Registro e colonialismo em Angola

AutorMariana Dias Paes
Páginas161-176
REGISTRO E COLONIALISMO EM ANGOLA
Mariana Dias Paes
Neste trabalho, analiso um processo judicial que integra o acervo do Ar-
quivo Nacional de Angola. Nessa análise, empreendo um “jogo de escalas”, ou
seja, procuro mostrar, por meio de um conito concreto, relações jurídicas,
econômicas e políticas trabalhadas, pela historiograa, em um nível mais ge-
ral. Por meio dessa análise de nível micro é possível identicar aspectos dos
conitos e da construção do colonialismo que podem passar despercebidos
por análises que adotam uma perspectiva macro. Com isso, discuto como a
introdução de um novo instituto jurídico – o registro –, em um contexto colo-
nial, alterou a dinâmica de certas relações sociais e a conguração dos coni-
tos fundiários. Ao fazer uso desses novos institutos jurídicos, tanto os colonos
europeus quanto as pessoas que estavam sendo desapropriadas de suas terras
acabaram por normalizar o novo sistema colonial de regras.1
A segunda metade do século XIX foi marcada por novas formas de colo-
nialismo na África Centro-Ocidental. A abolição do tráco transatlântico de
escravos e a independência do Brasil zeram com que a atenção de Portugal
se voltasse, de maneira mais intensa, para suas colônias africanas. Além dis-
so, a expansão do capitalismo esteve na base de novos empreendimentos co-
loniais e no desenvolvimento de projetos de infraestrutura, como, por exem-
plo, a construção de estradas de ferro.2 Na África Centro-Ocidental, uma das
regiões mais afetadas por essas novas formas de colonialismo foi a bacia do
Rio Cuanza, na chamada “Província de Angola”.
A abolição do tráco transatlântico de escravos, um dos pilares da econo-
mia da colônia de Angola até meados do século XIX, coincidiu com o aumento
dos preços do café no mercado internacional.3 As elites coloniais portuguesas,
então, defenderam um projeto de produção de café em territórios africanos e
se falava, até mesmo, na conversão da região em um “novo Brasil”.4 Os produ-
1 Hébrard, Scott 2014, p. 15-19; Premo 2017, p. 1-25; Putnam 2006; Revel 1998, p.
15-38; Scott 2000.
2 Clarence-Smith 1979; Oliveira Marques 2001, p. 259-291; Vargaftig 2013, p. 135-
161; Vos 2015.
3 Marquese 2015.
4 Alexandre, Dias 1998, p. 379-438; Freudenthal 2005, p. 125-220.
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tores de café começaram, então, a plantar ao redor de terrenos de café selva-
gem, como, por exemplo, os da região do Cazengo. Nas primeiras décadas de
implementação do plano colonial de agricultura do café, esse tipo de cultivo
era feito, principalmente, por populações locais. Contudo, com o desenvol-
vimento econômico da região, produtores europeus também passaram a se
interessar por esse tipo de empreendimento. Com essa nalidade, requisita-
ram e ganharam concessões de terras do governo português metropolitano e
dos administradores coloniais. Esses produtores europeus começaram a criar
rmas agrícolas para a exploração do café e de outros produtos na região do
Cazengo.5
Além das concessões de terras feitas às rmas agrícolas de administração
europeia, o governo português também expropriou terra da população local
com o objetivo de construir estradas de ferro. A região do Cazengo foi um dos
alvos desses novos projetos de infraestrutura, pois os colonos europeus, há
muito, demandavam melhorias no sistema de escoamento da produção de
café. Assim, a construção da estrada de ferro Luanda-Ambaca, conjuntamen-
te ao crescimento das rmas agrícolas, gerou fortes tensões entre a população
local africana, colonos portugueses e autoridades coloniais, na região do Ca-
zengo.6
O contexto “pré-Conferência de Berlim” inuiu fortemente na congura-
ção desse cenário de desapropriação das populações locais africanas. Nessa
época, as potências imperiais europeias disputavam territórios africanos e
Portugal tentava garantir que regiões da África Centro-Ocidental fossem re-
conhecidas como seu território colonial. Assim, a expansão agrícola e dos em-
preendimentos de infraestrutura era central para garantir o reconhecimento
internacional de sua presença e de seu poder colonial na região.7
Diversos mecanismos jurídicos foram funcionais à expansão colonial por-
tuguesa na África Centro-Ocidental, em geral, e na região do Cazengo, em
particular. Neste artigo, focarei em um deles: o registro. O registro de pro-
priedade fundiária, nesse contexto colonial especíco, atendia aos anseios
portugueses na medida em que garantia a transferência formal da terra para
colonos e produtores europeus, o que servia, no âmbito internacional, como
prova de seu bom aproveitamento. Além disso, ao operar a transferência da
terra para mãos europeias, o registro garantia que as populações locais desa-
5 Freudenthal 2005, p. 125-220.
6 Alexandre, Dias 1998, p. 159, 468-471.
7 Ferreira 2018, p. 199-280.

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