Testes genéticos preditivos: uma reflexão bioético jurídica

AutorFernanda de Azambuja Loch
CargoAdvogada. Especialista em Direito de Família pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Especialista em Bioética pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Páginas92-108

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Introdução

Os constantes avanços das tecnologias e das ciências biomédicas têm proporcionado diagnósticos cada vez mais precoces. A partir do mapeamento do genoma humano, os testes genéticos para a análise do DNA tornaram-se uma realidade, permitindo desvendar detalhes da constituição genética de cada indivíduo e possibilitando a predição de certas enfermidades. A utilização das novas técnicas de aconselhamento e testes genéticos e sua disponibilidade cada vez maior suscitam diversos questionamentos de natureza ética e jurídica, em situações antes não imaginadas pela Medicina e pelo Direito.

Na prática médica, os testes genéticos podem ser realizados em seis momentos distintos ao longo da vida da pessoa: quando o casal decide acerca da reprodução; nos períodos pré-natal (entre a implantação e o nascimento) e neonatal. Quando a gestação resulta de técnicas de reprodução assistida, essas análises ocorrem durante o período de pré-fertilização, e no estágio de préimplantação do embrião, seguido de fertilização in vitro. A sexta situação é quando a pessoa, com base em seu histórico familiar, reconhece um risco acima da média de desenvolver uma doença em particular.1Este trabalho centra-se nesta hipótese, na qual a pessoa deve decidir se quer ou não descobrir se possui um risco aumentado de desenvolver uma doença genética no futuro.

Informação genética e testes genéticos preditivos

Conforme o disposto na Recomendação 5 do Conselho da Europa (1997), dados médicos e dados genéticos são conceitos distintos. Enquanto o dado médico constitui-se em qualquer informação relativa à saúde de uma pessoa, incluindo a informação genética, os dados genéticos são definidos como aqueles dados, de qualquer natureza que se relacionam com as características hereditárias de um indivíduo, bem como ao padrão de herança dessas características, dentro de um grupo de pessoas consanguineamente relacionadas. Incluem ainda, os dados de indivíduos ou linhas genéticas portadores de qualquer informação genética (genes) relativa a aspectos de saúde ou doença, quer se apresentem como características identificáveis ou não.

Já a informação genética pode ser entendida como a informação contida no conjunto de marcadores ou estruturas moleculares presentes no material genético da pessoa. Esse conjunto de informações possui um caráter único e singular, na medida em que todo indivíduo é um ser “geneticamente irrepetível”; sendo permanente, inalterável, e indestrutível, está presente em todas as células do organismo durante a vida e também após a morte. É considerada involuntária no sentido de que não é possível escolher os próprios genes, com uma capacidade preditiva que possibilita, em alguns casos, conhecer antecipadamente a aparição futura de enfermidades. Além disso, é uma

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informação geracional que não está ligada apenas ao indivíduo, pois revela a herança genética, transmitida por gerações, especialmente entre pais, filhos e irmãos.2

Para alguns autores, essa informação pode ser classificada em duas modalidades: informação genética primária – relativa à espécie humana como tal, sendo de domínio público por não permitir a identificação do indivíduo –, e secundária, quando possibilita ao profissional da saúde informações sobre doenças que podem se desenvolver ao longo da vida da pessoa. Este segundo tipo de informação é essencialmente pessoal, uma vez que caracteriza e individualiza um ser humano, permitindo o conhecimento sobre sua identidade e saúde. Dessa forma, requer uma maior proteção jurídica, já que é sobre essa informação que se desenvolve a genética preditiva e preventiva da atualidade.3

Considerando a possibilidade de análise desta informação genética, os testes disponíveis podem ser utilizados com duas esferas principais: na investigação da saúde atual e futura, das características físicas e psicológicas ou comportamentais, e a origem étnica e genealógica de recémnascidos, crianças, adolescentes e adultos que podem ser analisados individualmente ou em grupo; ou na reprodução humana, com o intuito de prevenir os riscos de transmissão de enfermidades genéticas antes do nascimento.4

Desta forma, e conforme o disposto no artigo 2 XII da Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos (2004), teste genético deve ser compreendido como o método que permite detectar a presença, ausência ou modificação de um determinado gene ou cromossomo, incluindo a testagem indireta para um produto ou metabólito específico, essencialmente indicativo de uma determinada modificação genética.

O Conselho da Europa, através da Recomendação 3 (1992), destaca que esses testes têm por finalidade diagnosticar e classificar doenças genéticas; identificar portadores de genes defeituosos e aconselhá-los sobre o risco de terem descendentes afetados; detectar uma doença genética antes do aparecimento dos sintomas, a fim de melhorar a qualidade de vida e identificar pessoas com risco de contrair doenças causadas tanto por um gene defeituoso, quanto por um estilo de vida em particular. Portanto, como esclarece Romeo Casabona5, essas análises permitem realizar estudos sobre pessoas ou grupos populacionais que apresentam risco de desenvolver uma doença condicionada geneticamente ou têm uma predisposição em padecer de uma enfermidade, antes que esta tenha manifestado algum sintoma.

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A informação genética constitui-se em um bem com três dimensões distintas: individual, familiar e universal, uma vez que incorpora a identidade, a individualidade e a integridade da pessoa. Sendo que a identidade genética corresponde à constituição genética do indivíduo, devendo ser objeto de especial proteção para preservar o controle da pessoa sobre seu DNA. A individualidade genética é representada pela expressão fenotípica da pessoa, suas propensões, predisposições e fatores de risco, enquanto a integridade genética engloba os aspectos sociais da genética humana, sendo necessária a utilização de mecanismos contra a discriminação por motivos genéticos.

Além de propiciar benefícios, a popularização do acesso e o uso inadequado dos testes genéticos preditivos podem resultar em abusos e na violação de direitos fundamentais.6No Brasil, a inexistência de legislação sobre a matéria, remete à necessidade de uma interpretação do ordenamento jurídico, buscando legitimar e normatizar sua utilização na assistência à saúde, de forma eticamente adequada. Entre estas normas, pretendemos discorrer sobre a importância dos direitos de personalidade e do princípio constitucional da dignidade humana, inter-relacionando-os aos princípios bioéticos, e postulando-os como instrumentos indispensáveis na análise ético-jurídica desta questão.

Direitos de personalidade

O termo personalidade pode ser entendido como o conjunto autônomo, unificado, dinâmico e evolutivo dos bens integrantes da materialidade física e espiritual do ser humano, sócioambientalmente integrados.7No âmbito jurídico, conforme destaca Otero8, personalidade deve ser entendida como o reconhecimento pelo Direito de que determinada realidade é suscetível de ser titular de direitos e assumir obrigações, traduzindo o cerne do tratamento do ser humano como pessoa e não como coisa.

Os direitos de personalidade - também regulados pelo Código Civil brasileiro - estão dispostos no inciso X do artigo 5º da Constituição Federal, que dispõe sobre a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, ficando assegurado o direito de indenização por dano material ou moral decorrente de sua violação. Desta forma, se houver desrespeito à pessoa ou ela não for informada do que pode acontecer com seu corpo ou imagem, há uma violação desses direitos, cabendo assim a indenização por dano. No Código Civil vigente, a proteção aos direitos de personalidade, que estão dispostos no Capítulo II, está nos artigos 11 a 21.

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Quanto ao conceito destes direitos, esclarece Cunha9que são direitos fundamentais do indivíduo, inseridos no princípio da dignidade da pessoa humana, devendo ser alvo da tutela do Estado, são objeto de livre exercício da autonomia privada, não podendo ser limitados, e o respeito desses limites é condição sine qua non para a existência de um Estado Democrático de Direito.

Direito de personalidade também pode ser compreendido como o direito da pessoa humana a ser respeitada e protegida em todas as suas manifestações dignas de tutela jurídica, assim como na sua esfera privada e íntima.10Sendo que a tutela da personalidade não pode se conter em setores estanques, de um lado os direitos humanos e de outro as situações jurídicas de direito privado, pois a pessoa, à luz da ordem constitucional, requer proteção integrada, que supere a dicotomia direito público e direito privado, e observe a cláusula geral fixada pela Lei Maior, de promover a dignidade humana.11

Direito à identidade genética e à intimidade genética

Dentre os direitos de personalidade aplicáveis ao tema, podemos destacar, inicialmente, o direito à identidade genética, que para Baracho12“corresponde ao genoma de cada ser humano e às bases biológicas de sua identidade.” Embora não tratem explicitamente da identidade genética, percebe-se nos artigos 1 e 3 da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e Direitos Humanos (1997), que a identidade genética do ser humano possui duas esferas, uma que trata a pessoa na sua individualidade com suas características genéticas singulares, e outra que diz respeito ao ser humano enquanto espécie, sendo patrimônio da humanidade.

Esse direito está baseado na acepção individual, ou seja, na identidade genética como base biológica da...

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