Ruptura e continuidade no Estado Brasileiro, 1750-1850

AutorAmo Wehling
CargoPresidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Páginas230-240



Introducáo

1. Move-nos neste estudo responder á seguinte pergunta: em que consistiram as rupturas e as continuidades na formagáo do estado nacional brasileiro, tomando por evidencia a forma como se constituiu a partir de sua definigáo constitucional em 1824 e o seu desempenho institucional ñas primeiras décadas de existencia ?

2. A pergunta já foi formulada a partir de diferentes ángulos: o das formas de governo, em geral partindo-se do suposto que a alternativa monárquica mitigou a ruptura; o da historia económica, acentuando-se a continuagáo da dependencia externa que caracterizou a economia colonial; o da historia social, concluindo-se, de modo semelhante á anterior, que a independencia política nao alterou as estruturas sociais precedentes.

3. Pretendemos responde-la enfocando a questáo sob o ángulo da historia das instituigoes e, consequentemente, da problemática do poder e de sua legitimagáo.

4. Desse modo, tres abordagens complementares seráo propostas, a da evolugáo política do estado, a do universo ideológico que buscou legitimá-la e a da estrutura do estado.

@I.- Descontinuidade política - a emancipaçáo

5. A condigáo colonial sofreu urna clara modificagáo com a ascensáo ao poder do marqués de Pombal. O "empirismo administrativo" anterior, embora soubesse ser centralizador e eficiente em diferentes circunstancias, como no fato novo que representou, em materia de governo, o desafio das regióes mineradoras, nao assumiu contornos táo racionalizadores e objetivos como os da época pombalina.1 Com os burócratas desta geragáo e seus sucessores ¡mediatos aconteceu no Brasil, como na vizinha América hispánica, pela primeira vez, urna efetiva, geral e sistemática política centralizadora do estado.2

6. Formados pelo racionalismo ilustrado, orientados por secretarios de estado conscientes de seu papel, instruidos por determinagóes bastante precisas e devendo em alguns casos deixar informagóes circunstanciadas para os sucessores, os vice reis e governadores de capitanía muitas vezes deixaram os "homens bons" das vilas e cidades saudosos dos tempos em que o poder real era urna entidade mais ou menos longínqua, que pouco interfería em suas vidas. Além disso, eram acompanhados por um séquito de magistrados, contadores, militares e outros detentores de oficios públicos que ocupavam instituigoes e cargos recém criados ou preexistentes, mas com atribuigóes ampliadas, que aumentavam os tentáculos desse estado num grau até entáo desconhecido.3

7. Agora, ao contrario, a prioridade era neutralizar o poder daqueles aos quais os documentos oficiáis chamavam de "régulos" ou "magnatas" e que nos dois séculos anteriores tanto haviam feito para afirmar sua autonomía em relagáo aos reinóis, fossem comerciantes ou funcionarios.



8. Se á nova forga do estado acrescentarmos as dificuldades económicas conjunturais, como a crise da economia mineradora e as solugóes insatisfatórias que acarretou - a reconversao económica ou a diáspora - e os novos tempos que a independencia norte-americana e a Revolugao Francesa anunciavam, teremos delineado o quadro que precedeu a transferencia de D. Joao para o Brasil.

9. Os síntomas, na colonia, foram abundantes. A poetisa Bárbara Heliodora dizia que, tratando-se do rei, o melhor era "calar e obedecer". Poucos anos depois o cronista e professor regio Luis dos Santos Vilhena lastimava a condigao de "viver em colonias". A insatisfagao de parte da élite mineira patenteou-se na Conjuragao de Tiradentes; em 1794 intelectuais foram processados no Rio de Janeiro por supostas atitudes sediciosas, em 1798 deu-se a Conjuragao Baiana e em 1801 a dos Suassuna.

10. Poder-se-ia dizer que ocorria no Brasil, em ponto menor, o mesmo que na América espanhola, desde que a política de Carlos III resolverá reforgar o controle de Madri, hispanizando a administragao pública colonial, retirando os criollos dos cargos - inclusive os de ministros das poderosas audiencias - que por quase dois séculos haviam monopolizado.4

11. Ñas duas últimas décadas do século XVIII, já tendo saído Pombal de cena, a política de afirmagao burocrática do estado continuou essencíalmente a mesma. Mas os tempos eram outros e assim como Aranda, Campomanes e Godoí, na Espanha, falavam em reestruturar as relagóes com as colonias, inclusive divídindo-as pelos infantes da Casa Real, D. Rodrigo de Sousa Coutínho propunha, entre outros planos de reorganizagao da máquina pública, um entao audacíoso projeto de "federagao" imperial que igualasse o status político do Brasil e de Portugal.5

12. Os acontecimentos que culminaram com a transferencia da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro trouxeram por sua própria lógica o encaminhamento das novas solugóes: a abertura comercial do Brasil, atendendo simultáneamente ás élites locáis e ao comercio inglés e a instalagao dos organismos centráis do estado lusitano na colonia, transplantados, no dizer irónico de Hipólito José da Costa, "pelo almanaque de Lisboa".

13. Corolario dessa situagao e passo decisivo para o encaminhamento institucional da organizagao política portuguesa foi a criagao da monarquía dual, em 1815. O Reino Unido foí originalmente proposta do ministro Silvestre Pínheiro Ferreíra, que estudara o assunto a pedido de D. Joao, no ano anterior, justifícando-a do seguinte modo:

Em tempos ordinarios, Senhor, bastam providencias ordinarias; mas ñas extraordinarias, e sobremaneira críticas circunstancias, em que se acha Portugal, a Europa, o mundo inteiro, sao precisas grandes e extraordinarias providencias, para assegurar a integrídade da monarquía, sustentar a dignidade do trono e manter o sossego e a felicidade dos povos..."6

14. A monarquía dual procurou consolidar urna nova situagao política e tinha, no Brasil, um número razoavel de adeptos na élite sócío-económica de grandes propietarios agrícolas e pecuarístas, detentores de um vasto capital aplicado em escravos. A solugao isolava, por um lado, republicanos que poderiam seguir o modelo dos Estados Unidos ou mesmo o dos jacobinos franceses; a estes faltava, entretanto, um elemento social importante: urna classe media urbana desvinculada da dependencia á mió de obra escrava. Por outro lado, isolava os neo-colonialistas, concentrados no alto comercio portugués, interessados no retorno ao statu quo.7 Mesmo a Revolugáo Pernambucana de 1817, que teve fortes tragos republicanos, tinha como denominador comum mais a antiga reagáo nativista local ao comercio portugués, do que urna clara definigao por um novo modelo político que separasse todo o Brasil do dominio portugués.

15. A crise política de 1821-1822, que culminou com a emancipagao política do país em setembro de 1822, representou urna ruptura entre os dois países e assinalou o fracasso da solugao política do Reino Unido.

16. O que a historiografía brasileira tem demonstrado é a fidelidade nao apenas do príncipe regente D. Pedro, mas da cúpula política "moderada" que o cercava, ao modelo político da monarquía dual. A evolugao da conjuntura política ao longo desses dois anos evidencia que foi a agio das liderangas políticas ñas Cortes portuguesas, inclusive neutralizando a atuagao de D. Joao VI, que colocou o Brasil diante do impasse da recolonizagao ou independencia.

17. O espectro político-ideológico brasileiro neste momento mostrava a existencia de tres grupos de opiniao: a maioria "moderada" defensora das instituigoes vigentes, isto é, da monarquía dual; setores minoritarios republicanos e separatistas; e neo-colonialistas.

18. Entre os primeiros, eram importantes figuras José Bonifacio de Andrada e Silva, Joaquim Gongalves Ledo, Januário da Cunha Barbosa e José da Silva Lisboa, futuro visconde de Cairu, os quais, a despeito de diferengas individuáis, representavam bem a concepgao de um país que deveria permanecer unido, sob um regime constitucional e preferentemente monárquico, garantidor da estabilidade social e da propriedade. Identificavam-se com os proprietários rurais das diferentes regióes do país, aqueles que Oliveira Viana considerou a aristocracia proprietária responsável pela estabilidade política e garantidora da integridade territorial do país.8

19. Nao havia, como seria de esperar, inteira coincidencia de opinióes neste grupo. Se todos consideravam a grande propriedade quase como co-natural ao país, José Bonifacio tinha urna opiniao crítica sobre a escravidao que certamente nao agradava aos latifundiários déla dependentes.9 Adeptos do liberalismo económico, curvaram-se as pressóes inglesas menos por crerem cegamente em Adam Smith do que pela constatagao pragmática do poderio británico. Mesmo o visconde de Cairu, principal introdutor dessas doutrinas, nao era um anti-protecionista á outrance.10

20. Esse grupo possuía, contudo, um referencial negativo, isto é, era-lhes bem claro o que nao conviría ao país: a guerra civil, como comegava a ocorrer na América hispánica; a fragmentagáo política, como se dera no vice reino do Prata, permanente espelho político; a ditadura republicana, como acontecerá com a Convengáo jacobina; a rebeliáo dos escravos, como sucederá no Haiti.

21. A monarquía constitucional, conforme concebida á época da Restauragáo, parecia-lhe a solugao ideal para ¡solar jacobinos...

Para continuar leyendo

Solicita tu prueba

VLEX utiliza cookies de inicio de sesión para aportarte una mejor experiencia de navegación. Si haces click en 'Aceptar' o continúas navegando por esta web consideramos que aceptas nuestra política de cookies. ACEPTAR