Regulamentação supranacional sobre criminalidade informática e técnicas de transposição. O Direito penal português e espanhol como paradigmas

AutorFrancisco Proença de Carvalho, Oscar Morales García y Manuel Álvarez Feijoo
Páginas48-63
Actualidad Jurídica Uría Menéndez / ISSN: 1578-956X / 48-2018 / 48-64
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REGULAMENTAÇÃO SUPRANACIONAL SOBRE CRIMINALIDADE
INFORMÁTICA E TÉCNICAS DE TRANSPOSIÇÃO. O DIREITO PENAL
PORTUGUÊS E ESPANHOL COMO PARADIGMAS
FrAnCisCo proençA de CArvAlHo, osCAr MorAles GArCíA e MAnuel álvArez Feijoo
Abogados*
1 · O CONSELHO DA EUROPA E A UNIÃO
EUROPEIA: A CONVENÇÃO DE BUDAPESTE
SOBRE O CIBERCRIME E AS DIRETIVAS
EUROPEIAS SOBRE SEGURANÇA INFORMÁTICA
A emergência do fenómeno tecnológico, a sua gene-
ralização e democratização, oscilou entre a liberda-
de enquanto máxima nos momentos iniciais e o
intervencionismo atual, quando a técnica revelou
possibilidades de controlo institucional mais do que
sugestões 1. Sem dúvida, a denominada Sociedade de
Informação que nasce ao abrigo das tecnologias -
não apenas as de caráter telemático, como também
de outro tipo, como o cabo ou a televisão digital -
veio transformar as relações sociais e jurídicas de
um modo incontestável e impressionante 2. A evolu-
* Del Área de Derecho Público, Procesal y Arbitraje (Barcelona
y Lisboa)
1 Vid. uma análise da evolução institucional relativamente à
expansão tecnológica em MORALES GARCÍA, O., “Criterios de
atribución de responsabilidad penal a los prestadores de servi-
cios de la sociedad de la información”, em Revista de Derecho y
Proceso Penal, n.º 5, 2001, pp. 140 e ss., e bibliografia aí citada.
2 A ideia em geral é amplamente desenvolvida em CASTELLS,
M., La era de la información. Economía, sociedad y cultura. Vol.
Regulamentação supranacional sobre criminalidade
informática e técnicas de transposição. O Direito
penal português e espanhol como paradigmas
A expansão das tecnologias da informação, e em particular da Inter-
net, favoreceu o processo de globalização económica e cultural e, con-
sequentemente, o progresso. Ao mesmo tempo, novas formas de vio-
lação de bens jurídicos, clássicos e emergentes, desencadeiam desafios
de difícil resposta dado o carácter transfronteiriço do fenómeno. No
âmbito supranacional, foram duas as instituições que apresentaram
um inequívoco espírito de construção legislativa tendente à harmoni-
zação: O Conselho da Europa e a União Europeia. O presente traba-
lho analisa as propostas legislativas de ambas as instituições, assim
como o modelo de transposição seguido por Espanha e Portugal.
International models for the transposition of
supranational cybercrime rules. Spain and Portugal
as a paradigma
The expansion of information technologies, particularly of the Inter-
net, has stimulated the cultural and economic globalization process
and the subsequent social development. At the same time, both clas-
sical and emergent legal interests are under new forms of attack (or
cyberattack) which trigger harsh challenges in the context of a cross-
border phenomenon. Two supranational institutions have shown an
unambiguous willingness to build a harmonized legislation in the
field of cybercrime: the Council of Europe and the European Union.
This paper deals with the legislative proposals of both institutions and
analyses the national transposition models applied by Spain and Por-
tugal.
pAlAvrAs CHAve
Cibercrime, Informática, Transposição, Cooperação interna-
cional, Convenção de Budapeste.
Key Words
Cybercrime Computer crime, Convention of Budapest, Informa
-
tion, technologies, Hacking.
Fecha de recepción: 15-1-2018
Fecha de aceptación: 15-5-2018
ção tecnológica permite um incremento da qualida-
de de vida; mas, do mesmo modo que se constatam
alterações na estrutura e desenvolvimento social e
económico, ao mesmo tempo abre-se a porta a
novas formas de prejudicar os legítimos interesses
alheios, quer sejam individuais ou coletivos 3.
O caráter transfronteiriço das tecnologias da comu-
nicação deu origem a uma necessidade precoce da
criação de normas internacionais de harmonização
do fenómeno. Dentro desta lógica, nasceu o projeto
legislativo mais ambicioso sobre a matéria, a Con-
venção do Conselho da Europa sobre o Cibercrime
que, por sua vez, serviu para a União Europeia ini-
ciar, ainda que mais lentamente, o seu dispositivo
regulamentar.
I La sociedad red, Tradução de Carmen Martínez Gimeno, 1997,
passim. Vid., entre outros, FERNÁNDEZ ESTEBAN, Nuevas Tec-
nologías, Internet y Derechos Fundamentales, 1998, p. 23; CAPE-
LLER, W., Not such a Neat Net. Some comments on virtual crimi-
nality, 2000, p. 3
3 Reflexão genérica que, em relação à denominada sociedade
de riscos ou sociedade pós-industrial, pode ver-se em SILVA
SÁNCHEZ, La expansión del Derecho Penal. Aspecto de la política
criminal en las sociedades postindustriales, 1999, p. 22.
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ARTÍCULOS
Com caráter prévio à aprovação da Convenção de
Budapeste, a passagem para a sociedade de infor-
mação também não havia passado despercebida ao
Conselho, de onde tinham sido emanados textos
com eficácia normativa limitada, mas de indubitável
peso político, como as Recomendações (87) 15
sobre a utilização de dados pessoais ou a (95) 4
relativa à tutela dos dados pessoais no âmbito das
Telecomunicações. Alinhado com esta trajetória, em
novembro de 1996, “o Comité Europeu para os
problemas criminais”, isto é, o órgão do Conselho
da Europa encarregado de elaborar a política crimi-
nal da Instituição, alertado para a vertiginosa evolu-
ção tecnológica e novas ameaças à segurança e con-
sequentes novos riscos para bens jurídicos de
primeira ordem, como a privacidade ou o patrimó-
nio, adotou a decisão de criar um comité de espe-
cialistas para trabalhar sobre o fenómeno da delin-
quência associada à tecnologia, e isso sob uma
máxima, sem dúvida presente nas primeiras versões
da Convenção: a dependência social, económica e
cultural da informação constante das redes de
comunicação, particularmente na Internet, obriga à
tutela dos bens jurídicos fundamentais que se
encontram em jogo; por fim, de acordo com a filo-
sofia segundo a qual a sucessão história do modelo
de sociedade, na qual agora todos podemos ser
sujeitos ativos e passivos da informação, reclama
uma regulamentação (também) penal harmonizada
e global, assim como global é a sociedade de infor-
mação.
Em 1997, o Comité de Ministros nomeou um
Comité de Especialistas em criminalidade informá-
tica no ciberespaço, no qual se estabeleceu como
data limite para a finalização dos seus trabalhos e
entrega de uma proposta ao Comité o dia 31 de
dezembro de 1999, prazo que foi prorrogado por
um ano. A 27 de abril de 2000, os trabalhos prepa-
ratórios foram desclassificados, tornando pública e
aberta a discussão a versão n.º 19, amplamente
modificada até à redação da última e definitiva ver-
são 25.2, aprovada em junho de 2001 pelo Plená-
rio do Comité de Ministros do Conselho da Euro-
pa, e aberta para assinatura a 23 de novembro de
2001, na reunião do Conselho da Europa em
Budapeste.
A estrutura, conteúdo e alcance da Convenção
naquele momento pode ser explicada cabalmente
pela falta de iniciativas internacionais ou suprana-
cionais nesta matéria, o que na altura propiciou a
tomada de decisões de especial importância sobre a
Convenção:
a) Em primeiro lugar, a decisão de trabalhar sobre
uma Convenção e não tanto sobre uma Recomen-
dação, dada a necessidade de harmonizar a legisla-
ção dos diversos países pertencentes ao Conselho
da Europa, não apenas em matéria penal substanti-
va, como também no âmbito processual e de cola-
boração administrativa internacional, isto é, coor-
denação da ação policial, recolha de dados da
investigação criminal, etc. 4
b) Em segundo lugar, a decisão de alargar a assina-
tura da proposta a países não pertencentes ao
Conselho da Europa, e cuja participação ativa con-
dicionou, sem dúvida, parte da estrutura e conteú-
do do articulado 5. Na realidade, a minuta da Pro-
posta do Conselho da Europa de 27 de abril de
2000, assumiu, em cada um dos âmbitos de afeta-
ção, políticas de limites máximos nas quais a ces-
são de garantias sobre os poderes públicos foi des-
tacada em inúmeras instituições 6. Facto esse que
veio gerar consideráveis tensões com a União
Europeia que, na altura, era menos proclive em
matéria de delinquência informática. Estas tensões
acabariam, paradoxalmente, com o Conselho a
renunciar as suas pretensões mais agressivas que,
no entanto, mais tarde, seriam igualmente absor-
vidas, pela UE.
Devido à sua própria estrutura de funcionamento,
a União Europeia não aparece como uma organiza-
ção capaz de criar um texto global que harmonize
as diversas legislações dos Estados-Membros no
que se refere à criminalidade informática. Assim,
perante a Convenção do Conselho da Europa, a
União foi criando um conjunto inicial de Pareceres,
Decisões-Quadro e Diretivas sectoriais que já pouco
diferem do Texto aprovado no seio do Conselho da
Europa. A todos faremos referência em seguida, a
propósito da estrutura da Convenção.
4 Na base desta decisão, tal como se reconhece na Exposição
de Motivos da Convenção, está o estudo do professor Kasper-
son intitulado “Implementation of Recomendation Nº R (89)9 on
computer-related crimes”, realizado a pedido do próprio Comité
de especialistas. A exposição de motivos pode ser consultada
online em http://conventions.coe.int/Treaty/en/Reports/
Html/185.htm.
5 Nomeadamente, participaram ativamente na redação das
diversas minutas e no texto definitivo, os Estados Unidos, o
Canadá, a Austrália e o Japão, entre outros.
6 Vid., em http://www.gilc.org/privacy/coe-letter-1000-es.html
a declaração emitida a 13 de outubro de 2000 pela Global Inter-
net Liberty Campaign, integrada por um conjunto de grupos de
caráter civil com peso específico nos processos de tomada de
decisões, como a American Civil Liberties Union, ou o Electronic
Privacy Information Center (EPIC), entre outros.

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