Um diálogo entre a convenção da onu sobre os direitos das pessoas com deficiência e o código civil brasileiro

AutorJoyceane Bezerra De Menezes/Maria Celina Bodin De Moraes
CargoDoutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco Professora Adjunto do Programa de Pós-graduação Professora Adjunto da Universidade Federal do Ceará/Doutora em Direito Civil Università di Camerino (1986). Professora titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Páginas214-231
R.E.D.S. núm. 7, Julio-Diciembre 2015 ISSN: 2340-4647
Págs. 2ͳ4-2͵ͳ
UM DIÁLOGO ENTRE A CONVENÇÃO DA ONU SOBRE OS
DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E O CÓDIGO CIVIL
BRASILEIRO*
“Se o homem amoldara as cousas a seu jeito,
não admira que amoldasse também o homem.”
– Machado de Assis
JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES
Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco
Professora Adjunto do Programa de Pós-graduação
Professora Adjunto da Universidade Federal do Ceará
MARIA CELINA BODIN DE MORAES
Doutora em Direito Civil Università di Camerino (1986). Professora titular de Direito Civil
da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Fecha de recepción: 16 de noviembre de 2015
Fecha de aceptación: 22 de diciembre de 2015
SUMÁRIO.
1.
INTRODUÇÃO. 2. O NOVO SIGNIFICADO DE
STATUS
E A
TUTELA DA PESSOA. 3. A CONVENÇÃO DA ONU SOBRE AS PESSOAS COM
DEFICIÊNCIA E O MODELO SOCIAL DE ABORDAGEM. 4. OS EFEITOS DA
CONVENÇÃO DA ONU SOBRE A SISTEMÁTICA TRADICIONAL DA CAPACIDADE
CIVIL.
4.1. CAPACIDADE DE AGIR RELATIVAMENTE ÀS QUESTÕES EXISTENCIAIS.
4.2. A TEORIA DA INCINDIBILIDADE DA CAPACIDADE CIVIL
. CONCLUSÃO.
1.INTRODUÇÃO
O sofrimento psíquico é um fato comum entre nós, pois já atinge cerca de 10% (dez
por cento) da população adulta, em todo mundo. Dados da Organização Mundial de Saúde
(OMS) apontam que cerca de 25% (vinte e cinco por cento) da população mundial apresenta
algum tipo de transtorno mental ou comportamental.1 No Brasil, o Censo Demográfico de
20102 informou que um total de 45.606.048 milhões de pessoas (o equivalente a 23% da
população brasileira) declarou apresentar alguma das deficiências indicadas no
questionário.3 Desse universo, 1,4% (um vírgula quatro) se autodeclarou com deficiência
psíquica ou intelectual. Estima-se, porém, que o número real de pessoas com esse tipo de
1 OMS. The World Health Report: 2001: Mental health: New Understanding, New Hope. Disponível em
http://www.who.int/whr/2001/en/whr01_en.pdf. Acesso em 07 de julho de 2013.
2 BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico de 2010. Características gerais da
população, religião e pessoas com deficiência. Disponível em http://loja.ibge.gov.br/censo-demografico-2010-
caracteristicas-gerais-da-populac-o-religi-o-e-pessoas-com-deficiencia.html. Acesso em em 07 de julho de 2013.
2 BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico. Características gerais da população,
religião e pessoas com deficiência. Disponível em http://loja.ibge.gov.br/censo-demografico-2010-caracteristicas-
gerais-da-populac-o-religi-o-e-pessoas-com-deficiencia.html. Acesso em em 07 de julho de 2013.
3 No Censo Demográfico 2010, as perguntas formuladas buscaram identificar as deficiências visual, auditiva e
motora, com seus graus de severidade, através da percepção da população sobre sua dificuldade em enxergar, ouvir
e locomover-se, mesmo com o uso de facilitadores como óculos ou lentes de contato, aparelhoauditivo ou bengala, e
a deficiência mental ou intelectual.
Um diálogo entre a convenção da onu sobre os direitos das pessoas com deficiência e o código civil brasileiro
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deficiência seja bem superior. Por temor do preconceito, é bem possível que alguns hajam
ocultado eventuais limitações psíquicas e intelectuais.
Ao longo do tempo e nas diferentes culturas, a “loucura” teve explicações pautadas
nas mais variadas causas, mas sempre foi objeto de repulsa e preconceito sociais. Por razões
místicas ou religiosas, entendia-se que o estado de loucura era resultante de maldição ou de
possessão demoníaca, justificando-se o alijamento dos loucos como se fazia com os leprosos e
os criminosos. Somente no século XVIII, em razão do desenvolvimento da psiquiatria, parte
do sofrimento psíquico passou a ser interpretado como um problema de doença mental. E
muito mais tarde, com o avanço da neurociência, as pesquisas concluíram que a origem dos
transtornos psíquicos e dos déficits intelectuais não estão relacionados apenas aos fatores
genéticos, mas também a causas ambientais e sociais.4 E somente em nossa época, com os
avanços da neurociência, pesquisas começam a concluir que os transtornos psíquicos e dos
déficits intelectuais não têm origem somente em causas ambientais e sociais, nem se devem
exclusivamente a fatores genéticos, mas decorrem de uma “inextricável interação de
ambos”.
Em consequência do avanço científico, o enfrentamento dos problemas correlatos à
deficiência psíquica e intelectual passou a demandar a articulação de saberes
multidisciplinares que extrapolam o âmbito exclusivo da medicina. Igualmente, passaram a
requerer mudanças comportamentais e estruturais na sociedade com o fim de se reduzirem
os obstáculos sociais à capacidade do sujeito com deficiência, por ser consabido que as
limitações físicas e psíquicas impostas pela deficiência são severamente agravadas pelas
limitações sociais e institucionais.
Um cego, por exemplo, ainda que esteja na absoluta administração de seu juízo
crítico, é impedido de testar nas modalidades de testamento particular e cerrado. Só poderá
fazê-lo por meio de testamento público, em vista da limitação imposta pelo art.1867 do
Código Civil brasileiro. Ora, se o estrangeiro pode testar na modalidade particular ou
cerrada, usando o seu idioma
mater
, porque não poderia o cego fazê-lo em
braille
? Paulo
Lôbo entende que essa restrição já não faz sentido, diante da possibilidade plena e
escorreita de sua comunicação por meio da linguagem
em braille
. 5 Em outro exemplo,
destaca-se a Lei n.8.213/1991 que obriga empresas com um número de empregados superior
a 100 (cem) contratar pessoas com deficiência física, psíquica ou intelectual, sob pena de
multa.6 Na maioria dos casos, quando o deficiente psíquico ou intelectual é contratado, os
empregadores desacreditam suas habilidades e competências. Quando cumprem a exigência
legal é para se afastarem da multa, e não em virtude de um compromisso assumido com a
inclusão ou o aproveitamento do potencial da pessoa com deficiência.
Torna-se necessário evoluir do chamado
modelo médico
, segundo o qual a
deficiência psíquica e intelectual é qualificada como uma patologia essencialmente física
que implica na incapacitação e exclusão do sujeito, para o chamado
modelo social
, no qual a
4 Do original, extrai-se o seguinte trecho:
For years, scientists have argued over the relative importance of
genetics versus environment in the development of mental and behavioral disorders. Modern scientific evidence
indicates that mental and behavioral disorders are the result of genetics plus environment or, in other words, the
interaction of biology with psychological and social factors. The brain does not simply reflect the deterministic
unfolding of complex genetic programs, nor is human behavior the mere result of environmental determinism.
Prenatally and throughout life, genes and environment are involved in a set of inextricable interactions. These
interactions are crucial to the development and course of mental and behavioral disorders
.” (WORLD HEALTH
ORGANIZATION. The World Health Report 2001: Mental health, new understandin g, new hope. Switzerland:
WHO Library Cataloguing in Publication Data, 2001, p. 12 e ss. Disponível em:
http://www.who.int/whr/2001/en/whr01_en.pdf. Acesso em: 10 de maio de 2013).
5 LÔBO, Paulo. Direito Civil. Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2013, p.222.
6 Art. 93. A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5%
(cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas,
na seguinte proporção:
I - até 200 empregados...........................................................................................2%;
II - de 201 a 500......................................................................................................3%;
III - de 501 a 1.000..................................................................................................4%;
IV - de 1.001 em diante… .......................................................................................5%.

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