Uma leitura do legado constitucional brasileiro entre 1930-1937

AutorRafael Lamera Cabral
CargoUniversidade de Brasília
Páginas271-336
UMA LEITURA DO LEGADO CONSTITUCIONAL
BRASILEIRO ENTRE 1930-1937
ONE VIEW OF THE 1930-1937 BRASILIAN
CONSTITUTIONAL LEGACY
Rafael Lamera Cabral
Universidade de Brasília
SUMÁRIO. INTRODUÇÃO. I. DA REVOLUÇÃO À LUTA PELA CONSTITUIÇÃO: UM
ITINERÁRIO PARA A HISTÓRIA CONSTITUCIONAL BRASILEIRA. II. 1932: DA
REFORMA ELEITORAL AO ANTEPROJETO DA CONSTITUIÇÃO TEMPO,
DIREITO E INOVAÇÃO NO CONSTITUCIONALISMO NACIONAL. III. EM BUSCA
DA CONSTITUINTE. IV. A CONSTITUIÇÃO DE 1934 E A ANTECIPAÇÃO DAS
INCERTEZAS. V. A INTENTONA COMUNISTA E A MUDANÇA CONSTITUCIONAL.
VI. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar uma síntese dos eventos políticos
que marcam a configuração da relação entre direito e política no Brasil entre
1930-1937. Esses fatos estão inseridos em um contexto de grande fragmentação
econômica e social que fomentaram novos arranjos institucionais em nossa
história. Esses movimentos registram um ponto de inflexão significativo que
culminam na produção de uma Constituição, em 1934, e que devido seu
ineditismo temático, estabelece um efeito pedagógico para o constitucionalismo
nacional.
Abstract: The objective of this paper is to present an overview of the political
events that mark the configuration of the relationship between law and politics in
Brazil from 1930 to 1937. These facts are inserted in a context of great economic
and social fragmentation that fostered new institutional arrangements in our
history. These movements recorded a significant turning point culminating in the
production of a constitution in 1934, and because its thematic ine-ditismo
establishes a pedagogical effect to the national constitutionalism.
Palavras-chave: Revolução de 1930, Assembleia Constituinte, Constituição,
Getúlio Vargas, Golpe de Estado.
Key words: Revolution of 1930, Constituent Assembly, Constitution, Getúlio
Vargas, Coup D'etat.
“Creio que serei o primeiro revisor dessa Constituição”
Getúlio Vargas, julho de 1934
INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é apresentar, a partir dos principais fatos políticos
que marcaram a década de 1930, como as mudanças políticas, econômicas e
sociais foram incorporadas no processo político que culminou na Constituição de
1934 até sua suspensão, em 1937. Para que o objetivo possa ser alcançado, a
Revista de Historia Constitucional
ISSN 1576-4729, n.16, 2015. http://www.historiaconstitucional.com, págs. 271-336
pesquisa abordará neste primeiro momento como a disputa pelo controle do
processo político inaugurado pela Revolução de 1930 se articulou para promover
a reconstitucionalização do país. As tensões políticas do período demarcaram a
luta pela constituinte e como os conflitos temáticos que deveriam ser
incorporados na Constituição, foram utilizados. Compreender essas questões
torna-se fundamental, pois elas contribuem na formalização de elementos
analíticos que permitem verificar como as fórmulas de superação do passado,
propostas pelos revolucionários de 30, se constituíram na dimensão processual
viabilizada pelos estudos das constituições.
Como se observará no transcorrer do trabalho, não é possível estabelecer um
roteiro claro ou inequívoco de como os revolucionários avançaram em direção ao
projeto de constituição. O motivo é justamente esse: a ausência de um projeto de
Constituição impôs o uso de alternativas políticas que, em cada situação vivida,
poderia significar decisões diversas diante da complexidade social em formação,
que se direcionava à promoção de um Estado de compromisso entre as forças
políticas divergentes.
À luz de uma visão retrospectiva, a repercussão a um ato de fala promovido
por um presidente da República de que estaria disposto a ser o primeiro revisor
de uma Constituição recém promulgada1, pode ser muito significativo tanto para
o Direito quanto para a Política. A razão de tal fato não se circunscreve apenas
pela intenção de reforma, mas pela própria função que as Constituições têm
assumido nesta imbricada relação entre Direito e Política no contexto de Estados
nacionais em reconfiguração no século XX.
Nos dias atuais, e como produto de uma experiência complexa, uma
relativa naturalização e constância nesta prática revisional, mesmo reconhecendo
que o constitucionalismo vem estabelecendo novas ações limitativas de reforma à
Constituição. As razões levantadas para a revisão são múltiplas: Constituições
não são eternas, sofrem os efeitos da passagem do tempo2 e muito embora a
permanência de uma Constituição possa ser considerada a ideia inspiradora do
1 A afirmação de que o próprio Getúlio estaria disposto a ser o primeiro revisor da Constituição
não é controversa. A princípio, Vargas a teria afirmado em círculo privado, quando comunicado
da promulgação do texto constitucional pela assembleia. Em seus diários (Getúlio Vargas, Diários.
Vol I, p. 310), é possível ainda encontrar outro registro: “monstruoso”, seria o adjetivo sobre a
Constituição de 1934. Para maior aprofundamento, ver: Lira Neto, Getúlio: do Governo provisório
à ditadura do Estado Novo (1930-1945). São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 189; e ainda
em Valentina da Rocha Lima (Org.) in: Getúlio, uma história oral. Rio de Janeiro: Record, 1986. Por
outro lado, a insatisfação de chefes do Poder Executivo com as Constituições não surpreende.
Com a promulgação da Constituição de 1988, por exemplo, inúmeras críticas, inclusive televisio-
nadas, foram lançadas pelo então presidente da República José Sarney contra os procedimentos e
temas previstos na Constituição, muitos relacionados com a chamada “ingovernabilidade”, impe-
ditiva para as ações do Executivo. Para maiores detalhes, ver: Leonardo Augusto de Andrade Bar-
bosa. História Constitu cional Brasil eira: mudança constitucional, autoritarismo e democracia no
Brasil pós-1964. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2012, e ainda ver Adriano
Pilatti. A Constituinte de 1987 -1988 - Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do
Jogo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, Editora PUC-Rio, 2008.
2 Conforme compartilha Cristiano Paixão. Modernidade, tempo e Direito. Belo Horizonte: Del
Rey, 2002.
Rafael Lamera Cabral
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constitucionalismo moderno3, ao se submeterem ao tempo, modificam-se,
reajustam-se às necessidades da estrutura social, sobretudo quando a iniciativa
de alteração da Constituição é proposta pelo Poder Executivo, em detrimento do
legislativo. Na própria conjuntura nacional, as Constituições de 1946, 1967, 1969
(esta como produto de uma emenda constitucional) e 1988 são exemplos típicos
da intensa atividade revisional pelo poder constituinte derivado. Mas o momento
histórico registrado pela epígrafe deste capítulo era outro, datado num período
abstruso, determinante, e com um horizonte de expectativas incerto: meados de
julho de 1934, que após mais uma fase de instabilidade econômica, política e
social sempre marcante no país, e temporalmente registrada desde o movimento
de 03 de outubro de 1930, transformou institucionalmente o país com o advento
da Constituição em 16 de julho.
Na história brasileira, duas experiências de um constitucionalismo
problemático e complexo precedem a Constituição de 1934. A primeira surgiu em
1824, outorgada pelo imperador Dom Pedro I, como reflexo da declaração de
independência do país ocorrida dois anos antes (1822). Caracterizou-se por um
constitucionalismo marcado pela divisão de poderes composto por quatro órgãos:
Executivo, Legislativo, Judiciário e Moderador. A segunda, em 1891, foi
promulgada após a proclamação da República em 1889, em um regime liberal-
democrata, federalista, com divisão de poderes entre Executivo, Legislativo e
Judiciário, acompanhada em seus dispositivos com uma declaração de direitos
civis, influenciada pela Constituição americana. Dessas experiências, a
Constituição de 1891 marcou a transição entre a estrutura de monarquia
constitucional para o modelo republicano. Com duração de trinta e nove anos foi
encerrada pelo golpe, movimento armado ou Revolução de 1930, como ficou
tradicionalmente conhecida4.
A Constituição de 1934 foi gestada pelo governo provisório e comandada por
Getúlio Vargas. Carrega a simbologia de um momento nevrálgico para a história
política e constitucional nacional, não apenas pelas singularidades marcantes de
seu processo constituinte, mas também por sua reduzida efetividade após a
promulgação da Lei de Segurança Nacional – LSN (1935), bem como pelas
inovações temáticas que passaram a compor a agenda pública estatal, tanto pela
perspectiva de atores políticos tradicionais quanto por aqueles que foram
incorporados ou excluídos do processo. Contudo, antes que este capítulo se
encaminhe sobre a relevância da Constituição de 1934 e seus desdobramentos
3 Em Raul Machado Horta, Estudos de Direito Constitucional, Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p.
105, é possível encontrar a referência que “concebeu-se o texto constitucional como documento
que deveria durar indefinidamente no tempo e, para assegurar sua duração, as Constituições do
século XVIII, organizaram complexo processo de defesa e de proteção, que tornava a mudança
constitucional hipótese distante e cuja efetividade dependeria de transposição das regras dilató-
rias do sistema de defesa”.
4 Destaca-se aqui, com base nos estudos de Reinhart Koselleck (Critérios históricos do conceito
moderno de Revolução), que a palavra Revolução acabou perdendo seu sentido original (por
exemplo, já foi situada como uma restauração, assimilou-se a desordem, golpe ou guerra civil, e
até a transformações de longo prazo), passando a ter por objetivo ordenar historicamente as expe-
riências de convulsão social. Tornou-se um conceito meta-histórico (Reinhart Koselleck. Futuro
passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora
PUC-Rio, 2006, p. 69).
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