Regulação nacional das telecomunicações - um caso de europeização da regulação de uma indústria de rede

AutorPedro Costa Gonçalves
Cargo del AutorProfessor Associado da Faculdade de Direito. Universidade de Coimbra
Páginas273-292

Page 273

I Introdução

Na Europa, o Estado desempenhou historicamente um papel central e decisivo no setor das telecomunicações: o monopólio público estendia-se a todas as variantes do setor, desde a instalação das infraestruturas (redes), ao fornecimento dos serviços e até à comercialização de equipamentos. Nesse tempo de monopólio, no velho continente, ao contrário do que sucedia no continente norte-americano, não havia qualquer distinção entre as tarefas de regulação e de exploração comercial das telecomunicações. Sem distinção, o Estado fazia tudo; no caso português, desde 1969, concentrava numa empresa pública este compacto de responsabilidades, de gestão do serviço público de telecomunicações1.

As telecomunicações "pertenciam" ao Estado; e só ao Estado: era assim no plano interno ("coisa pública" e não privada)); no plano externo, dentro do leque das frequências que lhe estivessem consignadas2, o Estado afirmava a plenitude da sua soberania na gestão das telecomunicações, que, constituíam, pois, uma "coisa nacional".

Apresentam-se hoje bem diferentes os contornos jurídicos e regulamentares do setor das telecomunicações, a começar logo pela designação "telecomunicações", a qual, por força do direito da União Europeia, se viu substituída por

Page 274

"comunicações eletrónicas": este conceito, de espectro mais amplo, impôs-se no contexto tecnológico da designada convergência regulatória dos setores das telecomunicações, dos meios de comunicação social e das tecnologias de informação3 - 4.

Mas, além disso, as profundas alterações tocam os dois aspetos que vimos há pouco. Hoje, as telecomunicações deixaram de constituir uma coisa pública; enquanto atividade económica, de fornecimento de utilidades no mercado (redes e serviços), trata-se de uma atividade privada, devolvida ao mercado, na sequência de um processo, rápido, de liberalização. Além disso, a responsabilidade pública -que se viu confinada à missão de regulação, com exclusão da produção de bens e serviços-, embora cabendo, em regra, formalmente ao Estado, é desenvolvida num quadro largamente conformado fora do Estado, pelo direito da União Europeia.

Assim, na atualidade, em Portugal e na União Europeia, as telecomunicações correspondem a um setor económico de mercado, da iniciativa privada, submetido a regulação pública efetuada fundamentalmente pelo Estado, mas a partir de uma política e de uma ideologia regulatória formuladas, num modelo centralizado, pelas instituições da União Europeia5- vamos aqui considerar apenas alguns aspetos da infiuência europeia na definição da regulação nacional, e já não, em geral, toda a regulação europeia do setor, designadamente a que se consubstancia na adoção de medidas regulatórias com incidência direta no mercado, que atingem direta e imediatamente as empresas (v.g., regulamento roaming6).

Page 275

Numa outra oportunidade, há já alguns anos7, afirmámos que o setor das telecomunicações se assumiu como uma espécie de guarda avançada do complexo processo de liberalização económica e de desestatização que se desenvolveu nos últimos anos do Século XX. Na verdade, acrescentámos então, de entre os tradicionais "grands services publics" da área económica, conexos, todos eles, com indústrias de rede (água, eletricidade, gás, transportes, correios e comunicações), os serviços públicos de telecomunicações foram os que conheceram mais cedo o processo de liberalização e os que mais rapidamente se viram devolvidos à economia e convertidos, na nomenclatura jus-comunitária, em serviços de interesse económico geral prestados em ambiente de mercado regulado.

Mas, além disso, podemos dizer agora, o setor das telecomunicações constituiu, e continua a constituir, uma importante fonte de inovação do Direito Administrativo8; entre outros pontos, essa inovação repercute-se ao nível dos modelos institucionais de regulação nacional (regulação por autoridades independentes9) e da transformação dos reguladores nacionais em instâncias de aplicação de direito europeu (mesmo quando formalmente convertido em direito nacional) encaixadas numa estrutura vertical organizada segundo um princípio de hierarquia em posição subalterna em relação à Comissão Europeia, mas também na configuração de procedimentos administrativos de natureza compósita, com uma tramitação mista, nacional e europeia. A inovação, que vem, afinal, a promover um fenómeno de europeização do Direito Administrativo 10, coincide,

Page 276

em grande medida, com a europeização da regulação das telecomunicações, entendida aqui como um específico processo de conformação ou de modelação europeia da regulação nacional de uma indústria de rede11.

II Conformação europeia da regulação nacional das telecomunicações

Na aceção aqui considerada, a conformação ou modelação europeia da regulação nacional das telecomunicações consiste num fenómeno de infiuência do direito da União Europeia no desenho do direito aplicável no setor das telecomunicações, em regra, pelas autoridades nacionais competentes, as designadas autoridades reguladoras nacionais (ARN). Em concreto, o estudo que nos propomos desenvolver situa-se num plano nacional, associado à inter-venção de autoridades portuguesas com fundamento em disposições do direito português. Todavia, pretende-se demonstrar que estas disposições normativas de direito nacional que norteiam as intervenções regulatórias resultam, quase exclusivamente, da transposição de opções político-legislativas adotadas num quadro europeu - em alguns casos (raros, deve dizer-se), a disciplina aplicável provém diretamente de direito europeu: assim sucede quando os atos legislativos europeus de regulamentação do setor seguem a forma do regulamento.

Mas não só nesse plano, legislativo, se exerce a infiuência do direito da União Europeia na regulação nacional das comunicações: esta infiuência também pode resultar de medidas de intervenção de tipo administrativo (adotadas sobretudo pela Comissão Europeia), que, igualmente, infiuenciam as medidas nacionais de regulação.

Não estão, por fim, excluídas como fonte de infiuenciação de medidas nacionais de regulação, as decisões judiciais do Tribunal de Justiça.

Assim, em síntese, a conformação europeia da regulação nacional (portuguesa) das telecomunicações desenvolve-se em três vertentes ou por intermédio de três tipos de fontes: legislativa (regulamentos e diretivas12), administrativa (no plano da intervenção administrativa direta, da adoção de decisões e medidas

Page 277

conformam medidas nacionais) e judicial (em muitos casos com condenação dos Estados-Membros à adoção de medidas regulatórias).

1. Conformação legislativa

Começamos pela conformação que tem fonte em normas jurídicas do Direito da União Europeia.

A regulamentação (legislação) europeia para o setor das telecomunicações está longe de se confinar a aspetos pontuais ou mais ou menos dispersos. Não é de facto assim. Os sucessivos pacotes regulamentares, publicados ao longo das várias fases de evolução do direito europeu das comunicações eletrónicas13

tiveram, desde as primeiras iniciativas legislativas (1990)14, o propósito expresso de implementar a desmonopolização pública e a liberalização do mercado das telecomunicações e, em simultâneo, a intenção de desenhar um "sistema regulatório completo" e de o impor aos Estados-Membros.

Atualmente, vigora ainda o designado pacote regulamentar de 2002 (revisto no ano de 2009), que integra cinco diretivas, uma designada "Diretiva Quadro" e quatro "Diretivas Específicas":

- Diretiva 2002/21/CE, relativa a um quadro regulamentar comum para as redes e serviços de comunicações eletrónicas: "Diretiva Quadro";

- Diretiva 2002/19/CE, relativa ao acesso e interligação de redes de comunicações eletrónicas e recursos conexos: "Diretiva Acesso";

- Diretiva 2002/20/CE, relativa à autorização de redes e serviços de comunicações eletrónicas: "Diretiva Autorização"15;

- Diretiva 2002/22/CE, relativa ao serviço universal e aos direitos dos utilizadores em matéria de redes e serviços de comunicações eletrónicas: "Diretiva Serviço Universal";

Page 278

- Diretiva 2002/58/CE relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no sector das comunicações eletrónicas: "Diretiva Privacidade e Comunicações Eletrónicas"16.

O exposto quadro regulamentar - em relação ao qual existe já uma proposta de revisão17- não esgota a regulamentação europeia para o setor das telecomunicações18. De resto, outras regulamentações (v.g., Regulamento roaming) têm uma infiuência direta na conformação ou modelação da regulação nacional das telecomunicações, por exemplo, por via da atribuição de poderes específicos de regulação às autoridades reguladoras nacionais, no caso português, a ANACOM. Sem prejuízo disto, deve dizer-se que os pilares europeus fundamentais e que exprimem uma abordagem sistémica e integrada para a conformação das regulações nacionais do setor das telecomunicações correspondem àquele compacto de cinco diretivas. O propósito desse conjunto de diretivas consiste no estabelecimento de um quadro jurídico harmonizado para a regulação (nacional) dos serviços e das redes de telecomunicações. Em Portugal, esse quadro harmonizado, de transposição das referidas diretivas, encontra-se na Lei das Comunicações Eletrónicas19.

A conformação legislativa começa por se precipitar logo ao nível institucional, na concreta configuração institucional da autoridade reguladora nacional.

Neste ponto, apresenta-se decisivo o artigo 3.º da "Diretiva Quadro", que estabelece que os Estados-Membros deverão instituir um organismo que se ocupe das competências de regulação das telecomunicações (autoridade reguladora nacional) e, em particular, garantir a independência jurídica e funcional desse organismo em relação ao mercado...

Para continuar leyendo

Solicita tu prueba

VLEX utiliza cookies de inicio de sesión para aportarte una mejor experiencia de navegación. Si haces click en 'Aceptar' o continúas navegando por esta web consideramos que aceptas nuestra política de cookies. ACEPTAR