O carácter suigeneris da protecçáo dos programas de computador en direito portugués

AutorManuel Oehen Mendes
Cargo del AutorUniv. Católica Portuguesa/Porto
  1. OS ANTECEDENTES DO DEC.-LEI N.° 252/94, DE 20 DE OUTUBRO: O DEBATE DOUTRINÁRIO

    Os antecedentes do Dec.-Lei n.° 252/94 podem reportar-se a dois períodos distintos. O que antecedeu a publicagáo da Directiva Comunitaria n.° 91/250/CEE, de 14 de Maio de 1991 e o que medeia entre esta última data e a da transposigáo daquela Directiva para o Direito interno portugués, através do dito Dec.-Lei n.° 252/94, de 20 de Outubro de 1994 (1)

    A primeira referencia doutrinária em Portugal a este tema parece ter sido a de Luíz Francisco Rebello, Presidente da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), numa comunicado apresentada em 1984 a Academia de Ciencias de Lisboa (Classe de Letras) (2), onde este autor concluí, após análise das tendencias a época do direito comparado, pela protecgáo dos programas de computador no ámbito da legislado vigente de Direito de Autor3, o Código do Direito de Autor de 1966, anterior portanto ao Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC) actual, aprovado pelo Dec.-Lei n.° 63/85, de 28 de Dezembro de 1985 (4).

    De opiniáo diferente, já depois da publicado do Código de 1985, era Vilhena de Carvalho, que numa comunicagáo ao XIII Congresso Internacional de Direito Comparado, realizado em Montréal, Canadá, em 1990(5), faz uma extensa análise dos pros e dos contras da protecgáo dos programas de computador pelo Direito de Autor, com recurso á análise do Direito comparado e as opinióes que entretanto comegaram a emergir em Portugal a propósito das diferentes questóes que esta nova realidade veio colocar de um ponto de vista jurídico. Para este autor, nao obstante reconhecer uma tendencia marcante da evoluçáo em sentido oposto na panorámica internacional(6), a protecgáo dos programas de computador passaria obrigatoriamente pela adopçáo de legislagáo sui generis, fora, portanto, do ámbito do Direito de Autor, por considerar que as necessárias adequagóes ao regime dos direitos de autor, que a solugáo inversa imporia, poderiam corromper as regras e os principios consolidados e tidos como justos e válidos para o comum das criagóes intelectuais(7).

    Já no claro sentido da protecgáo dos programas de computador pelo CDADC, manifestavase o grupo portugués da AIPPI no seu relatório (Q 57) ao XXXIV Congresso desta Organizado, realizado em Amsterdam no ano de 1989(8). Estava encetada a polémica.

    Entretanto, ao nivel legislativo, os programas de computador comegaram a percorrer o seu calvario. No projecto de Lei que haveria de conduzir a aprovagáo do CDADC de 1985, os programas de computador figuram entre as obras protegidas ai referidas a título exemplificativo (9). O Código aprovado pelo Dec.-Lei n.° 63/85 acaba, porém, por omitir qualquer referencia aos programas de computador.

    Na verdade, antes da aprovagáo da Directiva Comunitaria de harmonizado nesta materia, foram duas as tentativas para incluir no Código de Direito de Autor os programas de computador, no elenco exemplificativo das obras protegidas, aproveitando a ocasiáo para lhe introduzir também determinadas alteragóes justificadas pelo carácter particular deste novo tipo de obras, mas ambas sem sucesso (10). O argumento de que seria mais prudente esperar pela aprovaçao da anunciada Directiva para introduzir os programas de computador no CDADC foi, como veremos, um argumento de ironía trágica que acabaría por fazer vencimento em ambas as ocasióes (11).

    É no ambiente gerado por este debate que surge, em 1990, um importante trabalho do Prof. José de Oliveira Ascensáo, publicado na Revista da Ordem dos Advogados (12), o qual, sem dúvida, viria a marcar profundamente a evoluçao legislativa posterior -ainda que nao a jurisprudencia, como a seu tempo se verá- que culminaría no Dec.-Lei n.° 252/94, que transpóe para o direito interno, como já se disse, a Directiva Comunitaria n.° 91/250/CEE. A urna análise crítica das posigóes doutrinárias ai expendidas nos dedicaremos adiante, por imperativo da sua importancia no contexto da realidade jurídica portuguesa.

    É também neste contexto de indefiniçao que, em 1991, é aprovada a chamada Leí da Criminalidade Informática (LCI)(13), que no seu art.° 9.° estipula, referindose aos programas de computador:

    1. Quem, nao estando para tanto autorizado, reproduzir, divulgar ou comunicar ao público um programa informático protegido por lei será punido com pena de prisáo até tres anos ou com pena de multa.

    2. (...)

    3. A tentativa é punível.

    Esta disposiçao vem reconhecer, portanto, que já nessa altura a lei protegía os programas de computador, a ponto de constituir um crime a sua reproduçao, divulgado ou comunicaçao ao público, faculdades típicas do Direito de Autor. Sem se lhe referir expressamente, nao se vé, na verdade, que outra lei pudesse entáo proteger os ditos programas se nao o Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos. Este entendimento parecía pacífico.

    Todavía, se assim era, nao poderia deixar de ser notada urna certa incongruencia sistémica, urna vez que o CDADC, ele próprio, já punia criminalmente as condutas previstas no art.° 9.° da LCI, através do disposto nos seus art.° 195.° e 197.° As disposigóes em confronto nao sao absolutamente coincidentes, mas saono no essencial, quer da previsáo quer da estatuiçao (14).

    Após a aprovaçao, em 1991, da Directiva Comunitaria relativa a protecçao jurídica dos programas de computador, surgiram em Portugal as primeiras decisóes judiciais sobre esta materia proferidas por tribunais superiores (15).

    Num primeiro acórdáo da Relaçao de Lisboa, datado de 26 Abril de 1994, este Tribunal de 2.a Instancia, na análise de um recurso de urna providencia cautelar tendente a proibir a reproduçao nao autorizada de software, reconhece expressamente que os programas de computador se acham implícitamente incluidos no elenco das obras protegidas constantes do art.° 2.° do CDADC, devendo ser considerados como criaçao intelectual (16) .

    Numa segunda decisáo, de 12 de Outubro de 1995 (17), o mesmo Tribunal vai um pouco mais longe, definindoos como criagóes intelectuais do dominio científico, mas sem grande rigor no que toca a determinaçao da forma de expressao que concretamente utilizam. Ñas palavras pouco exactas desta jurisprudencia, tratarseia de «urna criaçao intelectual do dominio científico, que se exprimem pelas respectivas disquetes» (18), confundindose claramente o corpus mysthicum da obra com o corpas mechanicum em que esta se materializa e lhe serve de suporte.

    Este último acórdáo destacase ainda por reconhecer como reproduqao do programa de computador a instalaçao de urna copia licenciada num computador a que tém acesso terceiros, que nao o licenciado, ainda que tudo se passe dentro de urna mesma organizaçao e utilizando urna rede informática (19).

    Na doutrina, entre a aprovaçao da Directiva em 1991 e a sua transposiçao para o direito interno portugués em 1994, deram a estampa diversos trabalhos de autores nacionais que teremos presentes no decurso desta exposiçao (20). Após a publicaçao do Dec.-Lei n.° 252/94 escassas foram, até hoje, as publicares a comentálo (21) e, por outro lado, ainda nao se conhecem decisóes judiciais dos tribunais superiores no ámbito desta nova lei.

    Passemos agora, como prometido, a análise mais detalhada da posiçáo defendida por Oliveira Ascensáo quanto a qualificagao ou nao dos programas de computador como obras literarias no sentido do art.° 2.° CDADC e do art.° 2.° da Convençao de Berna (Acto de Paris)(22).

    O Prof. Oliveira Ascensáo é, sem dúvida, o autor que mais atenta e profundamente analisou na doutrina portuguesa o tema da tutela jurídica dos programas de computador(23). Partindo de um sólido dominio da dogmática tradicional do Direito de Autor, foi formando desde muito cedo urna opiniáo muito negativa em relaçáo á compatibilidade dos programas de computador, dada a sua particular natureza e características, com os principios fundamentáis do Direito de Autor(24), tal qual este ramo do Direito se veio a afirmar no último século da sua historia recente.

    Se para uns a historia do Direito de Autor tem sido a historia da sua adaptaçao aos produtos das novas tecnologías e formas de expressáo da criatividade humana, para outros cada nova realidade, produto da actividade intelectual, encontra sempre obstáculos insuperáveis na falta de adequaçao das normas legáis que lhes sao, naturalmente, anteriores e que, por isso, as nao puderam contemplar expressamente.

    A historia repetese com o surgimento da fotografía, do cinema ou, agora, dos programas de computador. Ainda que possam ter todo o seu cabimento entre as obras literarias, científicas, musicais ou das artes plásticas, tradicional objecto do Direito de Autor, nao há dúvida que quaisquer novas realidades levantam sempre, como é natural, algumas objecgóes da parte do regime jurídico estabelecido antes do seu surgimento e que, por suposto, as nao teve em considerado a época da respectiva formulaçao.

    A lei é suficientemente sabia, porém, para ter estabelecido enumerares meramente exemplificativas no elenco das obras protegidas; mas nao poderia ter sido visionaria bastante para prever um sistema jurídico omnicompreensivo de todas as formas de expressáo da criatividade humana no campo literario, científico, musical e das artes plásticas passadas, presentes e futuras,

    É elementar papel do intérprete e da jurisprudencia, com respeito pelos principios e atentos os objectivos tidos em vista pelo regime legal respectivo, proceder á sua adequaçao as novas realidades, pelo menos até que surjam oportunamente os «reparos» legislativos que se tenham por indispensáveis. Assim o determina, desde logo, a perspectiva actualista assumida pelo n.° 1 do art.° 9.° do Código Civil portugués em materia de interpretado da lei(25).

    Nao creio, pois, que haja urna luta a travar no ámbito do Direito de Autor contra figuras espurias, como os programas de computador, por forma a mantélas a distancia, preservando «um núcleo, fundado na criatividade, em que se mantenha a pureza da visáo do direito de autor»...

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