Ambiente: um Direito, mas tambén um Dever

AutorTiago Antunes

Ambiente: um Direito, mas tambén um Dever 1

I O dever fundamental de respeitar o ambiente

O presente estudo versa sobre a tutela constitucional do ambiente2, na sua dimensão de dever fundamental. Com efeito, o art.º 66.º, n.º 1 (in fine) da Constituição Portuguesa de 1976 consagra, de forma muito nítida, um dever fundamental - que impende sobre todos os cidadãos - de proteger e respeitar o ambiente. Trata-se, contudo, de um mecanismo constitucional pouco conhecido e pouco estudado. No âmbito de um regime político e de uma filosofia constitucional que - claramente - privilegiam os direitos, é natural que os (poucos) deveres previstos na Lei Fundamental acabem por passar despercebidos. Só assim se compreende que, até hoje, o enquadramento constitucional do ambiente tenha sido feito - quase exclusivamente - em torno do direito fundamental ao ambiente, deixando o dever fundamental "na sombra".

Em suma, estamos perante uma vertente da Constituição Ambiental que costuma ser esquecida ou, pelo menos, negligenciada e que - frequentemente - surge assimilada ou diluída no âmbito do próprio direito ao ambiente. Porém, o dever fundamental em apreço é algo de distinto e autónomo face ao direito fundamental homónimo: são duas realidades dogmáticas totalmente diferentes, com efeitos jurídicos próprios e consequências muito diversas. Assim sendo, importa considerar - autonomamente - o "dever fundamental de respeitar o ambiente", estudando as características que o particularizam e atribuindo-lhe todo o relevo que - por si só - merece.

De resto, como teremos ocasião de demonstrar, o dever fundamental em apreço permite compreender e enquadrar algumas realidades que nunca poderiam ser satisfatoriamente sustentadas por via dos direitos fundamentais. Ou seja, o dever fundamental de respeitar o ambiente tem virtualidades explicativas que extravasam em muito e permitem completar o leque de consequências e efeitos (da mais variada ordem) que já decorrem do direito fundamental ao ambiente.

No fundo, o dever de tutela do ambiente acresce, quer à tarefa estadual ou incumbência pública fundamental de protecção da natureza (art.º 9.º, alínea e) da Constituição), quer ao próprio direito de todos os cidadãos "a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado" (art.º 66.º, n.º 1 da Constituição), trazendo novas dimensões e novos contributos - da maior importância - que desenvolvem, completam e aperfeiçoam o tratamento constitucional do ambiente. Daí a importância de se estudar esta figura jus-fundamental.

E daí, também, a estranheza que nos causa o facto de o "dever fundamental de respeitar o ambiente" ser ignorado pela maior parte dos escritos jurídicos sobre matérias ambientais. Aliás, pode até dizer-se que a omissão de qualquer referência - ex professo - ao dever de respeitar o ambiente, em muitos artigos e mesmo monografias publicadas nesta área, tem representado uma das maiores e mais graves lacunas da doutrina portuguesa que, recentemente, se tem debruçado sobre o Direito do Ambiente.

Com efeito, ao negligenciar este dever fundamental - enquanto realidade jurídica autónoma, da qual decorrem consequências próprias e efeitos jurídicos muito particulares - a doutrina acaba por passar ao lado de todo um conjunto de dimensões jurídicas do ambiente, que têm um interesse científico e um relevo prático extraordinários (mas que não resultam do direito ao ambiente, antes decorrem do dever de respeitar o ambiente). Ou - o que é pior - essa mesma doutrina acaba por ver-se forçada a explicar determinadas realidades ou efeitos jurídicos com base no referido direito fundamental, quando tais realidades e efeitos se poderiam fundamentar, de forma muito mais perfeita e mais conseguida, no dever fundamental de respeitar o ambiente.

Vejamos, então, que efeitos e realidades jurídicas são essas que se enquadram no âmbito do dever fundamental de respeitar o ambiente.

Antes, porém, convém fazer uma breve precisão terminológica: é que o art.º 66.º, n.º 1 da Constituição refere-se a um "dever de defender o ambiente"; nós, pelo contrário, preferimos falar de um dever fundamental de respeitar o ambiente. Isto porque, apesar da expressão literal utilizada pelo art.º 66.º, n.º 1, a verdade é que este preceito não contempla apenas uma obrigação de defender o ambiente contra agressões externas, como poderia - à primeira vista - parecer. Mais do que isso, a referida norma consagra um verdadeiro dever de proteger e - sobretudo - de não destruir os bens ambientais. Ou seja, todos nós estamos obrigados a respeitar o ambiente, incluindo-se aí (nesse dever global de respeito) obrigações de defesa, de protecção e de não agressão; isto é, obrigações, tanto de natureza positiva, como negativa.

II Figuras afins

De forma a percebermos qual o contributo inovador trazido pelo dever fundamental de respeitar o ambiente, importa - antes de mais - distinguir este dever de outras figuras afins. Com efeito, há uma série de realidades jurídico-dogmáticas próximas (mas distintas) do "dever fundamental" ou, pelo menos, que com ele podem ser confundidas. Assim, para sabermos exactamente aquilo de que estamos a falar e para evitar equívocos ou más interpretações, bem como conclusões erróneas retiradas a partir de premissas falsas, há que começar por delimitar - com rigor - o conceito de dever fundamental, afastando-o e diferenciando-o de outras figuras afins.

Para começar, quando falamos de deveres fundamentais (nomeadamente, do dever fundamental de respeitar o ambiente), não nos estamos a referir aos deveres do Estado e demais entidades públicas; referimo-nos - isso sim - aos deveres constitucionais dos cidadãos. Há uma diferença enorme entre as tarefas fundamentais do Estado ou incumbências públicas traçadas pela Constituição e os deveres fundamentais de cada indivíduo.

É verdade que, em ambos os casos, estamos perante deveres; mas esses deveres impendem sobre destinatários diversos e têm características muito distintas entre si. Assim, quando a Constituição pretende impor determinados deveres às entidades públicas, cujo cumprimento visa satisfazer as necessidades colectivas da comunidade, fá-lo de forma objectiva, através da consagração de tarefas fundamentais (vd. art.º 9.º da Constituição). Consequentemente, a expressão "deveres fundamentais" fica reservada para os deveres que obrigam a própria comunidade, isto é, cada um de nós.

Nestes termos, não há que confundir os deveres fundamentais (que vinculam os cidadãos), com as tarefas fundamentais do Estado (que estabelecem obrigações das entidades públicas para com a colectividade).

Nas palavras de Casalta Nabais, os deveres fundamentais pertencem à "sub-Constituição do indivíduo"3, isto é, fazem parte do estatuto constitucional das pessoas (a par dos direitos fundamentais). De facto, a Constituição não confere apenas direitos, nem os sujeitos constitucionais são titulares apenas de posições jurídicas activas; pelo contrário, a Lei Fundamental estabelece também obrigações dos indivíduos, isto é, sujeita-os a determinados deveres para com a colectividade. Ora, é precisamente destes deveres - que integram a esfera jurídica de cada cidadão - que estamos presentemente a cuidar.

Em suma, os "deveres fundamentais" são deveres que a Constituição impõe aos indivíduos, exigindo-lhes o cumprimento de determinadas obrigações que são úteis a toda a comunidade.

Por outro lado, os deveres fundamentais não devem ser vistos como meros limites aos direitos fundamentais. Ou melhor, os deveres até podem funcionar como limites a determinados direitos, mas são muito mais do que isso. A sua relevância, o seu alcance e as respectivas consequências ou implicações de natureza constitucional ultrapassam - em muito - uma eficácia meramente restritiva de certos direitos. Assim, quando a Constituição estabelece um dever fundamental, não está (ou não está apenas) a circunscrever e/ou reduzir o âmbito de aplicação de um ou mais direitos fundamentais; está a consagrar obrigações e vínculos expressos dos indivíduos (cujo incumprimento é juridicamente sancionável). Ou seja, não se trata de restringir ou limitar as posições jurídicas activas dos cidadãos, trata-se - antes - de prever situações jurídicas passivas desses mesmos cidadãos.

É claro que, ao consagrar um dever fundamental, a Constituição poderá - concomitantemente ou em decorrência - acabar por limitar certos direitos conflituantes. Porém, em bom rigor, não estamos perante uma colisão de direitos (a qual, como o próprio nome indica, só ocorrerá entre dois ou mais direitos)4; poderemos estar, isso sim, em face de um limite imanente ou perante um fundamento de restrição de certos direitos. Passamos a explicar.

A consagração constitucional de certos deveres permite evidenciar que, afinal de contas, os direitos (contrastantes com esses deveres) não têm um conteúdo tão abrangente como inicialmente se pensaria. Ou seja, a previsão expressa de um dever, no próprio texto constitucional, pode ajudar a revelar que certas modalidades de exercício de um determinado direito fundamental (incompatíveis com tal dever) não são constitucionalmente admissíveis. Isto é, apesar de o preceito constitucional não o afirmar expressamente, fica a saber-se - por força do dever - que determinadas faculdades não estão abrangidas ou ficam de fora do âmbito de protecção constitucional do direito fundamental em causa. Em tais casos, o dever fundamental acaba por denunciar a existência de um limite imanente relativamente a certo direito fundamental.

Noutros casos, embora o dever fundamental não funcione como um limite imanente, ele ilustra, espelha ou concretiza um determinado valor com dignidade constitucional, que poderá - nos termos do art.º 18.º, n.º 2 da Constituição - vir a servir de suporte e de fundamento para a restrição de certos direitos5. Porém, refira-se que, no âmbito do presente estudo, esta dimensão dos deveres fundamentais (enquanto expressão de um determinado valor constitucional) é pouco relevante pois, no caso específico do ambiente, a sua relevância jus-fundamental sempre resultaria da Constituição por outras vias. Ou seja, independentemente da consagração de um dever fundamental, o ambiente sempre seria um interesse constitucionalmente protegido e, enquanto tal, passível de gerar certas restrições aos direitos, liberdades e garantias.

De qualquer forma, o que interessa reter e sublinhar é o seguinte: apesar de os deveres fundamentais (enquanto reveladores de limites imanentes aos direitos ou enquanto demonstrações da dignidade constitucional de determinado valor ou interesse jurídico) poderem, em determinadas circunstâncias, justificar a limitação ou restrição de certos direitos fundamentais, não é essa a sua função primária ou primordial. Os deveres visam - isso sim - instituir determinadas obrigações dos cidadãos, determinadas posições jurídicas passivas ou vínculos fundamentais a respeitar por cada um dos indivíduos que compõem a comunidade. Como tal, os deveres em apreço têm implicações que vão muito para além de meros limites aos direitos fundamentais.

Por fim, cabe distinguir os verdadeiros deveres fundamentais (autónomos), dos deveres correspectivos de direitos6. O presente estudo versa sobre os deveres que, embora possam estar ligados ou relacionados com certos direitos, apresentam uma relevância jus-dogmática própria (é, precisamente, o caso do dever fundamental de respeitar o ambiente). No entanto, outros deveres existem que são o mero contraponto de um direito, isto é, a situação jurídica passiva correspondente ou simétrica ao direito.

De facto, os direitos relativos - por definição - têm como contrapartida um determinado dever. Por exemplo, se eu tenho um direito sobre alguém, esse alguém terá um dever para comigo. Mas estes deveres correlativos ou correspectivos de direitos não têm qualquer autonomia nem qualquer interesse dogmático próprio. No fundo, são apenas mais uma decorrência ou uma componente do regime jurídico próprio dos direitos e, como tal, a sua relevância jurídica esgota-se na consideração do respectivo direito.

Não são estes deveres, portanto, que aqui nos interessam. Isto é, não são estes os verdadeiros "deveres fundamentais", que a Constituição consagra de forma autónoma, com uma relevância jurídica própria e produzindo consequências ou efeitos jurídicos particulares.

Aliás, isso pode demonstrar-se - de forma muito simples e meridianamente evidente - através do seguinte raciocínio: o principal sujeito passivo dos direitos fundamentais é o Estado (e restantes poderes públicos); assim, se a figura jurídica "dever fundamental" fosse constituída pelos deveres correlativos de direitos, então o respectivo titular (dos deveres) seria, na grande maioria das situações, o Estado; no entanto, já vimos que os verdadeiros deveres fundamentais vinculam os cidadãos e não as entidades públicas.

Por isso, mais uma vez se conclui que os deveres correspectivos de direitos fundamentais (que impendem, sobretudo, sobre os organismos públicos - políticos, legislativos, administrativos e judiciais - competentes) não são os verdadeiros "deveres fundamentais". Os deveres que constituem objecto da nossa investigação são - isso sim - aqueles que, de forma autónoma, vinculam todos os membros da colectividade.

Contudo, a verdade é que - por vezes - certos particulares são também (ou podem ser) sujeitos passivos dos direitos fundamentais. De facto, os direitos fundamentais, embora tenham quase sempre como destinatário directo o próprio Estado, também vinculam ou podem vincular entidades e sujeitos de natureza privada. É, aliás, o que se prevê - de forma expressa - no art.º 18.º, n.º 1 da nossa Constituição, ao estatuir-se que os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, para além de directamente aplicáveis, vinculam tanto as entidades públicas como as privadas.

Este fenómeno - de vinculação dos particulares aos direitos fundamentais - tem sido muito estudado pela doutrina, quer nacional quer estrangeira. Na Alemanha, um dos países onde a temática tem assumido maior destaque, é comummente reconhecida e afirmada a "drittwirkung" dos direitos fundamentais, isto é, a eficácia desses direitos relativamente a terceiros.

Nestes termos, não será possível afirmar que o instrumento jurídico-dogmático "dever fundamental" é composto pelos deveres correspectivos (de direitos), quando estes recaem sobre outros particulares? Isto é, não serão os deveres fundamentais - afinal de contas - a mesma coisa que a eficácia horizontal dos direitos fundamentais (ou drittwirkung)? A resposta é - claramente - negativa. Mas é importante que nos detenhamos um pouco nesta questão, tentando explicar por que é que a drittwirkung ou vinculação de privados aos direitos fundamentais é uma realidade distinta e perfeitamente autonomizável dos deveres fundamentais.

Ambas as figuras jurídicas em causa representam - é certo - relações horizontais (isto é, relações entre particulares colocados em perfeito pé de igualdade), por oposição às relações verticais que se surpreendem, por exemplo, nos direitos fundamentais (em face das entidades públicas) e, de alguma forma, nas incumbências ou tarefas estaduais fundamentais (embora aqui não haja uma verdadeira relação jurídica). No entanto, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais é algo de muito diverso dos deveres fundamentais (também eles horizontais: do indivíduo para com a comunidade em que se insere). Vejamos porquê.

No primeiro caso, um sujeito tem um dever para com outrem, o qual é titular de um direito fundamental. Ou seja, há uma obrigação jurídica horizontal que deriva da previsão constitucional expressa de um direito fundamental e que aí encontra a sua fonte ou a sua razão de ser. No segundo caso, há também uma obrigação jurídica horizontal, mas esta não resulta de qualquer direito. Isto é, o destinatário ou beneficiário do dever não é titular de qualquer direito fundamental. Aqui radica, pois, a diferença estrutural básica entre a drittwirkung dos direitos fundamentais e os (verdadeiros) deveres fundamentais.

Podemos, assim, formular a seguinte regra: a figura jurídica "dever fundamental" distingue-se da eficácia horizontal ou drittwirkung dos direitos fundamentais, na medida em que ao dever não corresponde qualquer direito. Existem ainda outros factores distintivos (por exemplo, a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais é - quase sempre - relativamente ténue, isto é, dotada de uma intensidade jurídica mais fraca), mas a diferença estrutural e verdadeiramente decisiva entre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, por um lado, e os deveres fundamentais, por outro, consiste no carácter autónomo destes últimos. Autónomo, no sentido de que os verdadeiros deveres não dependem da existência de qualquer direito.

Aliás, a este propósito pode (e deve) recordar-se a lição de Santi Romano, o qual - já em tempos remotos - distinguia entre doveri e obligghi, isto é, entre os deveres (verdadeiros deveres autónomos, que existem por si, não tendo contraponto em qualquer direito) e as obrigações (no fundo, os deveres relativos, decorrentes dos direitos). Assim, a figura dogmática "dever fundamental" é composta, apenas, pelos referidos doveri.

Acabámos, portanto, de encontrar aquela que é - no fundo - a grande característica dos deveres fundamentais. A conclusão supra enunciada reveste-se de uma importância extraordinária pois, não só permite diferenciar os deveres da chamada drittwirkung, como - acima de tudo - nos revela o traço dominante e distintivo do instrumento jurídico em apreço, que permite afirmá-lo como uma realidade dogmática própria, de importância estrutural, e com características únicas. Com efeito, é a inexistência de um direito correspectivo que permite falar dos deveres como uma realidade jurídica autónoma; e são estes deveres autónomos que têm importância, relevo e interesse enquanto figura dogmática, porque são algo de diferente das meras obrigações contrapostas ou simétricas aos direitos.

III Classes ou tipos de deveres fundamentais

Está, assim, descoberto o substracto dos deveres fundamentais proprio sensu. Afastadas que estão as figuras afins, vejamos agora - pela positiva - que tipos de deveres existem e qual o seu regime.

Dentro dos deveres fundamentais (autónomos), é possível encontrar deveres que não estão associados a quaisquer direitos (é o caso, por exemplo, do dever fundamental de pagar impostos ou do dever fundamental de defesa da Pátria) e deveres que - embora sejam verdadeiramente autónomos - se encontram ligados a um determinado direito7. Convém frisar que, neste último caso, não estamos perante meros reflexos ou deveres correlativos de um direito. Estamos - isso sim - perante deveres que, embora tenham sido previstos e regulados em estreita articulação com um qualquer direito fundamental, apresentam - em termos dogmáticos e estruturais - uma verdadeira autonomia.

No âmbito destes deveres associados a direitos, é ainda possível distinguir entre aqueles que têm um conteúdo idêntico ao do respectivo direito e aqueles que, pelo contrário, têm um conteúdo distinto do direito fundamental com o qual se encontram relacionados. Vejamos alguns exemplos que permitem ilustrar melhor estas diferentes categorias.

No art.º 36.º, n.º 5, a Constituição refere que "os pais têm o direito e o dever de educação dos filhos". Ou seja, este preceito estabelece - em simultâneo - um direito e um dever fundamentais, que são estruturalmente autónomos (o dever de educar os filhos não é um mero contraponto do direito de os educar, não é a obrigação que corresponde - em termos simétricos - ao direito; pelo contrário, ao dever de educar os filhos não corresponde qualquer direito e, por isso mesmo, se pode falar aqui de um verdadeiro dever fundamental e não de uma mera drittwirkung ou eficácia horizontal dos direitos), mas que se encontram - por razões óbvias - associados e, inclusivamente, apresentam o mesmo conteúdo (a saber: a educação dos filhos).

No caso apresentado, o direito e o dever não são contrapostos, não decorrem mutuamente um do outro, mas - pelo contrário - convivem lado a lado, concentrando-se na titularidade da mesma pessoa. Ou seja, são duas figuras jurídicas autónomas (uma não é o reflexo da outra), mas paralelas; duas figuras jurídicas que se cumulam; e - o que é mais interessante - que apresentam um conteúdo em tudo idêntico.

Desta forma, embora se dirijam ambos exactamente à mesma realidade, o direito consagra-a enquanto faculdade e o dever transforma essa faculdade em obrigação. Ficamos, assim, com um direito-dever, ou um poder-dever de efectuar algo (no caso em apreço, de educar os filhos). Ou seja, quando um direito e um dever - apesar de autónomos - partilham do mesmo conteúdo, ambos dizem respeito ao mesmo tipo de condutas, as quais são - simultaneamente - consagradas como uma possibilidade e como uma obrigação (isto é, tais condutas não só podem, como devem ser exercidas).

Com isto, pretendemos apenas realçar que a associação entre deveres e direitos com o mesmo conteúdo visa, no fundo, excluir a liberdade de exercício que é típica da maior parte dos direitos fundamentais. E isso pode ser bastante grave. Uma dimensão essencial dos direitos fundamentais é, indiscutivelmente, a faculdade de os particulares poderem escolher - livremente - não os exercer; porém, através da estipulação de um dever fundamental com idêntico conteúdo, essa possibilidade de não-exercício ficará automaticamente excluída, reduzindo-se assim a esfera de liberdade dos cidadãos e transformando os direitos em tarefas ao serviço de interesses comunitários. De facto, se esta técnica (de associação entre direitos e deveres equivalentes) for utilizada de forma muito lata, comportará riscos sérios de funcionalização dos direitos fundamentais.

Existe, no entanto, um outro tipo de deveres autónomos que, embora estejam relacionados com certos direitos fundamentais, não visam excluir a respectiva liberdade de exercício. Trata-se dos deveres fundamentais que, apesar de estarem associados a um direito, não apresentam o mesmo conteúdo que ele (logo, não se limitam a funcionalizar esse direito ou a tornar o seu exercício obrigatório). Pelo contrário, o direito e o dever - embora visem atingir um objectivo comum (que os une) - dirigem-se a realidades distintas entre si. Ambos visam alcançar um determinado resultado, mas fazem-no por vias diversas e reciprocamente complementares. Como tal, estas duas figuras jurídicas completam-se, acrescentando valor uma à outra, na busca de uma finalidade mútua.

É para estes casos que a doutrina reserva o qualificativo de "direitos de solidariedade", "direitos poligonais" ou "direitos circulares", devido à forte articulação entre o direito e o dever e à sua consagração conjunta em função de um interesse comum8. De facto, nas situações descritas consegue-se - ao associar o direito e o dever - uma protecção jurídica mais eficaz e mais completa de determinados valores comunitários. É, precisamente, o que sucede com o direito / dever de respeitar o ambiente. Senão, vejamos.

IV O ambiente como direito e dever

Para começar, o dever de respeitar o ambiente é um dever fundamental proprio sensu, ou um dever autónomo, pois não tem contraponto em qualquer direito. De facto, e ao contrário do que se possa pensar, o dever de respeitar o ambiente não é a obrigação que impende sobre os sujeitos passivos do direito ao ambiente9. Isto é, o dever fundamental de respeitar o ambiente e o direito fundamental ao ambiente não são realidades simétricas, não são a posição jurídica passiva e a respectiva ou correspondente posição jurídica activa. Pelo contrário, estamos perante realidades que, embora dizendo respeito (tanto uma como outra) ao ambiente, são autónomas.

É um facto que o direito ao ambiente também vincula, em certas circunstâncias, os particulares (no âmbito da chamada drittwirkung), impondo-lhes obrigações - muito concretas - de respeito pela qualidade de vida ambiental daqueles que os rodeiam. Mas não é destas obrigações que trata o dever fundamental de respeitar o ambiente. Este dever engloba outras realidades e outro tipo de condutas - autónomas - que não têm correspondência em qualquer direito, de quem quer que seja.

Teremos oportunidade de verificar, infra, que o dever de respeitar o ambiente vai muito para além dos efeitos horizontais do direito ao ambiente, contemplando determinadas obrigações cujo cumprimento não corresponde à satisfação de qualquer direito (nem, sequer, do direito ao ambiente), mas - apenas e só - à execução de um dever fundamental. E é precisamente o facto de o dever fundamental em apreço ir para além da drittwirkung (ou eficácia sobre terceiros) do direito ao ambiente, permitindo englobar realidades que nunca resultariam deste direito, que lhe confere tamanha importância (para uma tutela acrescida e diversificada do ambiente) e relevo dogmático.

Assim, e em suma, o direito e o dever em causa não são o reflexo um do outro, não são correspectivos, não são a situação jurídica activa e a correspondente situação jurídica passiva, são - isso sim - figuras jurídico-constitucionais autónomas, com distintos efeitos.

No entanto, apesar de estruturalmente autónomos, o direito ao ambiente e o dever de respeitar o ambiente estão - indiscutivelmente - associados. Esta associação não visa excluir a liberdade de exercício do direito ao ambiente, ou torná-lo obrigatório; visa - isso sim - atingir uma protecção mais completa e mais eficaz (por diferentes vias jurídicas) do ambiente. Ou seja, estamos perante a associação entre um direito fundamental e um dever fundamental, os quais têm conteúdos distintos, mas permitem conjugar diferentes realidades e condutas para - globalmente - atingir um fim comum e de interesse geral, que é a salvaguarda do meio-ambiente.

Nestes termos, e atendendo à sua íntima conexão com um dever fundamental (o qual visa satisfazer interesses comunitários), o direito ao ambiente constitui um exemplo típico dos supra referidos "direitos de solidariedade", "direitos poligonais" ou "direitos circulares". Vieira de Andrade, por exemplo, refere-se expressamente ao direito ao ambiente como um "direito de solidariedade"10. E Casalta Nabais chega mesmo a falar do direito fundamental ao ambiente como um "direito boomerang"11. Ora, tudo isto resulta - sem sombra de dúvidas - da articulação entre direito e dever12 que é efectuada pelo art.º 66.º da Constituição. É esta articulação que permite que o direito fundamental ao ambiente deixe de estar apenas ao serviço de interesses individualistas e egoísticos, colocando-se ao serviço da comunidade.

V Concretizações do dever fundamental de respeitar o ambiente

Vejamos, então, o que é que - em concreto - o dever fundamental de respeitar o ambiente acrescenta face ao direito fundamental homónimo. Daquilo que temos vindo a afirmar resulta que a consideração autónoma do dever fundamental em apreço permite enquadrar e compreender melhor uma série de realidades relativas ao ambiente, as quais nunca poderiam caber no âmbito do respectivo direito fundamental. Nestes termos, importa verificar que realidades são essas, que só o dever consegue explicar.

Em primeiro lugar, por via do dever fundamental podem conceber-se determinadas obrigações de respeito e de protecção para com as plantas e/ou os animais, os quais - por não terem personalidade jurídica - nunca poderiam ser titulares do direito ao ambiente, logo, nunca poderiam ser protegidos e juridicamente tutelados por via dos direitos fundamentais.

No fundo, esta questão retoma (e visa ultrapassar) uma antiga querela entre "ecocentrismo" e "antropocentrismo", a qual passava pelo seguinte: a primeira corrente, na sua ânsia radical de proteger - a qualquer custo - os bens ambientais contra a delapidação selvagem da natureza provocada pela actividade humana, chegava a defender que a fauna e a flora tinham um direito próprio ao ambiente, que lhes pertencia (isto é, do qual eram titulares) e que era invocável mesmo contra o próprio Homem; a segunda corrente contra-argumentava que os direitos são uma realidade exclusiva dos sujeitos e, como tal, os objectos (como a água ou as árvores) nunca poderiam ser titulares do direito ao ambiente (isto é, o titular do direito ao ambiente é - única e exclusivamente - o Homem). Pois bem, esta querela pode facilmente ser superada pelo dever fundamental de respeitar o ambiente, pois este prescinde da existência de qualquer direito.

Com efeito, por via dos deveres fundamentais é possível consagrar obrigações de protecção ambiental para com certos destinatários que - por falta de personalidade jurídica - nunca poderiam ser titulares de um direito ao ambiente (e, como tal, nunca poderiam reclamar o cumprimento das obrigações que impendem sobre os sujeitos passivos desse direito), apesar de serem claramente merecedores de tutela ambiental. Ou seja, há determinadas entidades que, embora não possam ser titulares de um direito fundamental ao ambiente, carecem de protecção ambiental; ora, juridicamente, tal protecção só poderá ser assegurada por via de um dever (fundamental) de respeitar o ambiente. Assim, adoptando a perspectiva dos deveres, é possível tutelar e proteger uma série de realidades ambientais, mesmo aquelas que nunca poderiam ser protegidas por intermédio dos direitos fundamentais.

Um outro exemplo que podemos referir, a este propósito, é o que diz respeito à protecção do ambiente para as gerações vindouras. O art.º 66.º da Constituição, ao consagrar o princípio da solidariedade inter-geracional13, manifesta uma clara preocupação a este nível: demonstra que o ambiente deverá ser preservado a pensar nos nossos descendentes, ou seja, que é também em nome deles que devemos proteger os recursos naturais, mesmo à custa - se necessário for - de alguns sacrifícios no presente. No entanto, a verdade é que as gerações futuras - precisamente por serem futuras - não são titulares de qualquer direito ao ambiente (isto é, se não existem ainda, não têm personalidade jurídica, logo não podem ser titulares de direitos, nem sequer do direito ao ambiente).

Assim sendo, se o ambiente deve ser preservado para as gerações futuras, e se estas não têm um direito ao ambiente, tal significa que - neste domínio - a tutela jus-ambiental se faz fora do quadro do direito ao ambiente. E se não é por força do direito ao ambiente que temos de proteger a natureza para as gerações vindouras, então terá de ser por força de qualquer outra realidade, como seja - por exemplo - o dever fundamental de respeitar o ambiente. Em suma, não existe um direito ao ambiente dos nossos descendentes, mas existe um dever (nosso) de proteger o ambiente para que tais descendentes o possam gozar (dever esse que, como está mais que provado e aqui mais uma vez se demonstra, não tem contraponto em qualquer direito).

De facto, através do dever fundamental de respeitar o ambiente (e uma vez que se trata de um verdadeiro dever autónomo, que existe por si, isoladamente, não tendo correspondência em qualquer direito), podem consagrar-se obrigações de tutela ambiental sem que exista, da outra parte, qualquer direito. E isto é muito vantajoso, pois permite superar o quadro estrito dos direitos fundamentais, isto é, permite tutelar determinados valores ambientais fora da realidade do direito ao ambiente (situação que, como vimos, em alguns casos se revela absolutamente necessária).

Parece, então, notório que o dever - ao proteger determinadas realidades que nunca caberiam no âmbito de protecção do direito fundamental, isto é, que pela via dos direitos nunca teriam a devida tutela - vem acrescentar algo face ao direito. Como tal, a consagração de um dever fundamental de respeitar o ambiente tem uma importância extraordinária (que, muitas vezes, não é reconhecida e devidamente considerada), uma vez que permite proteger certas situações que, doutra forma, não teriam qualquer tutela constitucional.

Mas podem ainda ser referidos outros exemplos concretos. Assim, é possível configurar juridicamente um dever fundamental para com os povos de toda a Terra; mas esses povos nunca poderiam se titulares do direito fundamental ao ambiente, pois os direitos fundamentais só dizem respeito aos cidadãos (e, nalguns casos, aos estrangeiros e apátridas residentes no país). Ou seja, o dever permite superar as fronteiras do Estado, consagrando obrigações a favor de toda a Humanidade.

Ora, este aspecto é muito importante, sobretudo no que diz respeito ao ambiente, uma vez que muitos dos fenómenos poluentes - a evitar - são transnacionais e produzem as suas consequências a uma escala planetária (logo, as obrigações de defesa do ambiente devem ser para com todo o globo, e não apenas ao nível de cada Estado). A emissão de gases que causam efeito de estufa, por exemplo, é a prova cabal daquilo que estamos a dizer: os gases produzidos em Portugal contribuem para o aquecimento de todo o planeta, cujas consequências se podem vir a revelar em qualquer ponto da Terra. O desaparecimento de uma ilha do Pacífico por efeito da subida do nível do mar, por exemplo, é também consequência dos gases poluentes emitidos no nosso país. O que significa que os fenómenos ambientais não olham a fronteiras, nem se detêm perante as divisões político-administrativas.

Nestes termos, a tutela do ambiente (sobretudo em termos de poluição atmosférica) deve visar atingir todo o globo. E tal só é possível por via dos deveres, nunca por via dos direitos. Isto é, o dever fundamental de respeitar o ambiente pode obrigar - ao mais alto nível - os sujeitos a assumirem as suas responsabilidades planetárias de protecção e promoção do meio-ambiente, adoptando determinadas condutas ecologicamente saudáveis, as quais serão benéficas para todos os povos da Terra.

Por fim, resta ainda considerar uma última (possível) concretização do dever fundamental de respeitar o ambiente, que - mais uma vez - permite adicionar algo face à lógica estrita do direito ao ambiente. Vejamos.

No que diz respeito aos direitos económicos, sociais e culturais, não há qualquer drittwirkung ou eficácia horizontal. Ou seja, os direitos sociais só obrigam o Estado. Logo, o direito ao ambiente, na sua dimensão de direito social, não tem qualquer eficácia para com terceiros, nem vincula quaisquer entidades privadas. No entanto, todas as obrigações ambientais - para com outros sujeitos ou particulares - que não puderem resultar do direito ao ambiente por estar em causa a respectiva dimensão de direito social, poderão ser enquadradas no âmbito do dever fundamental de respeitar o ambiente: um dever que, não só contempla obrigações de não destruir ou afectar o ambiente, como também obrigações positivas (que impendem sobre cada um de nós) de protecção e promoção do ambiente, a favor ou em benefício do bem-estar ecológico de toda a comunidade.

VI Os deveres fundamentais e a lei

Para finalizar, refira-se apenas que os deveres fundamentais (e, portanto, também o dever fundamental de respeitar o ambiente) não são directamente aplicáveis14. Significa isto que o cumprimento dos deveres não pode ser, pura e simplesmente, exigido com base numa invocação directa do texto constitucional. Não basta a previsão de um determinado dever fundamental para que este se torne automaticamente eficaz. Ou, noutro prisma, ninguém poderá ser sancionado por não ter cumprido um dever que apenas se encontra previsto, de forma genérica, na Lei Fundamental do Estado. Desde logo, porque essa Lei Fundamental não prevê, na maior parte dos casos, quais as sanções aplicáveis ao incumprimento dos deveres nela consagrados.

Os deveres previstos na Constituição não são, portanto, imediatamente exequíveis. A sua exequibilidade depende da intermediação da lei. Isto é, para que os deveres fundamentais adquiram verdadeira eficácia e operacionalidade, torna-se necessária a existência de uma ou mais leis que definam - de forma precisa e concreta - quais as específicas obrigações decorrentes de um determinado dever fundamental ou que, pelo menos, estipulem quais as sanções aplicáveis a quem se recuse a cumprir tal dever.

De facto, a coercibilidade dos deveres constitucionais carece de uma intervenção legislativa. O legislador deverá fixar quais os encargos concretos que recaem sobre cada um dos indivíduos que compõem a colectividade, quais os modos de satisfação desses encargos e quais as penalizações aplicáveis a quem não cumpra o seu dever. Só assim os deveres fundamentais se tornarão legal e judicialmente exigíveis. Por outras palavras, os deveres consagrados na Constituição, embora imperativos, só se tornam verdadeiramente cogentes mediante uma lei que estabeleça as formas concretas ou modalidades de exercício desses deveres, o quantum das obrigações que impendem sobre cada sujeito e as consequências decorrentes do respectivo incumprimento.

Nestes termos, talvez possamos considerar que os diversos diplomas legais que fixam standards de poluição (limites de emissão de gases ou de descarga de efluentes, níveis máximos de ruído, valores aceitáveis de concentração de químicos em certos meios naturais, etc.) e definem as coimas e outras sanções acessórias aplicáveis a quem ultrapassa os referidos standards, são - no fundo - leis reguladoras ou concretizadoras dos termos e do quantum do dever fundamental de respeitar o ambiente.

Convém, no entanto, alertar para o seguinte: a concretização legislativa de deveres fundamentais deverá sempre ser efectuada em atenção ou por referência ao respectivo preceito constitucional, sob pena de já não nos encontrarmos perante a densificação de um dever constitucional, mas antes perante a criação de um dever de valor meramente legal. De facto, não havendo na Constituição uma "cláusula geral de deverosidade" ou uma "cláusula aberta de deveres fundamentais"15, impõe-se concluir que os deveres (previstos na lei) que não tenham correspondência em qualquer dever fundamental serão - tão somente - "deveres legais" ou de valor ordinário. Ora, os "deveres legais" constituem, na maior parte dos casos, restrições a certos direitos fundamentais (maxime direitos, liberdades e garantias), ficando - consequentemente - sujeitos aos apertados requisitos do art.º 18.º, n.º 2 e 3 da Constituição.

Em suma, existe uma diferença muito significativa entre a densificação legislativa de deveres constitucionais e a mera previsão de deveres legais. No primeiro caso, o legislador estará - no fundo - a concretizar um imperativo constitucional e, portanto, actuará com relativa liberdade ou autonomia, densificando o conteúdo jus-fundamental do dever e abrindo caminho à sua efectiva exequibilidade; no segundo caso, pelo contrário, o legislador estará - com elevada probabilidade - a restringir o conteúdo de um qualquer direito, liberdade e garantia, ficando condicionado a respeitar o chamado "carácter restritivo das restrições".

Noutra perspectiva, poderá ainda afirmar-se que a concretização legislativa de deveres fundamentais permite - quanto muito - revelar ou denunciar a existência de um limite imanente a certo direito fundamental, ao passo que a criação legal de novos deveres consistirá numa efectiva restrição a direitos fundamentais16, a qual só poderá ocorrer nos estritos termos em que as restrições são admitidas pelo art.º 18.º da Constituição.

VI Nota conclusiva

Resta-nos uma última palavra, através da qual procuraremos transmitir uma síntese de tudo quanto aqui ficou dito. E essa síntese não pode ser outra senão a constatação (por diversos prismas) da importância dos deveres fundamentais enquanto instrumentos dogmáticos e constitucionais autónomos, dotados de um regime jurídico muito próprio e plenos de consequências ou efeitos que só os deveres conseguem abranger e explicar.

Regressamos, pois, ao ponto por onde começámos: a incredulidade face ao desinteresse que a doutrina constitucionalista (e, no que toca ao dever fundamental de respeitar o ambiente, a doutrina jus-ambientalista) tem demonstrado pela figura dos deveres fundamentais. Trata-se de um domínio que se encontra, em grande medida, por explorar e desenvolver, mas que se apresenta - desde já - bastante promissor como fundamento habilitante ou via explicativa de muitos fenómenos jus-constitucionais.

Esperemos, pois, que se abra uma nova era, onde os deveres deixem de ser ignorados e repudiados, passando - pelo contrário - a ser vistos como um instrumento válido e um útil aliado dos direitos na luta por uma protecção acrescida de determinados valores comunitários (maxime do ambiente).

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NOTAS

[1] O presente texto corresponde, no essencial, a um capítulo do Relatório de Mestrado que elaborámos em 2003, no âmbito do Seminário de Direito Constitucional, então sob a regência do Prof. Doutor Marcelo Rebelo de Sousa.

[2] Assistente-estagiário da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Avogado.

[3] Cfr. Casalta Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Coimbra, 1998, p. 37.

[4] Até porque os conflitos ou colisões de direitos resolvem-se - a mais das vezes - em concreto, por referência directa à Constituição; já os deveres, como teremos oportunidade de explicar, não são directamente aplicáveis, carecendo da intermediação da lei (que define, em abstracto, os respectivos contornos e fronteiras).

[5] No mesmo sentido, cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991, p. 149.

[6] Cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5.ª edição, Coimbra, 2002, pp. 526 e 527; e Casalta Nabais, ob. cit., pp. 78 e ss..

[7] Neste sentido, cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional ..., cit., p. 527.

[8] Cfr. Casalta Nabais, ob. cit., p. 52.

[9] Neste sentido, Marcelo Rebelo de Sousa e José de Melo Alexandrino, Constituição da República Portuguesa - Comentada, Lisboa, 2000, anotação ao art.º 66.º, p. 178.

[10] Cfr. ob. cit., p. 164.

[11] Cfr. ob. cit., p. 53.

[12] Referindo-se também a um "direito-dever de utilização racional dos bens ambientais", cfr. Carla Amado Gomes, As Operações Materiais Administrativas e o Direito do Ambiente, Lisboa, 1999, p. 18 e p. 24. A Autora associa - e bem - as duas figuras (direito e dever), acabando - contudo - por não realçar aquilo que é próprio e característico de cada uma delas. Ora, a nosso ver - e atendendo aos distintos efeitos que decorrem do direito ao ambiente, por um lado, e do dever de respeitar o ambiente, por outro - importa autonomizar estas duas realidades, sem prejuízo de ambas surgirem associadas na defesa e promoção dos recursos naturais e do bem-estar ecológico dos cidadãos.

[13] Sobre este princípio, introduzido pela revisão constitucional de 1997, cfr. Alexandre Sousa Pinheiro e Mário João de Brito Fernandes, Comentário à IV Revisão Constitucional, Lisboa, 1999, pp. 197 e 198.

[14] Cfr. Casalta Nabais, ob. cit., pp. 148 e ss..

[15] Diferentemente do que sucede com os direitos fundamentais, relativamente aos quais o legislador constituinte estabeleceu uma autêntica "cláusula aberta", constante do art.º 16.º, n.º 1 da Constituição. Sobre a inexistência de uma "cláusula aberta de deveres fundamentais", cfr. Casalta Nabais, ob. cit., pp. 87 e ss.. Segundo o Autor, a previsão expressa de deveres fundamentais poderá - inclusivamente - apresentar uma função garantística, com vista - precisamente - a evitar o funcionamento de uma cláusula geral, expressa ou implícita, de deveres (materialmente) fundamentais (ob. cit., p. 38).

[16] Neste sentido, Casalta Nabais, ob. cit., p. 96.

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