A revisão das diretivas do abuso de mercado: novo âmbito, o mesmo regime

AutorHelena Magalhães Bolina
CargoDoctoranda en la Facultad de Derecho de la Universidad Nova de Lisboa. Directora del Departamento de Contencioso de la Comisión del Mercado de Valores Mobiliarios
Páginas26-42

Page 26

Introdução

Em 16 de abril de 2014 foi publicado o regulamento (UE) n.º 596/2014 (adiante MAR1) e a diretiva (do Parlamento e do Conselho) 2014/57/UE (adiante nova MAD2) que vieram substituir a anterior diretiva sobre abuso de mercado (adiante MAD) e respetivos diplomas comunitários de concretização.

A publicação destes dois novos diplomas traduz a conclusão de um processo de avaliação do regime comunitário sobre abuso de mercado que teve início em 2007, pouco tempo após a sua transposição pelos Estados membros.

O presente texto tem como objetivo relatar as principais questões sobre que incidiu esse debate e enunciar as alterações introduzidas pelo novo regime comunitário que entrou em vigor em 2016.3

I A história do regime comunitário do abuso de mercado

O pacote comunitário sobre abuso de mercado, agora revisto, data de 2003 e é constituído por um diploma de nível 1 - a diretiva 2003/06/CE (MAD) - e quatro diplomas de nível 2: três diretivas e um regulamento.4

A publicação, em 2003 e 2004, deste conjunto de diplomas comunitários sobre este tema inseriu-se no âmbito do objetivo de criação do mercado financeiro único. À data (maio de 2001) em que a Comissão Europeia apresentou uma proposta de diretiva sobre o abuso de mercado,5não existia um regime europeu harmonizado sobre manipulação de mercado, uma vez que o único diploma comunitário vigente nesta matéria era a diretiva 89/592/CE que tinha exclusivamente como âmbito o abuso de informação privilegiada.

Foi o objetivo de estabelecer um level playing field ao nível europeu também quanto à prevenção da manipulação de mercado que esteve na origem da criação deste regime,6para

Page 27

além de preocupações de reforço da supervisão desta matéria e da repressão dos respetivos ilícitos.

A designação abuso de mercado abrange, assim, o conjunto de normas destinadas a proteger a transparência e a regularidade do funcionamento do mercado e contempla os seguintes temas: abuso de informação privilegiada, manipulação de mercado, deveres de informação ao público e às entidades de supervisão, deveres de elaboração de listas de insiders e regulação da matéria relativa à divulgação das recomendações de investimento.

Em 2007, após a entrada em vigor na maioria dos Estados membros dos diplomas de transposição das diretivas, a Comissão Europeia solicitou a um grupo de peritos - o ESME, European Securities Markets Expert Group7- que emitisse um parecer sobre a MAD que foi concluído em julho de 20078e onde são já enunciadas algumas dúvidas quanto a certos aspetos do regime, designadamente no que respeita à definição de informação privilegiada e aos critérios do diferimento de divulgação da informação.

Em novembro de 2007, o CESR9elaborou, a pedido da Comissão, uma lista das sanções na área do abuso de mercado em todos os Estados membros,10da qual resultava alguma disparidade ao nível das sanções definidas: as sanções pecuniárias previstas nas várias legislações nacionais oscilavam entre um máximo de 1200 euros e sanções pecuniárias ilimitadas e, no caso dos países em que o abuso de informação e a manipulação de mercado eram criminalizadas, entre o máximo de um ano de pena de prisão e um máximo de 15 anos.11

Finalmente em novembro de 2008, a Comissão Europeia organizou uma conferência subordinada ao tema «Reviewing Market Abuse Regime» onde estiveram presentes participantes do mercado, supervisores e investidores, para debater o regime, a aplicação das diretivas e a necessidade da sua revisão.12

Na sequência destes contactos e das respostas que a Comissão Europeia foi recebendo sobre a matéria, em abril de 2009, a Comissão Europeia divulgou uma call for evidence13sobre a eventual revisão das diretivas do abuso de mercado enunciando as questões que tinham sido debatidas ao longo do processo e que a Comissão incluiu nesse inquérito destinado a delimitar a necessidade e o âmbito de uma eventual revisão.14

Page 28

As principais questões identificadas nesse processo como carecendo de revisão incidiam essencialmente sobre os seguintes temas: o âmbito de aplicação das diretivas, a definição de informação privilegiada e de manipulação de mercado e a questão do reforço da supervisão.15

A Comissão Europeia apresentou a primeira proposta de Regulamento16e de nova

Diretiva17sobre abuso de mercado em outubro de 2011. Em julho de 2012 a Comissão apresentou propostas alteradas18e, finalmente, em abril de 2014 foram publicados ambos os diplomas.

A revisão incidiu sobre os temas identificados nas consultas e no debate prévio. Todavia, como se verá, nos pontos seguintes, muitas das alterações inicialmente propostas para dar resposta a essas questões acabaram por ser revertidas e, em relação a muitos aspetos, o texto final do Regulamento é exatamente idêntico àquele que constava da MAD de 2003.

II Os temas da revisão
1. O âmbito de aplicação do regime comunitário sobre Abuso de Mercado

O âmbito de aplicação das diretivas do abuso de mercado de 2003-2004 encontra-se definido no artigo 9.º da MAD. Em função do objetivo expresso na diretiva de defesa da integridade dos mercados regulamentados, a definição desse âmbito fazia-se essencialmente em função dos instrumentos financeiros admitidos à negociação em mercado regulamentado.19É o que resulta dos artigos 1.º, nº 3 e 9.º da MAD.

Ainda assim, existia uma diferença entre, por um lado, o âmbito de aplicação do abuso de informação e o da manipulação de mercado.

Com efeito, no que respeita ao abuso de informação, o artigo 9.º da MAD referia instrumentos financeiros admitidos à negociação em mercado regulamentado, em relação aos quais se detenha informação privilegiada mas também outros instrumentos financeiros não admitidos mas cujo valor depende do valor de instrumentos financeiros admitidos a mercado regulamentado – artigo, 9.º, §2º.

O mesmo não sucedia relativamente à manipulação de mercado a que é feita referência apenas no §1 e não no §2, ou seja, ou seja apenas a parte em que o artigo refere instrumentos financeiros admitidos à negociação em mercado regulamentado.

Quer no caso do abuso de informação, quer no caso da manipulação de mercado o âmbito de aplicação da diretiva abrange quaisquer operações realizadas sobre instrumentos admitidos à negociação em mercado regulamentado, independentemente de onde tais operações se realizem. Ou seja, as operações sobre os instrumentos financeiros não têm de ser realizadas em mercado regulamentado.

Page 29

Atendendo à redação do artigo 9.º da MAD de 2003, no caso da manipulação de mercado, suscitava-se a dúvida sobre se estariam abrangidas no âmbito da manipulação de mercado operações que incidissem sobre instrumentos financeiros não admitidos à negociação em mercado regulamentado.

Assim, a questão acerca do âmbito de aplicação do regime do abuso de mercado contempla, na verdade, dois aspetos distintos:

Um, relativo ao mercado ou sistema onde os instrumentos financeiros devem ser negociados para estarem abrangidos pelo âmbito do diploma e pela aplicação de todos os deveres nele previstos.

Outro, relativo ao facto de as proibições de abuso de informação e manipulação de mercado poderem ser preenchidas através de operações sobre quaisquer instrumentos financeiros, ainda que não sejam negociados em qualquer mercado mas apenas fora dele, como é o caso de alguns derivados, desde que entre estes e os instrumentos financeiros abrangidos exista uma relação de influência.

a) Alargamento do âmbito a MTF e OTF

Quanto ao primeiro aspeto apontado, a restrição do âmbito de aplicação das diretivas aos instrumentos admitidos a mercado regulamentado foi uma das principais dificuldades apontadas às diretivas, tendo a vista a necessidade de um sistema eficaz de tutela do regular funcionamento do mercado.

Com efeito, conforme se enuncia na call for evidence20, desde a publicação da MAD registouse um aumento dos volumes transacionados fora de mercado regulamentado (market shift), designadamente em MTFs21após a DMIF, sendo que estes não estavam abrangidos pelos requisitos da MAD.

Cumpre, todavia, precisar o que significa o facto de os MTFs não estarem abrangidos no âmbito da MAD, uma vez que tal afirmação não é inteiramente rigorosa.

Na verdade, os MTF só não estão abrangidos pela proibição de transações constante da MAD relativamente aos instrumentos financeiros que não estejam também admitidos à negociação em mercado regulamentado. Ou seja, as operações sobre instrumentos financeiros admitidos a mercado regulamentado e que sejam simultaneamente negociados num MTF estavam sempre abrangidas no âmbito da MAD, nos termos do disposto no artigo
9.º, nº 1, quer na parte em são realizadas em mercado regulamentado, quer na parte em que são realizadas em MTF ou em qualquer outro local.

Em rigor, o que não estava abrangido no âmbito da MAD, não é o MTF em si mas os instrumentos financeiros que não estão admitidos à negociação em mercado regulamentado, nem em relação a eles foi solicitada a admissão.

Para além das normas que proíbem o abuso de informação e a manipulação de mercado, há que ter em conta que o regime do abuso de mercado abrange um conjunto de deveres que têm uma função preventiva dessas infrações. É o caso do dever a cargo dos emitentes de divulgação de informação privilegiada previsto no artigo 6.º, n.º 1 da MAD de 2003 e no artigo 248.º do Código do Valores Mobiliários (adiante CódVM), da elaboração de listas de insiders, da comunicação de transações de dirigentes, da comunicação de operações suspeitas.

Ora, nos termos da MAD de 2003, este conjunto de deveres apenas se aplicava a valores...

Para continuar leyendo

Solicita tu prueba

VLEX utiliza cookies de inicio de sesión para aportarte una mejor experiencia de navegación. Si haces click en 'Aceptar' o continúas navegando por esta web consideramos que aceptas nuestra política de cookies. ACEPTAR