Questões éticas em xenotransplantação: fundamentos e orientações jurídicas

AutorRamiro Délio Borges de Meneses
CargoInvestigador do Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa - Centro Regional do Porto.
Páginas33-49

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Introdução

Nas últimas décadas, tem vindo a aumentar o interesse científico na possibilidade de transplantar células, tecidos e órgãos de origem animal para recipientes humanos. Os avanços nas técnicas cirúrgicas, na preservação de órgãos e no desenvolvimento de imussupressores efectivos permitiram que a alotransplantação se tornasse um meio de tratamento estabelecido e importante em casos de insuficiência orgânica (4). No entanto, a necessidade actual de órgãos humanos excede largamente a sua disponibilidade, apesar dos esforços evidentes de encorajamento à sua doação. Estima-se que metade dos potenciais recipientes morre enquanto espera pelo seu transplante (19). Desta forma, a escassez de órgãos humanos aliada ao avanço tecno-farmacológico destacam a xenotransplantação como um meio de tratamento ilimitado e mundialmente disponível que poderia reverter a actual crise de órgãos.

Definição

De acordo com os mais recentes documentos publicados por United States Public Health Service e United States Food and Drug Administration , a xenotransplantação define-se como qualquer procedimento que envolve o transplante, a implantação ou a infusão num recipiente humano de qualquer produto das seguintes 2 categorias: (a) células, tecidos ou órgãos vivos de uma fonte animal não humana, (b) fluidos corporais, células ou tecidos humanos que contactaram ex vivo com produtos de origem animal não humana. Os produtos utilizados neste procedimento são então células, tecidos ou órgãos vivos (8, 15). São exemplos: o transplante de um fígado não humano para um paciente com insuficiência hepática grave; a implantação de células neuronais em cérebros de indivíduos com doença de Parkinson e a infusão de células de medula óssea animal em doentes imunodeprimidos.

Resenha histórica

O uso de produtos animais no tratamento de patologias humanas não é uma ideia recente. Datam do início do século XVII tentativas de ressuscitar pessoas moribundas com transfusões de sangue animal. Em 1682, na Rússia, um crânio de um soldado ferido numa batalha foi reparado com osso de cão. Posteriormente, no século XIX, registaram-se inúmeras tentativas de transplantar tecidos animais para indivíduos, nomeadamente, retalhos de pele, uretras de ovelha ou olhos de coelhos. Até fragmentos de testículo de macaco foram usados na esperança de reverter a impotência sexual (9).

Produtos

Apesar dos babuínos e chimpanzés serem, quer imunológica quer filogeneticamente, mais próximos do Homem, os porcos são, na actualidade, considerados a melhor fonte de órgãos para xenotransplantação, até porque existem em abundância e dispersamente. Outras vantagens da utilização destes animais incluem: menor risco de transferência de infecções em relação a um primata não-humano; crescimento fácil e rápido; semelhanças fisiológicas incríveis quer em função quer em tamanho e menor contestação pública uma vez que diariamente são objecto da nossa alimentação (9). Por seu turno, o uso de primatas acarreta maior risco de transmissão de doenças dada a maior proximidade biológica; desperta mais contestação pública, pois são notórias as suas demonstrações de inteligência e as suas interacções sociais complexas e, como o seu período de gestação é longo e as gestações são geralmente únicas, aumentam os custos necessários para satisfazer a procura de órgãos.

Potencialidades

Em 2002, o número de pacientes em lista de espera para transplante em todo o mundo superou os 250.000 e menos de 1/3 destes receberam-no (20).

Nos EUA, por exemplo, estão disponíveis anualmente 20000 orgãos humanos, a maioria oriundos de dadores com morte cerebral, mas são cerca de 60000 os candidatos em lista de espera, evidenciando-se uma falha profunda entre oferta e procura, que tem vindo a aumentar 10-15% ao ano. O desejável seria atingir os 50 dadores por milhão de habitante e com uma percentagem de dadores multi-orgãos situada nos 90%. Em, 2002, Portugal atingiu os 21,7 dadores por milhão de habitante, com uma taxa de

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colheita multi-orgânica na ordem dos 76%, conservando uma posição de destaque entre os países europeus, mas ainda assim claramente insuficiente (16). Deste modo, a espera por um transplante é longa e muitos não resistem e morrem no entretanto. Estima-se que mais de 5% dos candidatos morre anualmente, percentagem que tem vindo a aumentar catastroficamente nos últimos anos (20). Mas, o problema assemelha-se mais grave do que as estatísticas sugerem ... Muitos dos pacientes que indubitavelmente beneficiariam do alotransplante nem sequer são inscritos nas listas de espera, simplesmente porque são candidatos menos competitivos. Assim, os escassos órgãos disponíveis são distribuídos preferencialmente aos pacientes que terão maior probabilidade de sucesso póstransplante, excluindo-se à priori os indivíduos muito debilitados, para os quais se advinham complicações graves no peri-operatório; os candidatos borderline, ou seja, indivíduos com doenças concomitantes que inviabilizam o sucesso do transplante e os indivíduos que já receberam um transplante mas que desenvolveram uma rejeição crónica ou recorrência da doença primária. Para todos estes casos a transplantação assemelha-se como a única hipótese de sobrevida e, no entanto, é-lhes negado de imediato essa possibilidade, em detrimento de uma utilização racionalizada dos recursos disponíveis. Para agravar ainda mais a situação, em várias regiões do globo, a doação cadavérica é proibida em nome de princípios religiosos ou culturais (9). Neste quadro negro, a xenotransplantação adivinha-se como um potencial reversor, assegurando um banco inesgotável de órgãos e o tratamento conveniente do paciente antes do agravamento clínico da doença (após o estudo e preparação adequados), mas também em situações de emergência. Sempre que necessário, em qualquer parte e em qualquer altura, a possibilidade de cura seria oferecida ao doente sem restrições e com um outcome mais favorável!

Apesar dos benefícios e potencialidades inquestionáveis da xenotransplantação, existem obstáculos variados à sua utilização, nomeadame n te incompatibilidades biológicas, riscos de novas epidemias e questões éticas e psicossociais que incendeiam a opinião pública.

Código de Nuremberga - Adoptado pelo Tribunal Internacional de Nuremberga, em 1947

1. O consentimento voluntário do experimentado humano é absolutamente essencial. Significa isto que o participante deve possuir a capacidade legal de dar o seu consentimento; deve encontrar-se em situação tal que o torne capaz de exercer livremente a sua capacidade de escolha, sem a intervenção de qualquer elemento de força, fraude, ilusão, coacção, engano, ou qualquer outra forma de constrangimento ou coerção; e deve possuir suficiente conhecimento e compreensão dos elementos da matéria em questão, que lhe permitam entendê-la e tomar uma decisão esclarecida. Este último elemento exige que, antes da aceitação de uma decisão afirmativa pelo sujeito submetido a experimentação, se lhe deve dar conhecimento da natureza, da duração e da finalidade da experiência; do método e dos meios pelos quais ela será conduzida; de todos os inconvenientes e perigos que se podem razoavelmente esperar; e dos efeitos sobre a sua saúde e a sua pessoa que possam advir da sua participação na experiência. O dever e a responsabilidade de verificar a qualidade do consentimento recai sobre cada indivíduo que tenha a iniciativa, que dirija ou que se empenhe na experimentação. Trata-se de um dever e de uma responsabilidade pessoais que não podem ser delegados a outrém impunemente.

2. A experiência deve ser de molde a levar a resultados frutíferos para o bem da sociedade, impossíveis de obter por outros métodos ou meios de estudo e não despropositada e desnecessária na sua natureza.

3. A experiência deve ser concebida e baseada sobre os resultados da experimentação animal e num conhecimento da história natural da doença ou outros problemas em estudo, de tal modo que os resultados previstos justifiquem a execução da experiência.

4. A experiência deve ser conduzida de modo a evitar todo o sofrimento e lesão física e mental desnecessários.

5. Não se deveria proceder a nenhuma experiência quando haja uma razão a priori para crer que a morte ou uma lesão incapacitante podem ocorrer; excepto, talvez, nas experiências em que os médicos experimentadores também sirvam como experimentados.

6. O grau de risco em que se incorre nunca deveria exceder aquele que é determinado pela importância humanitária do problema que a experiência se propõe resolver.

7. Deve fazer-se uma conveniente preparação e disponibilizar-se instalações adequadas para proteger o experimentado contra as possibilidades, ainda que remotas, de lesão, incapacidade ou morte.

8. A experiência deve ser executada apenas por pessoas cientificamente qualificadas. Deve exigir-se a quantos a dirigem ou nela se empenham o mais alto grau de competência e de prestação de cuidados ao longo de todos os estádios da experimentação.

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9. O experimentado deve ter a liberdade de pôr termo à experiência enquanto ela decorre, se atingiu o estado...

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