A representação politica no constitucionalismo monárquico conservador: O projeto eleitoral de 1823-1824

AutorJosé Domingues - Vital Moreira
CargoUniversidade Lusíada, Norte (Porto) - Universidade Lusíada, Norte (Porto), Universidade de Coimbra
Páginas809-840
Revista de Historia Constitucional
ISSN 1576-4729, n.20, 2019. http://www.historiaconstitucional.com, págs. 809-840
A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA NO
CONSTITUCIONALISMO MONÁRQUICO CONSERVADOR
EM PORTUGAL: O PROJETO ELEITORAL DE 1823
POLITICAL REPRESENTATION UNDER THE
CONSERVATIVE MONARCHIC CONSTITUTIONALISM IN
PORTUGAL: THE ELECTORAL DRAFT LAW 1823
JOSÉ DOMINGUES
Universidade Lusíada - Norte (Porto)
VITAL MOREIRA
Universidade Lusíada - Norte (Porto) / Universidade de Coimbra
SUMÁRIO:
I. INTRODUÇÃO. II. A “JUNTA CONSTITUINTE” DE D. JOÃO VI. III. O
PROJETO DE LEI ELEITORAL. 3.1. Capacidade e recenseamento
eleitoral. 3.2. Sistema e procedimento eleitoral. 3.3. Composição da
câmara e repartição territorial dos deputados. IV. CONCLUSÃO.
Resumo: Recuperar a representação política em Cortes terá sido a maior
conquista da revolução liberal do dia 24 de agosto de 1820, no Porto. Mas
os novos tempos exigiam reformas profundas na representação
parlamentar tradicional e um novo sistema eleitoral. Após a experiência
democrática das eleições vintistas de 1820 e de 1822, interrompida logo
em 1823, o constitucionalismo monárquico conservador vai preparar um
novo projeto constitucional e, em simultâneo, um novo projeto de lei
eleitoral. Neste trabalho vamos analisar este projeto de lei eleitoral
conservadora de 1823, intentada por D. João VI, através de uma Junta
constituinte nomeada ad hoc. Apesar de ter sido abandonado, antes
sequer de ter entrado em vigor, este projeto eleitoral vai ter influência no
constitucionalismo cartista, que se lhe seguiu, constituindo, por isso,
uma peça relevante da história do constitucionalismo eleitoral português.
Abstract: Recovering political representation in the Cortes might have
been the greatest achievement of the liberal revolution of August 24,
1820, in Oporto. But the new times required deep reforms in the
traditional parliamentary representation and a new electoral system.
After the democratic experience of the elections of 1820 and 1822,
interrupted in 1823, conservative monarchic constitutionalism will
prepare a new constitutional draft and, simultaneously, a new electoral
draft law. In this article we will analyze this conservative electoral law of
1823, promoted by John VI, through a “constituent junta” appointed ad
hoc. Although it was abandoned, even before being adopted, this electoral
project will have an influence on the Chartist constitutionalism, which
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followed in 1826. It is therefore a relevant element in the history of
Portuguese electoral constitutionalism.
Palavras chave: Eleições, Liberalismo, Parlamento, Constitucionalismo,
Cortes.
Key words: Elections, Liberalism, Parliament, Constitutionalism, Cortes.
“Uma lei fundamental de eleições pode chamar-se o
paládio das liberdades civis” (Génio Constitucional 13,
de 16 de outubro de 1820).
I. INTRODUÇÃO.
No dia 24 de agosto de 1820, no seguimento da bem-sucedida ação
militar desse dia (que não encontrou qualquer oposição), teve lugar na
casa do Senado da Câmara da cidade do Porto a eleição de uma Junta
Provisional do Governo Supremo do Reino para governar o país em nome
de el-rei D. João VI –que se tinha ausentado para o Brasil, desde 1807,
na sequência da primeira invasão francesa– e a convocaçao de umas
Cortes constituintes para se aprovar um texto constitucional para o Reino
Unido de Portugal, Brasil e Algarves.
Eleita a Junta Provisional e tomado o devido juramento aos seus
membros, bem como a todos os presentes à vereação1, os coronéis
Cabreira e Sepúlveda saíram à janela que dava para a Praça Nova das
Hortas (depois Praça da Constituição, Praça D. Pedro IV, Praça da
República e atual Praça da Liberdade) e gritaram para o povo e a tropa:
“Viva o nosso bom monarca, o senhor D. João VI! Viva a nossa religião
sagrada! E vivam as Cortes e a constituição por elas!”2. Na sequência
deste ato, repercutiram-se “repetidos vivas da galeria do Paço, dados por
todas as autoridades; vivas multiplicados da tropa formada na Praça; e
um viva universal de todas as pessoas das janelas das casas vizinhas e
do povo que em multidão era espectador desta cena”3. Estava assim
consumada a revolução liberal em Portugal.
1 A fórmula do juramento geral foi a seguinte: “Juro aos Santos Evangelhos obediência à Junta
Provisional do Governo Supremo do Reino que se acaba de instaurar e que, em nome d’el Rei nosso
Senhor D. João VI há de governar até à instalação das Cortes, que deve convocar para organizar a
Constituição portuguesa. Juro obediência a essas Cortes e à Constituição que fizerem, mantida a
religião católica romana e a dinastia de Bragança”Diário Nacional. Com permissão da Junta do
Supremo Governo Provisório do Reino, Porto, Tipografia da Viúva Alvarez Ribeiro e Filhos, n.º 1,
sábado 26 de agosto de 1820; Gazeta de Lisboa, n.º 231, segunda-feira 25 de setembro de 1820–
2 Diário Nacional. Com permissão da Junta do Supremo Governo Provisório do Reino, Porto,
Tipografia da Viúva Alvarez Ribeiro e Filhos, n.º 1, sábado 26 de agosto de 1820; Gazeta de Lisboa,
n.º 231, segunda-feira 25 de setembro de 1820.
3 Diário Nacional. Com permissão da Junta do Supremo Governo Provisório do Reino, Porto,
Tipografia da Viúva Alvarez Ribeiro e Filhos, n.º 1, sábado 26 de agosto de 1820; Gazeta de Lisboa,
n.º 231, segunda-feira 25 de setembro de 1820.
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Este foi o primeiro ato da nova era político-constitucional
portuguesa e, desde esse dia, a premência de uma assembleia
representativa –desde logo, para aprovar a constituição– passa a ocupar
um lugar central no sistema político nacional4. No dia 22 de novembro
de 1820, após aceso debate sobre o método que se devia seguir para se
convocarem as Cortes5 e de se terem regeitado as Instruções eleitorais de
31 de outubro, foram publicadas as novas Instruções eleitorais para a
eleição dos deputados às Cortes constituintes de 1821, seguindo o
método da Constituição espanhola, com escassas adaptações ao nosso
País6.
Foram estas Instruções que, em Portugal, serviram de base legal
para as primeiras eleições parlamentares liberais, realizadas entre o dia
10 e o dia 30 de dezembro de 18207, com um procedimento eleitoral
4 No exato dia em que foi eleita –24 de agosto de 1820– a Junta Provisional do Governo
Supremo do Reino promulgou um Manifesto aos Portugueses com um apelo constante ao passado
magnificente de Portugal, salientando a premência de um governo representativo e de se
convocarem as Cortes para aprovar uma Constituição: “nossos avós foram felizes porque viveram
nos séculos venturosos em que Portugal tinha um governo representativo nas Cortes da nação (…)
Tenhamos, pois, essa constituição e tornaremos a ser venturosos (…) Imitando nossos maiores,
convoquemos Cortes e esperemos de sua sabedoria e firmeza as medidas que só podem salvar-nos
da perdição e segurar nossa existência política” –Impresso avulso [Disponível em:
http://purl.pt/4465 (consultado no dia 14 de janeiro de 2018)]; Diário Nacional. Com permis são
da Junta do Supremo Governo Provisório do Reino, Porto, Tipografia da Viúva Alvarez Ribeiro e
Filhos, n.º 1, sábado 26 de agosto de 1820; Gazeta de Lisboa, n.º 231, segunda-feira 25 de
setembro de 1820–.
5 Sobre as polémicas geradas em torno da convocação das Cortes constituintes, cf. José
DOMINGUES e Vital MOREIRA, “Nas Origens do Constitucionalismo em Portugal: o Parecer de J. J.
Ferreira Gordo sobre a convocação das Cortes constituintes em 1820”, in e-Legal History Review
28, junho de 2018, pp. 1-39; José DOMINGUES e Vital MOREIRA, “A Primeira Polémica Política da
Revolução de 1820”, in História: Jornal de Notícias 13, abril de 2018, pp. 44-53.
6 Instruções para as Eleições dos deputados das Cortes segundo o método estabelecido na
Constituição espanhola e adotado para o Reino de Portugal, (Junta Provisional do Governo
Supremo do Reino, 22 de Novembro de 1820): Diário do Governo, Suplemento ao n.º 34, quinta-
feira 23 de novembro de 1820; Gazeta de Lisboa, n.º 285 e 286, segunda-feira 27 de novembro de
1820 e terça-feira 28 de novembro de 1820;Collecção de Leis, Decretos, Alvarás, Ordens Régias e
Editaes que se publicarão desde o Anno de 1817 até 1820, Lisboa, Impresão Régia, 1820; Gazeta
do Rio de Janeiro, n.º 22, sábado 17 de março de 1821 [Disponível em:
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/gazeta_rj/gazeta_rj_1821/gazeta_rj_1821.
htm (consultado no dia 5 de outubro de 2018)]; Clemente José dos SANTOS, Documentos para a
Historia das Cortes Geraes da Nação Portugueza, coordenação auctorizada pela Camara dos
Senhores Deputados, Tomo I: 1820-1825, Lisboa, Imprensa Nacional, 1883, pp. 107-115;
Legislação Eleitoral no Brasil: do século XVI aos nossos dias, Nelson JOBIM e Walter Costa PORTO
(org.), Brasília, Senado Federal -Subsecretaria de Bibliotecas, 1996, pp. 25-33; Pedro Tavares de
ALMEIDA, Legislação Eleitoral Portuguesa 1820-1926, Lisboa, Imprensa Nacional, 1998, pp. 19-30;
Maria NAMORADO e Alexandre Sousa PINHEIRO, Legislação eleitoral portuguesa: textos históricos
(1820-1974), Tomo 1, Lisboa, Comissão Nacional de Eleições, 1998, pp. 30-38.
7 As instruções eleitorais de 22 de novembro (cf. nota de rodapé supra) determinam que as
juntas eleitorais de freguesia se celebrem no segundo domingo do próximo mês de dezembro, para
eleição dos “compromissários” e eleitores paroquiais, as juntas de comarca no domingo próximo
seguinte ao das juntas paroquiais, para eleição dos eleitores de comarca, e as juntas de província
no domingo próximo seguinte ao das juntas de comarca, para eleição dos deputados às Cortes.
Em sintonia, o Correio do Porto veio noticiar: “está marcado o segundo domingo do mês de
dezembro para a eleição de paróquia, o terceiro domingo do mesmo mês para a eleição de comarca
e o quarto domingo do mesmo mês para a eleição de província. (...) Teremos, por consequência,
nesta cidade, as eleições de paróquia no dia 10 de dezembro, a eleição de comarca no dia 17 e a
eleição do Partido como se fosse província no dia 24”Correio do Porto, n.º 52, sábado 25 de
novembro de 1820–. Mas, dada a complexidade do método adotado, raramente o escrutínio final
de cada ato eleitoral terá terminado no primeiro dia das eleições. Pelo que nos foi possível apurar,

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