A contratação pública nos sectores com regime especial - água, energia, transportes e telecomunicações

AutorRui Medeiros
Cargo del AutorProfessor da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa
Páginas137-182

Ver nota 1

Page 137

§ 1º Introdução
1.1. Considerações gerais

Embora os Tratados constitutivos das Comunidades Europeias não contivessem previsões específicas sobre a contratação pública, há muito que se reconheceu a aplicabilidade neste domínio do princípio da igualdade, da liberdade de circulação de mercadorias, do direito de estabelecimento, da liberdade de prestação de serviços e das normas de concorrência2. Faltava, em qualquer caso, concretizar os referidos princípios. Não surpreende, por isso, que, sobretudo desde o início dos anos setenta, as instâncias comunitárias tenham produzido direito derivado em vista, justamente, à concretização e ao desenvolvimento dos referidos princípios no domínio dos contratos públicos, «sujeitando a adjudicação de posições contra-

Page 138

tuais a regras procedimentais definidas (mise en concurrence) ou, pelo menos, a procedimentos de publicidade (obligation de publicité3.

A primeira geração de directivas liberalizadoras no âmbito da contratação pública, da década de setenta, não impediu que, no Livro Branco da Comissão para a realização do mercado interno, publicado em 1985, se reconhecesse que os Estados-membros continuavam, em larga medida, a não cumprir as obrigações que, em matéria de contratação pública, resultavam quer do Tratado de Roma quer das directivas entretanto aprovadas4. Assim, por exemplo, em 1987, era ainda visível uma significativa diferença entre o nível geral das importações nacionais de bens e serviços e as importações conexas com a contratação pública. Basta lembrar que, em França, enquanto as importações gerais correspondiam a cerca de 20% da procura interna, as importações em compras públicas não ultrapassavam 1,6%5. E, em geral, embora o valor das compras públicas ascendesse a cerca de 15% do PIB europeu, o grau de comunitarização era mínimo, correspondendo a contratação com empresas de outros Estados-membros a um modestíssimo valor de 2%6.

A segunda geração de directivas procura combater mais eficazmente as barreiras invisíveis (não tarifárias) do mercado, avançando com novas soluções susceptíveis de melhorar a transparência dos procedimentos de preparação e adjudicação dos contratos públicos e, bem assim, de reforçar os mecanismos de controlo da observância da respectiva normação comunitária. Concretamente, para além da directiva recursos (Directiva 89/665/CEE), a Directiva 89/440 CEE vem modificar substancialmente a directiva clássica sobre contratos públicos de obras, isto é, a Directiva 71/305/CEE. Mais tarde, a Directiva 92/50/CEE abre à concorrência comunitária os contratos públicos de serviços. Posteriormente, em 1993, numa linha de continuidade, o mesmo Conselho das Comunidades Europeias aprova duas novas Directivas -93/36/CEE e 93/37/CEE-, as quais, no essencial, codificam, racionalizam e clarificam as velhas e modificadas Directivas 71/305/CEE e 77/62/CEE, respeitantes, respectivamente, à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitadas de obras públicas e de fornecimento de direito público7.

Actualmente, após as alterações introduzidas pela Directiva 97/52/CE, a matéria da contratação pública em geral está disciplinada pelas Directivas 93/36/CEE, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de fornecimentos,

Page 139

93/37/CEE, concernente à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas, e 92/50/CEE, respeitante à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços8, estando na forja uma nova Directiva, que, entre outras coisas, pretende integrar num único diploma as três referidas directivas.

1.2. A abertura à concorrência dos sectores excluídos

As primeiras directivas sobre contratos públicos de obras e de fornecimento não se aplicavam aos sectores da água, energia, transportes e telecomunicações, isto é, aos sectores que compreendiam serviços públicos essenciais ou universais (ou, mais genérica e propriamente, serviços ao público) dependentes de custosas redes e infra-estruturas fixas com uma transcendente implantação espacial ou territorial9.

A exclusão inicial desses sectores deveu-se, desde logo, à verificação de que as entidades que neles actuavam estavam sujeitas ora ao direito público ora ao direito privado (considerandos da Directiva 90/531/CEE), apresentando diferentes status jurídicos. Por outro lado, tratava-se de domínios não abertos à concorrência e onde proliferava a atribuição pelas autoridades nacionais de concessões e de direitos de exclusivo. A contratação pública nestes sectores era, por fim, vista como um importante instrumento de política económica e industrial, sendo visível -fosse em virtude da participação do poder público no capital social das empresas, fosse através da sua representação nos respectivos órgãos de administração, gestão ou supervisão- a influência dos Estados no comportamento das entidades que actuavam neste domínio, levando-as, por exemplo, a contratar com empresas nacionais, ainda que em condições economicamente menos vantajosas10.

Todavia, independentemente da evolução do processo de liberalização propriamente dito de cada um dos sectores (temática que extravasa do objecto desta intervenção), as instâncias comunitárias apercebem-se, sobretudo a partir da década de oitenta, da imprescindibilidade de abrir igualmente à concorrência a contratação nos sectores da água, energia, transportes e telecomunicações. A Directiva 90/531/CEE concretiza esta ideia no âmbito dos contratos de obras e de fornecimento. Daí que, a partir desse momento, deixasse de ter sentido continuar a falar em sectores excluídos, devendo antes aludir-se a sectores especiais, objecto de uma regulamentação menos intensa11.

Page 140

Noutro plano, agora numa perspectiva processual, a Directiva 92/13/CEE veio, por seu turno, consagrar regras relativas à coordenação das disposições respeitantes à aplicação das normas comunitárias nos procedimentos de formalização dos contratos das entidades que operem nos sectores da água, energia, transportes e telecomunicações.

Mais tarde, após a aprovação da Directiva 92/50/CEE, que abriu à concorrência comunitária os contratos públicos de serviços, impunha-se regular igualmente os contratos públicos de serviços nos sectores até então excluídos. A Directiva 93/38/CEE veio integrar uma tal lacuna e, simultaneamente, em nome da clareza e da segurança jurídicas, condensar num texto único as disposições da Directiva 90/531/CEE12. Entretanto, depois da pequena modificação introduzida no texto da Directiva 93/38/CEE pela Directiva 94/22/CE, relativa às condições de concessão e de utilização das autorizações de prospecção, pesquisa e produção de hidrocarbonetos, a Directiva 93/38/CEE foi modificada, no seguimento do acordo sobre contratação pública de 1994 celebrado no quadro do GATT, pela Directiva 98/4/CE13.

Neste momento, existe uma proposta da Comissão, entretanto já modificada14, no sentido da adopção, pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho, de uma nova directiva relativa à coordenação dos processos de adjudicação nos sectores da água, da energia e dos transportes, bem como no sector dos serviços postais, mas já não no sector das telecomunicações em virtude da liberalização e da concorrência efectiva que vigora hoje neste domínio15.

1.3. Plano da exposição

É neste contexto que surge a temática aqui em apreciação. No Congresso Luso-Espanhol de Professores de Direito Administrativo, o que se pretende com a presente intervenção é uma primeira -e inevitavelmente incompleta- aproximação ao regime português da contratação pública nos sectores com regime especial. Para o efeito, na análise do modo como o legislador português concretiza a normação comunitária nos domínios da água, energia e transportes e telecomunicações, importa distinguir o plano substantivo dos aspectos processuais e sancionatórios.

Page 141

§ 2º A concretização no plano substantivo da Directiva 93/38/CEE
2.1. Considerações gerais

2.1.1. O legislador português, muito antes de proceder formalmente à transposição da Directiva 93/38/CEE para a ordem jurídica interna, optou por não excepcionar do âmbito do regime geral aplicável aos procedimentos de adjudicação de contratos de empreitada de obras públicas e de concessões de obras públicas as empreitadas e as concessões de obras públicas nos sectores tradicionalmente excluídos.

É certo que, nos termos da alínea j) do n.º 1 do artigo 77.º do Decreto-Lei n.º 197/99, de 8 de Junho, o procedimento geral estabelecido no quadro da contratação pública relativa à locação e aquisição de bens móveis e serviços não se aplica aos procedimentos a que se refere a Directiva n.º 93/38/CEE.

Todavia, em matéria de empreitada de obras públicas e de concessões de obras públicas, nenhuma excepção semelhante consta do Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março, pelo que, até à aprovação, publicação e entrada em vigor do diploma que procedeu especificamente à transposição da Directiva Sectores Excluídos forçoso era concluir que a...

Para continuar leyendo

Solicita tu prueba

VLEX utiliza cookies de inicio de sesión para aportarte una mejor experiencia de navegación. Si haces click en 'Aceptar' o continúas navegando por esta web consideramos que aceptas nuestra política de cookies. ACEPTAR