Dentes como Fonte de Células-tronco: uma Alternativa aos Dilemas Éticos (Português)

AutorMariana Rezende Machado - Rodrigo Grazinoli Garrido
CargoCirurgiã Dentista; Especialista em Odontopediatria e em Odontologia Legal; Rio de Janeiro/Brasil - Perito Criminal; Diretor do Instituto de Pesquisa e Perícias em Genética Forense/DGPTC/PCERJ
Páginas66-80

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1. Introdução

Células-tronco (CT) são células capazes de se dividir, originando uma célula com características idênticas as suas e outra com virtual capacidade de gerar diferentes tipos de tecidos1. Esta característica tem sido aproveitada pela Medicina Regenerativa (MR) para restaurar a perda funcional de um órgão e se tornou possível pelo entendimento sobre o desenvolvimento embrionário, a biologia das células-tronco e a tecnologia da engenharia tecidual2.

De acordo com a origem, as CT podem ser obtidas de tecidos adultos ou de embriões. Entretanto, tendo em vista limitações éticas e legais relacionadas à obtenção e manipulação de material pré-natal, a possibilidade de se obter CT a partir de tecidos adultos é extremamente valiosa e tem sido alvo de inúmeras pesquisas. Entre estas perspectivas, a proposta do uso de dentes como fonte de CT para o desenvolvimento de novos dentes e até de outros tecidos (ossos, músculos e nervos) surge como diferencial3.

O isolamento de células-tronco a partir de tecidos dentais começou em 20004, quando se demonstrou uma fonte de CT multipotentes na polpa dentária adulta humana usando 3º molares impactados. Três anos mais tarde, identificou-se a presença de células-tronco com grande capacidade proliferativa em dentes decíduos5esfoliados de crianças entre 7-8 anos. Esta CT têm mostrado resultados favoráveis no que tange não só à regeneração de estruturas dentárias, como também reconstruções ósseas, muscular e de tecidos que revestem a córnea ocular1.

Contudo, atualmente no Brasil, a grande dificuldade encontrada para o uso de CT dentárias está no acesso aos órgãos fonte, ou seja, sua coleta, conservação e a manipulação das estruturas de interesse, cujos resultados devem beneficiar e respeitar doador e receptor. Dessa forma, foi desenvolvida pesquisa exploratória e qualitativa, a partir de documentação indireta de fontes primárias e secundárias, na qual se buscou determinar o atual uso de CT dentárias, mas, sobretudo, suas limitações, como alternativa às CT embrionárias. Especial atenção foi dada à apresentação do aparato legal e administrativo praticado para coleta, preservação e uso destas CT adultas e à efetivação de Bancos de Dente Humanos e Biobancos no Brasil.

2. Células-Tronco

Durante muito tempo, os biólogos entendiam a mitose como sendo a divisão de uma célula em duas exatamente iguais. Há relativamente pouco tempo, com os novos entendimentos propiciados pela moderna biologia celular, foi sendo definido um novo tipo de mitose: a mitose assimétrica.

O conhecimento da mitose assimétrica permitiu a concepção de um tipo de célula com características especiais. Esta célula ao se dividir origina uma que se diferencia e outra que mantém as mesmas características originais. Desta maneira, é possível que no organismo adulto haja um grupo de células com características ancestrais, precursoras ou tronco1.

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As CT podem ser classificadas como6:

· Totipotentes: células capazes de se diferenciarem em todos os tecidos humanos, incluindo a placenta e anexos embrionários. São encontradas nos embriões com até 32 células, nas primeiras fases de divisão, entre 3 ou 4 dias de vida;

· Pluripotentes ou multipotentes: células capazes de se diferenciarem em quase todos os tecidos humanos, excluindo a placenta e anexos embrionários. São encontradas aproximadamente a partir do 5º dia de vida, fase considerada de blastocisto. As células internas do blastocisto são pluripotentes, enquanto as células da membrana externa destinam-se à produção da placenta e às membranas embrionárias;

· Oligotentes: células que se diferenciam em poucos tecidos;

· Unipotentes: células que se diferenciam em um único tecido.

Assim, é possível diferenciar as CT quanto a natureza em: Adultas (CTA) - extraídas dos diversos tecidos humanos, tais como, medula óssea, sistema nervoso, tecido dentário, epitélio, sangue, fígado, cordão umbilical e placenta, e Embrionárias (CTE) - só podem ser encontradas nos embriões6.

Mais um grupo de CT foi criado em 20067pelo especialista em engenharia tecidual Shinya Yamanaka nomeadas de células-tronco de reprogramação induzida (iPS - induced pluripotent stem cells ou HiPS- human induced pluripotent stem cells). Diversas mudanças são feitas em CTA de forma a regredirem até o estágio semelhante às CTE. Apesar da enorme expectativa quanto ao uso terapêutico desse tipo celular, sua aplicação em humanos ainda está sendo largamente estudada visto que uma célula iPS é geneticamente modificada, tornando-se indiferenciada. Estas apresentam os mesmos problemas intrínsecos das CTE, como risco de formação de tumores e dificuldades de controlar a sua diferenciação in vivo. Contudo, o acúmulo de dados pré-clínicos já apoiam a segurança e eficácia das iPS8. As similaridades são tantas entre as CTE e as iPS que estudos recentes mostram conclusões conflitantes na distinção entre os dois tipos celulares9.

As iPS são vistas como uma das mais acessíveis e promissoras fontes de células para a regeneração tecidual. Apresentam fácil obtenção e acenam com a possibilidade de tratamentos para problemas diversos, dentre eles, doenças10,11,12,13 neurodegenerativas, hepáticas, cardiovasculares e infertilidade. Além disso, podem ser produzidas por demanda a partir de células adultas autólogas. Estas características já foram reconhecidas pelo meio científico que concedeu aos cientistas John Gurdon e Shinya Yamanaka, o Prêmio Nobel de Medicina 2012.

Contudo, classicamente, as CT podem ser obtidas de tecidos do corpo humano, de embriões não viáveis para a implantação, descartados nas clínicas de reprodução assistida e através de clonagem. Na clonagem, embriões são produzidos pela transferência do núcleo de uma célula já diferenciada ou de outro embrião, para um óvulo sem núcleo. Com a fusão, inicia-se o processo de divisão celular e na fase de blastocisto são retiradas as células-tronco para diferenciação, in vitro, dos tecidos de interesse terapêutico. Não há implantação em útero para produzir novo ser, o que seria definido como clonagem reprodutiva6.

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A principal vantagem da clonagem terapêutica para obtenção de células-tronco é a fabricação de células pluripotentes, o que permitiria o tratamento de diversas doenças, além da reconstituição de medula óssea, de tecidos destruídos, sem risco da rejeição, caso o doador seja o próprio beneficiado com a técnica. Todavia, a célula autodoada mantém erros informacionais originais, o que limita seu uso em problemas genéticos6.

3. Questões Éticas e Legais no Uso de CTE

De acordo com a Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/05)14, apenas os embriões humanos produzidos por fertilização in vitro inviáveis para a implantação ou aqueles excedentes, congelados por no mínimo três anos, podem ser utilizadas para fins de pesquisa e terapia. Independentemente do caso, é necessário o consentimento dos genitores doadores.

A definição de embriões inviáveis foi feita pelo artigo 3º, XIII, do Decreto 5.591/0515. São inviáveis aqueles embriões com alterações genéticas comprovadas por diagnóstico pré-implantacional, conforme normas específicas estabelecidas pelo Ministério da Saúde, que tiverem seu desenvolvimento interrompido por ausência espontânea de clivagem após 24 horas da fertilização in vitro ou com alterações morfológicas que comprometam o pleno desenvolvimento do embrião.

Em qualquer caso, a retirada de células-tronco provoca a destruição do embrião, o que constitui um atentado à vida, para os que entendem que seu início se dá no momento da concepção. Por tal motivo, o artigo 5º da Lei 11.105/05, vem sendo alvo de severas críticas. Entre as contestações se destaca a Ação Direta da Inconstitucionalidade (ADI) 3.510/0516, proposta pelo procurador-geral da República, núcleo de acirradas discussões, não solucionadas pela mencionada lei, que vem se travando em torno do tema CTE17.

Para debater o tema, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou a primeira audiência pública de sua história, aberta em 24 de abril de 200718.

A oitiva de vinte e dois especialistas pelo STF atraiu a atenção de toda a comunidade jurídica e cientifica. A instrução do julgamento mobilizou a opinião pública composta por grupos contra e a favor aos estudos, sobretudo daqueles que dependiam de uma decisão favorável, esperançosos na melhoria da qualidade de vida18.

Coube ao STF decidir se embriões congelados, sem perspectiva de desenvolvimento, podem ou não ser usados na tentativa de ampliar o arsenal clínico. Por 6 votos a 5, decidiu-se pela constitucionalidade do art. 5º da Lei da Biossegurança, julgando improcedente o pedido e mantendo as pesquisas com CTE humanas18.

Apesar da decisão, definições de quando se inicia a vida e quando o ser humano se define como pessoa estão distantes. Do ponto de vista jurídica, a questão baseia-se no momento em que a pessoa tornase sujeito de direito. O Direito sempre conferiu proteção jurídica ao nascituro, e segundo o Código Civil brasileiro, no art.2º, "A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro."19.

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Segundo normas deontológicas do Conselho Federal de Medicina exaradas pela Resolução 1.957/201020, o número de ovócitos e pré-embriões a serem transferidos para a receptora não deve ser superior a quatro, respeitando a seguinte escala: a) mulheres com até 35 anos: até dois embriões); b) mulheres entre 36 e 39 anos: até três embriões; c) mulheres com 40 anos ou mais: até quatro embriões. O número de pré-embriões produzidos em laboratório deve ser comunicado aos pacientes e os excedentes...

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