Reprodução assistida com material genético de paciente comatoso masculino: um estudo acerca da colisão entre a autonomia/dignidade do paciente e a liberdade reprodutiva da mulher em face dos princípios e direitos fundamentais (Português)

AutorTiago Mafra Lima - Paulo Henrique Burg Conti
CargoAcadêmico do Curso de Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense - Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Especialista em Ciências Penais e Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Páginas60-71

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I Introdução

Os últimos séculos foram marcados por grandes transformações científicas e sociais. Neste período, mudou o mundo e a percepção humana. O positivismo do final do século XIX, otimista em relação ao progresso e cultuador da ciência e da industrialização, prognosticou pela construção de novos produtos o caminho para o futuro. O século XX, existencialista, trouxe consigo novos paradigmas e colocou o ser humano como parte e caminho desse progresso.

Nesse novo contexto de inovações em diferentes campos, inclusive, no da biotecnologia, emergem dúvidas e questionamentos de natureza ético-axiológica quanto à possibilidade de realização de determinados procedimentos médicos, como no caso da reprodução assistida com uso de material genético de paciente comatoso masculino. Além disso, apresenta-se a necessidade de adequação da nova realidade biomédica com o conjunto de direitos presentes na Constituição pátria e no rol dos Direitos Humanos.

Nesse sentido, o presente estudo pretende realizar uma análise de algumas técnicas de reprodução assistida e das circunstâncias do estado de coma irreversível, assim como dos princípios constitucionais da liberdade reprodutiva, da dignidade humana e da autonomia, buscando estabelecer os critérios bioéticos e jurídicos para o exercício da prática de reprodução assistida com material genético de paciente masculino em estado de coma irreversível.

II O procedimento de reprodução assistida e o estado de coma irreversível

A reprodução natural humana é consequência do encontro sexual de humanos de gêneros opostos e em idade fértil cujas condições são as de o homem produzir nos testículos espermatozóides com capacidade de fecundar e a mulher produzir nos folículos ovarianos um óvulo maduro. Havendo o encontro de pelo menos um desses espermatozóides com o óvulo na tuba uterina, desencadeiam-se os eventos que culminarão com a fusão dos pró-núcleos masculino e feminino1.

Quando houver impossibilidade de reprodução humana pelo método natural, a reprodução assistida ou artificial será uma alternativa possível. Segundo Diniz2, a reprodução assistida é definida como um conjunto de operações para unir, artificialmente, os gametas feminino e masculino, dando origem a um novo ser. Atualmente, as técnicas mais comuns de reprodução assistida, são a inseminação artificial (AI) e a fertilização in vitro (FIV).

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A primeira é uma técnica de reprodução assistida relativamente simples e bastante antiga, consistindo na introdução do esperma na vagina, por meio de uma cânula3. Assim, a inseminação artificial se dá por uma transferência mecânica de espermatozóides, já previamente recolhidos e tratados, inseridos no interior do aparelho genital feminino4.

Já a fertilização in vitro é uma técnica relativamente jovem, porém mais complexa. O êxito dessa técnica só foi possível a partir do melhoramento da técnica anterior e, sobretudo, com a possibilidade de congelamento do sêmen, o que permitiu um espaço maior de tempo entre a doação e a fecundação. A técnica in vitro consiste em permitir o encontro do óvulo com o espermatozóide fora do organismo da mulher em uma placa de cultura ou em um tubo de ensaio5. Em linhas gerais, esse método de fertilização consiste em retirar por laparoscopia um ou vários óvulos da mulher doadora. A produção desses óvulos é, geralmente, provocada por estimulação hormonal, sendo em seguida colocados em meio nutritivo. Na sequência do procedimento, aos óvulos reúne-se o esperma, havendo a fecundação. Após horas ou até dois dias, o óvulo é colocado no útero da mulher, sendo que se houver a nidificação a gravidez segue seu ritmo natural6.

Existem ainda outras técnicas de reprodução assistida, mas todas aperfeiçoadas a partir da técnica in vitro. É importante ressaltar que com a técnica in vitro não há necessidade da existência de um imperativo temporal entre o momento da doação dos gametas masculino e feminino, uma vez que podem ser retirados mesmo estando o doador em coma. Essa técnica possibilita que o procedimento ocorra sem a anuência do doador comatoso que se encontra em estado não consciente.

Por outro lado, o estado de coma é uma síndrome qualificada por um conjunto de sinais e sintomas que pode ter várias etiologias, caracterizando-se por manifestações clínicas importantes que indicam a falência dos mecanismos normais de manutenção do estado de consciência7. O coma se refere, portanto, ao estado clínico em que o paciente não responde a estímulos, sendo que esse estado pode ser causado por lesões estruturais no tronco cerebral, tálamo ou hemisférios cerebrais e por anomalias metabólicas8.

No que se refere ao coma irreversível ou EVP (estado vegetativo persistente), pode-se afirmar que é uma síndrome com várias causas em que o paciente sofre danos cerebrais graves, sem consciência detectável. Nesse entendimento o Conselho Regional de Medicina do Estado do Paraná no Parecer nº 1.243/2000 define que nas situações de coma irreversível existe ainda algum grau de funcionamento do

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tronco cerebral, com uma lesão severa e difusa dos hemisférios cerebrais. Nesta situação o paciente deixa de ter vida voluntária, mantendo-se apenas as funções básicas do organismo. Portanto, no coma irreversível existe ainda vida na pessoa acometida9.

Assim, em tal estado de coma irreversível o paciente encontra-se em estágio não consciente, mas apesar de remota, existe a possibilidade de retomada da consciência por parte do paciente comatoso. Nessas situações, verificada tal circunstância, determina o Código de ética médica brasileiro que a conduta a ser seguida e a real situação deste paciente deva ser discutida amplamente com os familiares. Porquanto, o Conselho Federal de Medicina não orienta pela facilitação da morte, mas por outro lado, não obriga o empreendimento de ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas10.

III A dignidade humana e a liberdade reprodutiva no espectro do Estado Democrático de Direito

O conteúdo conceitual da dignidade humana tem sido objeto de análise por parte de inúmeras correntes de pensadores e em diferentes períodos históricos. Apesar disso, uma conceituação clara e precisa do que efetivamente é a dignidade humana, inclusive para efeitos de proteção como norma jurídica fundamental, se revela difícil de ser obtida. Tal dificuldade, como devidamente destacada na doutrina, é oriunda do fato de tratar-se de um conceito com contornos vagos e imprecisos, caracterizado por sua porosidade, assim como por sua natureza polissêmica11.

No presente estudo, não obstante a existência de uma pluralidade de dimensões conceituais acerca da dignidade humana12, discorrer-se-á sobre as que entendemos ser as mais incidentes no plano jurídicoconstitucional, quais sejam, a dimensão ontológica e a dimensão histórico-cultural.

No plano de sua dimensão ontológica, a dignidade humana é entendida como uma qualidade intrínseca da pessoa humana, sendo irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado13. Tal concepção remonta à matiz kantiana, na qual a dignidade representa uma qualidade de autonomia ética do ser humano, de liberdade moral, uma vez que essa, entendida como a possibilidade de agir em conformidade com a representação de certas leis morais, é um atributo apenas encontrado nos seres racionais14.

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Assim, na concepção de Kant, a humanidade em si é uma dignidade, uma vez que o ser humano não pode ser usado meramente como um meio por outro ser humano, mas deve sempre ser vislumbrado como um fim em si mesmo. É precisamente nisso que consiste sua dignidade, pelo que o ser humano se eleva acima de todos os outros seres do mundo que não possuem natureza humana15.

Por outro lado, na dimensão histórico-cultural da dignidade, considera-se que os valores espirituais e morais não são inatos ao ser humano. A dignidade, nesse viés, reside justamente no fato de que está por ser construída ao longo da vida, sendo os momentos culturais e...

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