A Constituição e o Direito Internacional Privado. Ensaio de uma proposta de regulação em sede de Direito Internacional Privado

AutorAndré Ventura,Joao Anacoreta Correia
CargoAdvogados das áreas de fiscal e comercial, respectivamente, de Uría Menéndez
Páginas24-39

    André Ventura,Joao Anacoreta Correia.Advogados das Áreas de Fiscal e Comercial, respectivamente, de Uría Menéndez (Porto).

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A relação entre a Constituição e o Direito Internacional Privado (DIP) é uma das mais fascinantes questões debatidas pela doutrina mundial empenhada em estudar e aprofundar o DIP. E também uma das mais importantes problemáticas remetidas aos tribunais no mundo inteiro -aos mais altos níveis hierárquicos dos respectivos ordenamentos jurídicos- e que tem suscitado orientações prático-metodológicas muito diversas e distintas.

No presente artigo, e para a análise da referida relação entre a Constituição e o DIP, usámos como texto base a conferência proferida pelo Prof. FERRER CORREIA na sessão inaugural dos Trabalhos Judiciais, no Supremo Tribunal de Justiça, em 18 de Janeiro de 1979 (cfr. "A revisão do Código Civil e o Direito Internacional Privado", António Ferrer Correia, in Estudos Vários de Direito, Universidade de Coimbra (1982)).

De facto, é bom começar por notar a diversidade incontornável que tem gerado a reflexão sobre as relações (abstractas e concretas, diga-se desde já) entre a Constituição (qualquer que seja) e as normas de conflitos dos respectivos sistemas jurídicos. É possível, assim, encontrar jurisprudência estrangeira com respostas diametralmente opostas e valorativamente inconciliáveis. Mesmo num campo intra-sistemático (hoc sensu, de cada ordem jurídica considerada) os tribunais não se têm entendido no sentido de uma harmonização de soluções em ordem a assegurar um mínimo de segurança jurídica aos agentes destinatários. Tanto horizontalmente, como num campo vertical-hierárquico (tribunais superiores-tribunais inferiores) não se tem verificado harmonização de soluções ou sequer um aparente consenso entre os órgãos aplicadores do direito.

É necessário, antes de mais, situarmo-nos material e conceptualmente no problema em causa: embora seja um problema possível de equacionar sempre (reduzindo, por exemplo, a referência à Constituição a uma referência à lex fundamentalis, no período antecedente do moderno constitucionalismo), esta tensão dialéctica surge e manifesta-se sobretudo a partir do século XIX -com a expansão e consolidação do movimento de constitucionalização- e, com acuidade, a partir da segunda metade do século XX, com a força superior e directa dos direitos fundamentais (muito trabalhada pela jurisprudência alemã) e a definitivamente consensual superiori- dade da Constituição face aos outros instrumentos normativos. No fundo, o esquecimento ocidental da famosa consideração de FERDINAD LASSALE, das "vãs folhas de papel", referindo-se ás constituições escritas do liberalismo do século XIX.

Claro que algumas correntes jurídicas e políticas nacionalistas, já em finais do século XIX e na primeira metade do século XX, enunciaram desde logo o Page 25problema. Mas aqui a relação com a Constituição era apenas marginal, incidental, sendo que a base do problema era essencialmente política: aceitar a aplicação de normas estrangeiras por tribunais do foro, era não só reconhecer soberanias politicamente controvertidas (principalmente após a primeira guerra mundial) como contrariava a ideia de superioridade do "espírito nacional" e da sua capacidade de produção jurídica e, no limite, a incongruência de um órgão de soberania se sujeitar a normas e métodos estrangeiros. No fundo, raciocinava-se para o DIP com base em conceitos, métodos e lógica de direito internacional público ou, pode dizerse com mais rigor, de relações internacionais. Não é o problema por estas correntes enunciado, porém, que estamos empenhados em estudar, na medida em que o consideramos largamente ultrapassado.

O percurso histórico desta problemática, desde os anos 50 do século passado, a abordagem que tem sido feita a este propósito pela jurisprudência estrangeira, principalmente alemã, norte americana e francesa e as várias propostas políticas e sugestões doutrinais que têm vindo à luz desde então configuram, para nós, tarefa de indescritível prazer e utilidade, mas que não poderemos aqui concretizar, por óbvias razões de tempo. Limitar-nos-emos a breves referências transversais e funcionalizadas ao nosso objecto de eleição: o DIP e a Constituição portuguesa, i.e., a aplicação de direito estrangeiro resultante das normas de conflitos portuguesas e a sua compatibilidade com as normas constitucionais portuguesas e com o próprio "sistema constitucional", entendido aqui não apenas os princípios axiais da ordem jurídico-constitucional mas também o espírito subjacente ao nosso processo de controlo e fiscalização da constitucionalidade. Adiante exporemos exactamente em que medida estes últimos considerandos são decisivos para a abordagem deste problema.

Decidimos centrar o fulcro deste trabalho num artigo/conferência do Prof. Ferrer Correia, de 1979, plenamente revelador das reais problemáticas aqui envolvidas. Uma vez mais, o Prof. Ferrer Correia enuncia, com lucidez e rigor, as diversas facetas do problema. Para além disso, a sistemática do texto permite uma abrangência material suficiente para tocar todos os pontos considerados relevantes, inclusivamente os pontos anteriormente mencionados.

Começa o Ilustre Professor por abordar o tema clássico da justiça material/justiça formal do Direito Internacional Privado (DIP). Tal problemática tem, nesta sede, todo o sentido. De facto, considerando as normas de DIP como puramente formais ou como "técnicas e axiologicamente neutras", ou, noutra perspectiva, como normas puramente metodológicas, dirigidas ao órgão aplicador do direito, dificilmente se problematiza a controvérsia valorativa que possa existir entre a Constituição e as referidas normas. Parece-nos que FERRER CORREIA constrói neste domínio um percurso interessante, come- çando por invocar a tese clássica (referindo-se à célebre síntese de BEITZKE) das normas puramente formais, "que não têm o sentido de servir a justiça", para avançar desde logo que considera esta forma de perspectivar o DIP "profundamente errónea".

Por um lado, porque, se é verdade que, em DIP "não são os valores da justiça material que predominam", não se pode daí inferir que os seus preceitos são "meros preceitos de ordem" pois "a ordem para que tendem não é arbitrária, cega a valores, antes uma regulamentação orientada para certos fins". Neste sentido, pode concluir-se que "as normas de conflitos não são, portanto, regras técnicas axiologicamente neutrais (à semelhança das que disciplinam o trânsito rodoviário), que não tenham o sentido de servir a justiça". O que se pode dizer é, então "que a justiça que servem é de cunho eminentemente formal, nela predominando o ingrediente da certeza e da estabilidade jurídica".

Parece-nos que fazem todo o sentido estas considerações. Ao destacar as normas de conflitos face a meras injunções de ordem, o Prof. FERRER CORREIA afasta-se claramente de uma ideia segundo a qual as normas de conflito seriam juridicamente equivalentes a normas metodológicas. Ora, não é assim, pois as normas de conflitos não deter- minam uma aplicação da lei "de olhos vendados". É evidente que são diferentes as valorações subjacentes às normas materiais e às normas de conflitos, mas tal não legitima a consideração bipolar de normas metodológicas como contraponto às normas materiais, estas ultimas imbuídas de uma "teleologia de justiça" e aquelas apenas preocupadas com uma função orientadora e formal. Essa contraposição não procede, na exacta medida em que não é verdadeiro afirmar-se que a norma de conflitos se desinteressa completamente do resultado alcançado pela aplicação das suas regras. Mesmo os ordenamentos jurídicos europeus -pode dizer-se em termos genéricos- têm introduzido pequenas mas progressivas alterações nos seus principais códigos normativos no sentido de garantir determinados objectivos com a aplicação das normas de conflitos. Só isso explica, efectivamente, a preferência e a progressiva relevância das normas de conexão alterna-Page 26tiva. Por outro, lado, nas modernas legislações, nunca deixaram de estar presentes alguns princípios orientadores, com capacidade operativa quando a norma de conflitos esgotara já os seus efeitos (como o Favor Negotii ou Favor Validitatis) ou algumas cláusulas de escape ("escape clause" na terminologia inglesa) ou cláusulas de excepção, como a cláusula de ordem pública.

Aliás, é muitas vezes apresentada a dimensão sobretudo material do direito conflitual norte americano como contraponto ao direito conflitual "puramente formal" europeu. Ora, parece-nos que não é efectivamente assim: nem o direito conflitual norte americano prescinde de um raciocínio metódico-formal na aplicação das normas de conflitos (em nome da certeza e da segurança jurídica, elementos decisivos no tráfego jurídico internacional) nem o direito europeu se apresenta absolutamente formalista, como acabamos de enunciar. É verdade que até aos anos 50 o direito conflitual europeu era considerado por vastos sectores da doutrina como exclusivamente formal e alheio às proposições jurídico-materiais e aos próprios valores axiais da ordem jurídica na qual se inseria. Porém, pelas razões que já aduzimos, não nos parece cientificamente possível falar de um direito conflitual exclusivamente formal, nem quando reportados a períodos históricos concretos. Seguro é, porem, que tal ideia encontra-se hoje completamente afastada não apenas por construções doutrinais e jurisprudenciais, mas sobretudo pelo próprio sistema de normas, explícito, na maioria dos casos, quanto ao funcionamento de determinadas proposições materiais, de determinadas excepções, de normas materiais imperativas ou na enunciação de certos objectivos/interesses.

Assim, como bem conclui FERRER CORREIA, "se no momento presente o direito internacional privado se mostra assim aberto -ainda que em termos comedidos- a certos juízos de valor jurídico-materiais, como admitir que lhe seja lícito ignorar princípios que, exactamente porque...

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