição constitucional (controle de constitucionalidade), o habeas corpus e as normas centrais da organização federativa. Afora as inúmeras tentativas de golpe contra o establishment, houve três insurreições armadas nos primeiros vinte anos do regime, só na capital federal – as revoltas da Armada (1893), a da Vacina (1904) e da Chibata (1910). Em praticamente todos os Estados, quando não se resolvia pela fraude, a violência da luta política se manifestava em conflitos entre milícias privadas ou privatizadas, bombardeios navais às capitais (como em Salvador, em 1911, e Manaus, em 1912) em massacres de autoridades com a conivência das forças federais (como no Mato Grosso, em 1906). Rebeliões de caráter místicomonárquico, como Canudos (1897) e o Contestado (1914), eram dizimadas em campanhas de guerra, com saldo de milhares de mortos. Longe de a situação se estabilizar no decorrer dos anos, concedidos sempre por um Legislativo de obedientes clientes, o estado de sítio e a intervenção federal se tornaram expedientes ordinários empregados pelo Presidente da República com a anuência do Congresso Nacional para superar a resistência dos opositores do establishment oligárquico e preservar o situacionismo. Durante a Primeira República, o estado de sítio seria decretado onze vezes: vigorou na capital do País durante 17 % de todo o período. Entre 1889 e 1930, por sua vez, o Governo Federal interviria oficial ou oficiosamente pelo menos quinze vezes nos Estados da federação.

O que dera errado? Boa parte dos intérpretes, tributários dos liberais da época, cuida da questão da forma como ela foi trabalhada, na época, por Rui Barbosa – ou seja, como se o projeto liberal democrático tivesse sido frustrado pela interpretação conservadora que lhe conferiram as elites políticas, chefiadas por próceres como Campos Sales e Pinheiro Machado. Entretanto, há que se ir além da clivagem entre liberais e conservadores, para se verificar se ambas as correntes não partilhavam de uma concepção genericamente aristocrática de República. Para tanto, as páginas seguintes revisitarão as condições em que foi veiculada a propaganda republicana ao final do Império, para, apontando o vetor eminentemente aristocrático que a conduzia, verificar de que forma se articulou com ela o debate...

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