Repetir nunca e repetir: reflexóes sobre a reprodujo e o plagio de obras de arquitectura

AutorClaudia Trabuco
Cargo del AutorProfessora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa
Páginas574-598

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I Conceito de obra de arquitectura

De um traco* nasce a arquitectura

. Assim se referia Osear Niemeyer ao trabalho de concepcao do arquitecto, acrescentando, de urna forma exemplar porque expressiva, que «quando ele é bonito e cria surpre-sa, ela pode atingir, sendo bem conduzida, o nivel superior de uma obra de arte»1.

A definicáo do que seja a arquitectura nao é clara, sendo uma das questSes a que se dedicam desde há muito os teóricos desta arte, concluindo pela «incerteza conceptual» e pela inutilidade de uma definicáo esquemática, que consideram redutora2.

Sao muitas e muito diversas as definicoes de arquitectura postuladas pelos autores da literatura antiga e moderna neste dominio, variando entre interpretacoes culturáis, funcionalistas e tecnicistas, formalistas e espaciáis do conceito, consoante confiram maior relevo á relacáo da arquitectura com a sensibilidade dos povos (pois que cada época impri-Page 575me um carácter específico á sua arquitectura), á intencáo prática do edificio, dos materiais e dos métodos construtivos, as leis determinantes da expressáo arquitectónica (em que se incluem as referencias a ordem, á harmonía, as proporcóes e á geometría dos edificios), ou, finalmente, ao conceito de espaco como factor distintivo, pelo que a arquitectura seria a arte do espaco e o arquitecto um modelador de espacos3.

Ainda assim, tornou-se frequente a utilizacao em ensaios teóricos e textos de historia da arquitectura da tríade de condicoes de boa arquitectura expostas no século I a.c. por Vitrúvio no seu tratado De Archi-tectura: afirmitas, a utilitas e a venustas, ou seja, os aspectos técnicos, utilitarios ou funcionáis e estéticos ou artísticos da arquitectura4.

A obra de arquitectura é, pois, o resultado desta arte ou saber fazer e da ac§áo criadora do arquitecto. Esta distingue-a da mera edificacáo ou construyo, que se esgota num propósito funcional e prático, porque lhe acrescenta a intencáo artística5.

II Proteccáo das obras de arquitectura pelo direito de autor

Nao encontramos no Direito de Autor portugués qualquer definicáo de obra arquitectónica, a semelhanca do que sucede, por exemplo, no direito estadunidense, que a define como «desenho de um edificio tal como incorporado num meio tangível de expressao, incluindo o edificio, os projectos de arquitectura ou desenhos. A obra inclui a forma no seu conjunto bem como o arranjo e composicáo de espacos e elementos no desenho, mas nao inclui elementos individuáis estandardizados» 6.

Contudo, na enumeracáo exemplificativa a que se dedica, o n.° 1 do artigo 2.° do Código de Direito de Autor e Direitos Conexos portugués (CDADC) considera que sao obras protegidas, na medida em que pre-encham os requisitos previstos no artigo 1.° do mesmo Código, quer as «obras de desenho, tapecaria, pintura, escultura cerámica, azulejo, gra-vura, litografía ou arquitectura» [alinea g)], quer os «projectos, esbogosPage 576e obras plásticas, respeitantes a arquitectura, ao urbanismo, á geografía ou as outras ciencias» [alinea /)]7.

Contrariamente ao que sucede noutros ordenamentos jurídicos, a lei autoral portuguesa torna claro que sao objecto de proteccáo no Direito de Autor tanto os planos, projectos, desenhos e maquetas quanto a obra de arquitectura edificada8. Segue-se, assim, de muito perto, a previsáo do n.° 1 do artigo 2.° da Convencáo de Berna de 1886, na versao resultante da revisáo operada pelo Acto de París de 1971, que sustenta tam-bém urna dupla protec§áo, tanto das obras de arquitectura como dos «planos, esbocos e obras plásticas relativos a geografía, á topografía, a arquitectura ou as ciencias»9.

A protecgáo das obras de arquitectura, como sucede em relagao as demais obras, inicia-se com a exteriorizacáo, ou seja, com a objecti-vagao de urna ideia de urna forma perceptível pelos sentidos humanos, ainda que nao necessariamente tangível10.

Esta forma perceptível sensorialmente é apelidada por alguma doutrina «forma sensível», distinguindo-a porém da materia que lhe serve de suporte, ou seja, das coisas materiais em que apareca incorporada e sirvam de veículo á sua apreensao pelos sentidos. Assim, os suportes materiais podem ser múltiplos, sem que isso prejudique a unidade daquela forma sensível. Para tanto basta, pois, que exista urna conexáo estável entre os suportes múltiplos que assegure a unidade da obra que naqueles é incorporada.

De acordó com a mesma doutrina, a forma sensível distingue-se de urna outra modalidade de expressáo da obra, que é designada como «forma convencional», por se apoiar numa convengáo conhecida e compreendida por todos. Assim sucede, por exemplo, com as obras literarias, que dependem de urna convencáo lingüística ou com as partituras de música em relacáo as obras musicais.

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Transpondo tais classificacoes para o contexto das obras de arquitectura, a forma sensível correspondería ao edificio construido propria-mente dito, ao passo que seria considerado como forma convencional o projecto desenliado pelo arquitecto.

Em todo o caso, muito embora relevantes para efeitos da compreensao do momento de juridicizagáo da obra, estas distincoes podem fácilmente ser reconduzidas ao principio geral segundo o qual a forma deve ser tomada em sentido ampio englobando todas as linguagens per-ceptíveis pelos sentidos 11.

A forma de expressao das obras intelectuais, enquanto misto de con-teúdo intelectual e forma apreensível pelos sentidos humanos, permitin-do o conhecimento dos traeos caracterizadores essenciais da criagao intelectual, corresponde ao objecto de proteccao do direito de autor. Só a expressao dá, afinal, realidade as coisas incorpóreas12.

O n.° 2 do artigo 1.° do Código do Direito de Autor exclui, inversamente, da proteccao jurídico-autoral «[a]s ideias, os processos, os sistemas, os métodos operacionais, os conceitos, os principios ou as des-cobertas». Ao excluir os processos ou esquemas para a acgáo, o Código parece, por principio, nao conceder protecgao aos projectos de realizagao de obras futuras ou aos estadios intermedios de realizagáo destas obras, mesmo no caso de estas últimas corresponderem a obras protegidas.

Assim sendo, para justificar a previsáo da alinea 1) don." 1 do artigo 2.°, tem-se entre nos considerado, por influencia da obra de Oliveira Ascensao, que a tutela específica dos projectos de arquitectura, urbanismo, geografía e outras ciencias, se tem obligatoriamente que fundar numa «valia estética» autónoma do próprio projecto, autonomia essa que se manifestaría em relacáo a obra de arquitectura, em si mesma considerada. Deste modo, no caso dos projectos de arquitectura, «[a] lei nao tutela a manifestagao da obra de arquitectura,, nem o esquema para a acgáo, mas urna nova obra, pela valia estética que aprésente»13.

De acordó com este entendimento, a obra de arquitectura apenas encontra o seu modo de expressao característico na construgao ou edifi-cagao. Pelo que, segundo Oliveira Ascensao, enquanto este nao houves-se sido realizado nao teñamos efectivamente urna exteriorizagao da obra completa, mas apenas um esquema de acgao sem autonomia jurí-Page 578dica14. «É que só se pode falar de urna determinada obra quando o seu modo de expressao característico estiver no mundo»15.

Com o devido respeito pela opiniao assim expressa, nao posso concordar. Tanto o projecto de arquitectura, sobretudo na fase dita de projecto de execugáo, quanto a obra edificada sao formas possí-veis de expressao da obra de arquitectura. Essencial é, pois, nao a concretizagáo da forma de expressao «característica» mas a exterio-rizagao suficiente dos tragos caracterizadores essenciais de urna obra que, em si mesma, reúna os requisitos imprescindíveis para poder ser protegida pelo direito de autor, o que é dizer urna obra que seja original16.

Alias, é nesse sentido que mais fácilmente adiro á afirmagáo do mesmo autor, que me parece deixar margem para outras interpretagoes da relagáo obra edificada/projecto. Deste modo, sendo a obra de arquitectura a «criagáo ideal», que subjaz á sua concretizagáo material, «nen-huma distingáo se poderia fazer entre a protecgáo da obra e a protecgáo do projecto. Se se protege a obra de arquitectura, protege-se forgosa-mente o projecto que a exterioriza»17.

Entender de outro modo, significa admitir que a protecgáo das obras de arquitectura só se inicia com a construgáo. Ou, noutras palavras, que obras de arquitectura sao, apenas, os edificios, entendidos de modo ampio.

Parece-me, outrossim, que a criagáo do arquitecto adquire exteriorizagao suficiente com a fixagáo das ideias num desenlio arquitectónico ou na produgáo de um modelo ou maqueta18. A protecgáo do projecto representa, pois, a protecgáo de um estadio intermedio da obra, que saiu já da etapa de mera ideia e adquiriu urna expressao criativa individual.

Assim, em lugar de este ser urna «obra nova», entre o projecto e a obra edificada existe, afinal, urna continuidade ou ciclo criativo, que se inicia com urna fase de desenlio mais elementar, e que se vai desenvol-vendo ao longo das etapas de estudo previo, projecto base e projecto dePage 579execucao, «só se esgota na observacáo comentada (crítica) dos objectos construidos e em uso: esta é a sua prova de fogo»1920.

O guiao para a obra, representado pelo projecto de arquitectura, pode conceder uma maior ou menor margem para a interpretacáo a ser realizada na execucao da obra. No entanto, essa continuidade nao se quebra, tal como, noutro ciclo criativo, a partitura, muito embora determinando o seu resultado, deixa espaco de interpretacáo áquele que exe-cuta ou interpreta uma composicáo musical.

III A originalidade na arquitectura

No Direito de Autor, a...

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