Das relações in-house no âmbito do regime da contratação pública

AutorCarlos Vaz de Almeida
CargoAbogado estagiário del Área de Derecho Mercantil de Uría Menéndez (Lisboa). Da área di Dircito Comercial de Uría Menéndez (Lisboa)
Páginas71-81

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1 - Introdução

Com a recente entrada em vigor do Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 18/2008, de 29 de Janeiro, operou-se uma profunda reforma no ordenamento jurídico português, para a qual contribuíram as Directivas 2004/18/CE e 2004/17/CE, ambas de 31 de Março de 2004 (doravante «Directivas»), por esta via transpostas para o sistema jurídico nacional.

Sem prejuízo do contributo prestado pelo legislador comunitário, importa no entanto salientar que o Código dos Contratos Públicos (de ora em diante «CCP») não se limitou a transpor e a concretizar as normas vertidas nas já referidas Directivas, como aliás se infere da sua disposição preambular, onde se refere que «o seu conteúdo vai além da mera reprodução das regras constantes das Directivas».

De facto, o legislador nacional foi bastante além das Directivas, acolhendo a doutrina e jurisprudência mais recentes, sendo exemplo paradigmático disso mesmo a consagração no artigo 5.°, n.° 2, do CCP, das relações in-house, cujos contornos foram pela primeira vez desenvolvidos pela jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (de ora em diante «TJCE»), mais concretamente no acórdão Teckal 1.

Ora, atenta a importância crescente que o instituto da contratação in-house tem vindo a assumir na prática jurídica nacional e comunitária, com o presente artigo procuraremos essencialmente fazer um enquadramento geral da matéria, com especial enfoque nos arestos comunitários, os quais têm prestado um forte contributo para o desenvolvimento e delimitação do referido instituto, e nos problemas suscitados pela sua aplicação.

2 - A jusprivatização da administração pública no quadro do regime contratação pública

Antes de nos debruçarmos sobre a análise propriamente dita da contratação in-house, importa contextualizar a matéria, o que passa necessariamente pela observação da realidade jurídica onde se insere o referido instituto.

De facto, para compreender a ratio do mecanismo das relações in-house, importa observar o contexto jurídico onde este se insere, o qual tem sido profundamente marcado pela «empresarialização» da Page 72 Administração Pública, que tem vindo a assumir estruturas jurídico-formais que dificilmente se coadunam com os ortodoxos cânones do Direito Público.

2. 1 - A relevância económica dos contratos públicos e a sua regulamentação

A intervenção do Estado na actividade económica, nas suas diversas formas jurídicas, apresenta grande relevância quando perspectivada à luz do quadro jurídico-económico da contratação pública, matéria cuja importância importa destacar no âmbito da concretização do Mercado Único.

Na realidade, se se tiver em consideração a importância relativa dos contratos públicos no Produto Interno Bruto dos Estados-Membros 2, facilmente se compreende a necessidade de regulamentar as matérias que lhe são atinentes.

Com efeito, num relatório publicado em Fevereiro de 2004 3, a Comissão indicou que apenas no ano de 2002, os contratos públicos corresponderam a 16% do Produto Interno Bruto da União Europeia.

Sobremaneira se realça o exposto, se tivermos em atenção que os contratos públicos não podem ser vistos apenas como actos jurídicos per se, mas, de igual modo, como actos económicos cujas repercussões se fazem sentir, ainda que indirectamente, sobre todo mercado comunitário.

Ora, o que é particularmente importante salientar é que a realização da despesa pública pode produzir fortes distorções no mercado comunitário, muitas vezes com fortes repercussões sobre a iniciativa privada, o que é evidente, desde logo, pela existência de sectores de actividade fortemente dependentes do mercado de aquisições públicas.

Seja porque os contratos públicos muitas vezes são utilizados como instrumentos de actuação económica e social - ora como instrumento de política conjuntural ou estrutural, ora como instrumento de políticas sectoriais -, seja por proteccionismo excessivo ou até mesmo corrupção, a verdade é que os contratos públicos continuam a ser um dos mais fortes obstáculos à concretização do Mercado Único 4.

Assim, as exigências decorrentes do Mercado Único determinaram, em matérias de importância capital como os contratos públicos, uma crescente regulamentação, tendo em vista a harmonização das disposições existentes nos vários Estados-Membros e a promoção da igualdade entre operadores económicos concorrentes.

Deste modo se explica a imposição de procedimentos específicos de contratação pública, enquanto forma de garantir a liberalização do mercado e, por esta via, assegurar a concorrência efectiva entre os operadores económicos.

Ora, a bulir com a necessidade de regulamentação descrita, nomeadamente em sede de harmonização legislativa, destaca-se a clivagem entre os diversos sistemas e modelos de contratação pública existentes nos vários países, clivagem essa que foi acentuada com o alargamento aos países de Leste.

Nesta medida, a empresa que enfrenta o legislador comunitário na tentativa de europeização e harmonização legislativa é hercúlea, o que resulta ainda mais evidente se se tiver em conta que na concretização de tal desiderato deve o legislador comunitário pautarse pelo princípio da subsidiariedade, respeitando, sempre que possível, as «idiossincrasias» inerentes aos vários ordenamentos jurídicos dos Estados-Membros.

2. 2 - A adopção de modelos jusprivatistas e a evolução do sector empresarial do Estado

Quando a Administração actua no âmbito do Direito Público, fá-lo através da utilização de serviços administrativos sem personalidade jurídica ou com recurso à criação de organismos públicos, dotados de personalidade jurídica, em relação aos quais cria laços de dependência que reforçam os poderes de intervenção sobre estes organismos.

No entanto, esta forma de actuação da Administração, ao situar-se no quadro do Direito Administrativo, possui uma rigidez que não se compadece com a flexibilidade e celeridade próprias da actividade empresarial.

Por esta razão, com a crise do Estado Social e crescente consciencialização do «peso social do Estado» surgiram movimentos de «privatização» da Admi-Page 73nistração Pública. Com efeito, passou a ser fé dominante, um pouco por toda a Europa, a necessidade de «desintervenção» da Administração, nomeadamente em sede das suas actividades instrumentais 5.

Ora, à semelhança do que aconteceu noutros países europeus, em Portugal, nomeadamente por via do Decreto-Lei n.° 558/99, de 7 de Dezembro, procedeu-se à reestruturação do sector empresarial do Estado, a qual se tornou necessária em virtude da reorganização e competição decorrentes do fenómeno Mercado Único e da globalização.

Neste quadro, a Administração Pública, em lugar de recorrer à figura da empresa pública como instrumento de intervenção na vida económica, tem optado pelo recurso a organismos com forma tipicamente societária, nomeadamente com a configuração de sociedade anónima.

Ora, a razão de ser desta escolha não reside tanto na autonomia formal das sociedades anónimas propriamente ditas, mas antes na sua autonomia operativa, obtida através da sua sujeição ao regime da lei comercial.

Como se refere no Decreto-Lei n.° 558/99, de 7 de Dezembro, as soluções consagradas foram «[...] ditadas pela preocupação de criar um regime muito flexível, susceptível de poder abranger as diversas entidades que integram o sector empresarial do Estado e que deixaram de estar submetidas à disciplina do Decreto-Lei n.° 260/76, de 8 de Abril, passando a actuar de harmonia com as regras normais de direito societário. Essa é, aliás, a linha essencial do presente diploma, que consagra o direito privado como direito aplicável por excelência a toda a actividade empresarial, seja ela pública ou privada».

Na sequência das mudanças operadas no enquadramento jurídico, surgiram visíveis sinais de transformação na intensidade e nas modalidades de intervenção pública, bem como nas soluções institucionais adoptadas para a realização dos interesses públicos.

Como bem refere Pedro Gonçalves 6, sob o mote de uma «modernização administrativa», passou-se por um complexo processo de «empresarialização», que, por vezes, passa pela «privatização das formas organizativas da Administração Pública», com as dificuldades inerentes de qualificação de diversas entidades, onde é necessário empreender uma verdadeira «caça aos indícios da publicidade de uma tarefa».

Neste enquadramento, os particulares são chamados a assumir responsabilidades de execução de tarefas nucleares da Administração Pública, que correspondem, em certa medida, à mais profunda razão de ser do Estado, não se limitando a tarefas ditas instrumentais.

Sem embargo das razões que têm conduzido a uma «fuga para o direito privado» 7, a verdade é que este fenómeno, comportando uma actuação empresarial do Estado através de vestes jurídicas de organização e de gestão típicas dos agentes económicos privados, assume agora a natureza de uma regra geral de intervenção pública que tem de encontrar difíceis equilíbrios de compatibilidade entre, por um lado, a prossecução do interesse público e o respeito pelo princípio da legalidade e, por outro lado, as exigências normais de liberdade e autonomia de actuação de qualquer agente económico num mercado concorrencial.

No que respeita ao regime da contratação pública, a adopção de modelos jusprivatistas...

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