O direito de patentes, o sistema regulatório de aprova£áo e o acesso aos medicamentos genéricos

AutorJoáo Paulo F. Remedio Marques
Cargo del AutorProfessor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Páginas456-496

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I Introdujo. apresentaçáo e relevo do tema

É enorme a competicáo entre empresas farmacéuticas de medicamentos de referencia 1, ou medicamentos ¿novadores protegidos por direitos de propriedade industrial, e as empresas de medicamentosPage 457genéricos e de medicamentos essencialmente similares. Nos EEUU, o mercado dos genéricos gera um volume de vendas de, aproximadamente, 60 bilioes de dólares deste país, sendo que estes medicamentos sao atingidos por cerca de 70% do total da prescricáo médica2.

As empresas de medicamentos de referencia usam todo um acervo de práticas (contratuais e extracontratuais), a fim de manter a sua hegemonía no mercado após a extingáo dos direitos de patente ou dos certificados complementares de proteccáo respeitantes aos medicamentos ¿novadores. Metade dos medicamentos de referencia sofre a concorréncia dos medicamentos genéricos no primeiro ano subse-quente á extincao de todos aqueles direitos de exclusivo. O que, de harmonia com os dados recolhidos entre 2000 e o final de 2007, representa, na Uniao Europeia, cerca de 74% das vendas brutas desses medicamentos de referencia no ano em que ocorreu a extincao de tais exclusivos.

Esta apetencia merceológica é justificada: no 1 ° ano de comercia-lizacao, os medicamentos genéricos sao vendidos, por regra, a um prego inferior a 25% do preco medio de venda dos medicamentos de referencia correspondentes. Dois anos após a extincao daqueles direitos de propriedade industrial e demais exclusivos, o preco dos medicamentos genéricos é 40% inferior ao prego medio dos medicamentos de referencia correspondentes. O sistema administrativo regulatório de fixacáo do preco máximo de venda ao público destes medicamentos genéricos explica, como veremos (infra, § 4.), esta diminuicáo do preco final de venda. Estes números influenciam dramáticamente as despesas suportadas pelos sistemas nacionais de saúde (de matriz pública, privada ou mista): no 1.a ano de entrada dos medicamentos genéricos no mercado, os servicos estaduais de saúde dos Estados-membros da Uniao Europeia tém urna poupanca de, em media, 20%. Dois anos após o inicio da comercializacao dos genéricos, a reducao das despesas cifra-se ao derredor dos 25%. Estima-se que, com base apenas numa amostra de medicamentos em 17 Estados-membros, o sacrificio económico dos sistemas nacionais de saúde teria um acrésci-mo de 14 bilioes de Euros se a comercializacao dos medicamentos genéricos correspondentes de referencia nao fosse autorizada. Mais: se essa introducáo no mercado fosse realizada imediatamente após a extincao dos direitos de propriedade industrial dos medicamentos dePage 458referencia, poupar-se-iam, segundo se eré, cerca de tres bilioes de Euros nos referidos Estados-membros3.

II Os obstáculos no acesso aos medicamentos genéricos

Constata-se que a efectiva entrada dos medicamentos genéricos no mercado dos Estados-membros da Uniáo Europeia tem ocorrido mais tarde do que seria de esperar: ou seja, essa primeira comercializacáo tem ocorrido em momento muito posterior ao 1.° dia subsequente á extincáo —normalmente, pelo decurso do prazo— dos direitos de pro-priedade industrial (patentes e certificados complementares de pro-teegao) e dos direitos exclusivos de comercializacáo respeitantes aos medicamentos de referencia.

As estrategias merceológicas destas empresas farmacéuticas e os comportamentos que elas adoptam podem ser classificados da forma que segué:

(1) Práticas endógenas ao próprio subsistema da propriedade industrial, aqui onde poderemos distinguir4:

(a) A apresentacao de pedidos de patente de composicSes e formulacSes farmacéuticas5, combinacoes6, de dosagens7, sais8, esteres ePage 459éteres 9, polimorfos 10, isómeros, misturas de isómeros 11, enantiómeros12, formas cristalinas13, metabolitos14 e pró-fármacos15.

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(b) O depósito de pedidos de patentes respeitantes a novos usos terapéuticos de substancias já conhecidas16.

(c) Apresentacao de múltiplos pedidos divisionarios, originados, nao raras vezes, em reivindicacóes do tipo «Markush» 17, os quais sao depois combinados com reivindicacóes de seleccao18.

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(d) Depósito de pedidos de proteccao relativos «enxames» ou «grupos» de invencoes (patente clusters), de urna maneira susceptível de impedir a pesquisa e o futuro desenvolvimento de linhas de investi-gacao (fencing) por parte de terceiros; prática plasmada, por exemplo, na reivindicado de múltiplas variantes de um ou de varios processosPage 462químicos, ou de um ou de varios métodos de identificagao ou de criagao de novas moléculas.

(e) Apresentacáo de urna miríade de pedidos de patente, com vista a «inundar» (flooding) urna determinada área tecnológica, a fim de «minar» cada urna das etapas do processo de producto, estrategia normalmente usada em tecnologías emergentes ou de «ponta».

(f) Apresentacáo de diversos pedidos de patente de invengoes «menores», de jeito a «cercar» (surrounding) ou a envolver urna «patente estratégica» titulada pela mesma entidade, o que permite proi-bir a utilizagáo comercial dos produtos ou dos processos protegidos pela «patente central», mesmo após a sua caducidade.

(g) O reforgo junto do público da utilizagao da marca que identifica as substancias cuja patente já caducara19, e que incorpora o medicamento de referencia.

(2) Práticas que atingem os procedimentos regulatórios adminis trativos de introdugao dos medicamentos genéricos no mercado, de fixagáo do prego máximo de venda ao público e determinagáo das percentagens de comparticipagao dos subsistemas de seguranga social nesse prego de venda, em termos de através destas práticas se tentar estabelecer urna interferencia condicionadora entre a titularidade de direitos de propriedade industrial e os procedimentos administrativos destinados a assegurar o cumplimento das tarefas públicas relacionadas com a seguranga, a eficacia, a qualidade e o (controlo do) prego dos medicamentos (patent linkage).

(3) Práticas comerciáis concertadas entre empresas (de medi camentos de referencia e de genéricos) destinadas a protrair no tempo a efectiva comercializagao dos medicamentos genéricos e a fazer cessar as acgóes de invalidade deduzidas por estas últimas contra as primeiras.

(4) Práticas promocionais promovidas pelas empresas de medica mentos de referencia junto dos hospitais, das farmacias (v.g., descontos na aquisigáo de medicamentos superiores a certas quantidades), dos médicos e do público em geral.

O pequeño estudo que agora apresentamos apenas incidirá sobre as práticas referidas em (2) e (3). Acessoriamente, já há pouco mencionei alguns dos problemas suscitados pelas práticas referidas em (1).

Nao será aqui analisado um outro tema importante conexo a este último: a eventual aplicagáo do direito (nacional e europeu) da con-corréncia, bem como o regime jurídico das autoridades administrativas reguladoras sectoriais a todo este conjunto de práticas comerciáis —na verdade, a convocagáo deste último regime jurídico pode resolverPage 463alguns entraves á difusao dos medicamentos genéricos e contribuir para a reducao do seu prego de venda ao público.

O efeito isolado ou conjugado daquelas práticas tem provocado um resultado negativamente criticável: o retardamento da efectiva comer-cializacao dos medicamentos genéricos. Este atraso tem-se cifrado na existencia de um prazo medio de sete meses após a extincdo dos direi-tos de propriedade industrial e dos dentáis exclusivos comerciáis que protegem os medicamentos de referencia20 e a efectiva entrada em cena do medicamento genérico do correspondente medicamento de referencia. Em Portugal, este atraso na efectiva introdugáo dos genéricos no mercado cifra-se, por vezes, ao derredor dos 18 meses, atenta a estrategia agressiva de litigáncia jurisdicional assumida pelas empresas dos medicamentos de referencia, o que constitui um atraso superior ao que se verifica em outros Estados-membros.

É bom de ver que estas práticas e os efeitos que provocam desenca-deiam a formacao de exclusivos fácticos cuja emergencia nao é ancorados por qualquer direito de propriedade industrial entre o momento da sua extingáo e a data da efectiva introdugao no mercado dos medicamentos genéricos. Este panorama contraria, na minha opiniáo, como veremos, nao apenas as regras jurídicas europeias e nacionais sobre a introdugao de...

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