O regime republicano e a Constituição de 1911. Entre a 'Ditadura do Legislativo' e a 'governação em ditadura': um equilíbrio difícil

AutorLuís Farinha
Páginas597-609

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“Os republicanos precisam de resolver um dilema: “sustentar a República com sacrifício do programa ou sustentar o programa com sacrifício da República”, Basílio

Teles, 1907

I Introdução

Esta comunicação pretende ser um pequeno ensaio exploratório sobre a governabilidade e a função legislativa decorrentes da Constituição de 1911. Nesta conformidade, partimos para a resposta, naturalmente limitada pela natureza e forma do texto, à seguinte pergunta: terá existido uma adequação entre a Constituição Republicana de 1911 e o regime republicano que lhe deveria corresponder, ou, pelo contrário, o texto constitucional e a praxis política foram dois projectos em confronto?

Na impossibilidade de fazer uma análise exaustiva do programa político que subjaz à Constituição e da praxis política comum durante o período de vigência do regime, escolherei alguns aspectos particulares da lei e dessa mesma praxis para dar resposta ao problema colocado.

Temos ideia – e é essa é a tese que desenvolveremos e procuraremos demonstrar -, que a I República viveu numa tensão constante entre a “governação constitucional” e as “situações de excepção”.

II “Governo constitucional” ou republicanização do estado e da sociedade? “Governo constitucional” ou “governação de excepção”?

Para os republicanos – para a maioria dos republicanos que tomaram o poder em 1910 -, era prioritária a manutenção de um “governo constitucional” ou a “republicanização do Estado”? Ou ainda por outras palavras, era mais importante a transformação revolucionária da realidade existente ou a consagração dos princípios liberais herdados do séc. XIX, num texto formalmente correcto, mas eventualmente incapaz de operar as transformações revolucionárias desejadas?

A República desejava ser um “governo constitucional?” Ou foi, demasiadas vezes um “governo arbitrário” ou um “governo de excepção” (governo técnico, governo de competências, de ditadura, de interrupção temporária das garantias constitucionais)?

Depois das discussões árduas, (embora rápidas no tempo dispendido), na Assembleia Constituinte - em torno dos numerosos projectos constitucionais, das discussões entre federalismo e unitarismo, do escrutínio entre a existência de um Presidente da República ou de um colégio

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presidencial, ou da natureza e limites do sufrágio -, a Constituição de 1911 não mereceu atenções especiais dos republicanos como instrumento para efectuar eventuais alterações do regime através da sua revisão. Diríamos que, na sua esmagadora maioria, os republicanos lhe não dispensaram uma especial atenção depois de feita e aprovada. As sugestões de alteração ou mesmo as críticas em relação à sua inadequação à realidade ficaram circunscritas a alguns pontos essenciais, ou então desenrolaram-se nas margens do regime ou na oposição. A maioria das discussões constitucionais ocorreram em pleno debate, no próprio Congresso, ou na praça pública, em jornais e em livros, mas não durante os debates especialmente dedicados à sua eventual revisão, fosse ela normal ou extraordinária.

Há a assinalar tentativas de propor à discussão novos projectos constitucionais: em 1912, de um grupo de maçons, em 1914 de Machado Santos e do seu grupo oposicionista, (lembremos que a revisão prevista ao fim de um prazo de 10 anos poderia ser antecipada extraordinariamente para 5); no entanto, os projectos não colhem a atenção da maioria do Congresso.

De facto, as alterações por via de revisão constitucional, ocorrem apenas por cinco vezes e, à excepção da “revisão anticonstitucional” de 1918, são de reduzido impacto:

i) Lei 635, de 28 de Setembro de 1916, visando a aplicação da pena de morte, em situações excepcionais de teatro de guerra;
ii) Decreto 3997, de 30 de Março de 1918, estatuindo um sufrágio universal masculino, uma orgânica senatorial diferente da estatuída em 1911 e um regime presidencialista. Trata-se da impropriamente designada “Constituição de Sidónio Pais”;
iii) Lei 1154, de 30 de Março de 1918, consagrando o funcionamento das duas Câmaras do Congresso, durante o consulado de Sidónio Pais;
iiii) Lei 833, de 16 de Dezembro de 1918, repondo em vigor a Constituição de 1911, até nova revisão constitucional, durante a presidência de Canto e Castro;
v) Lei 854, de 20 de Agosto de 1919, em que o poder legislativo fixa o montante do valor do subsídio a atribuir aos membros do Congresso, igualmente durante a prsidência de Canto e Castro;
vi) Lei 891, de 22 de Setembro de 1919, redefinindo as funções do Presidente da República, reforçando-lhe os poderes, designadamente atribuindo-lhe o poder de dissolução do Congresso, em condições excepcionais, e mediante o parecer de um Conselho Parlamentar. Apesar de terem aparecido sete projectos de alteração – um deles, da autoria de Alberto Xavier, que abrangia toda a Constituição -, a discussão e aprovação centrou-se no poder de dissolução, ainda durante a presidência de Canto e Castro;
vii) Lei 1005, de sete de Agosto de 1920, definindo o regime de descentralização das colónias, criando os Altos-Comissários das Províncias Ultramarinas, durante a presidência de António José de Almeida.

Nas vésperas da queda da República, em 1925-1926, a demissão das elites parlamentares nas correcções do sistema e a sua aposta numa solução excepcional (embora sem contornos políticos definidos) eram apenas

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contrariadas por correntes políticas extra-parlamentares que defendiam a absoluta necessidade de uma reforma constitucional e regimental. No rescaldo do 18 de Abril de 1925, seareiros, radicais e sectores conservadores, com monárquicos e integralistas incluídos publicam, em toada pedagógica, os termos em que deveria ocorrer essa reforma do sistema. No Diário de Notícias (7/6/1925) Brito Camacho, denunciando a improficuidade das Câmaras, considerava que o Congresso que havia de vir, munido de poderes constituintes, deveria reduzir o número de deputados, (já que o órgão raramente funcionava com mais de 2/3 dos parlamentares), deveria ainda diferenciar as funções das duas Câmaras “de modo que o Senado correspondesse melhor à representação dos interesses e a Câmara dos Deputados à representação das opiniões”. Na mesma linha de ideias, seareiros como Rodrigues Miguéis defendiam a substituição do Senado por um Conselho com carácter orgânico, de modo a combater “a esterilidade dos combates parlamentares”1. Ao mesmo tempo, este autor advogava uma mais nítida separação entre o poder legislativo e o poder executivo, de molde a corrigir o regime das autorizações e a queda constante dos governos por efeito de votações negativas do Parlamento2. No mesmo texto, defendia uma correcção do regimento de modo a impedir os “intermináveis debates” em favor da discussão e aprovação das propostas ministeriais e a vinda do governo ao Parlamento apenas para apresentar contas e responder a interpelações sintéticas. Como Brito Camacho, defendia a redução do número de parlamentares e a atribuição de uma “irrevogável prioridade” para a discussão dos orçamentos. Para a aprovação destes últimos, defendia ainda a marcação de prazos certos, findos os quais se considerariam aprovados, mesmo que não tivesse sido concluída a discussão.

Na forja estavam as ideias dos integralistas e dos republicanos de tendência anti-parlamentar que tão bem se haviam de casar no programa apresentado pelo radical Gomes da Costa em Junho de 19263. Nesse programa eram apresentadas oito bases fundamentais de um novo projecto de Constituição onde era adoptado o modelo republicano presidencialista na Chefia do Estado, com uma representação nacional por delegação directa dos Municípios – excluída a representação partidária –, em duas Câmaras: Câmara dos Municípios e Câmara das Corporações. Ao mesmo tempo, era alargado o sufrágio a núcleos orgânicos da sociedade (famílias, interesses económicos e...

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