Proteção cautelar contra execução abusiva de garantia bancária autónoma: entre a certeza de uma garantia forte e a verosimilhança da tutela cautelar

AutorAlexandre Mota Pinto
Páginas231-242

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1. Introdução

E com um enorme gosto, que me associo a esta homenagem ao Professor Aurelio Menéndez, através do estudo de um tema de direito dos contratos comerciais ou de direito das empresas, área em que tão justamente se destacou o labor e o saber do nosso ilustre homenageado.

A garantia bancária autónoma ainda é uma figura relativamente recente, datando da década de 801, os primeiros trabalhos da doutrina portuguesa sobre o tema, com origem em pareceres, em que pela primeira vez os tribunais e a doutrina se confrontavam com a difusão desta figura, na prática.

A verdade é que, hoje, a garantia bancária autónoma é uma figura contratual muito difundida na prática e já bem conhecida da doutrina2 e da jurisprudência pátrias, tendo-se os tribunais debatido, por várias vezes, com o problema da execução abusiva da garantia3.

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2. Autonomia, funç ão e estrutura da garantia bancária autónoma à primeira solicitação

Nascida da liberdade contratual das partes e imposta pela necessidade de reforçar a segurança do cre-dor, sobretudo no domínio do comércio internacional, a garantia bancária autónoma assegura um determinado resultado ao beneficiário da garantia: por exemplo, a devolução de quantias pagas ante-cipadamente num contrato de empreitada (garantia de reembolso de pagamentos antecipados); ou o pagamento de um determinado valor, em caso de incumprimento ou cumprimento defeituoso de um contrato de compra e venda (garantia de cumprimento, de bom funcionamento ou de pagamento) ou de incumprimento de uma oferta ou proposta contratual (garantia de honorabilidade da oferta).

Como é sabido, as partes atribuíram esta função de segurança à garantia, autonomizando-a da relação subjacente (relação base ou de valuta) entre ordenante e beneficiário da garantia, que está na origem da respectiva emissão. De facto, a necessidade de salvaguardar o beneficiário da garantia de certos riscos levou à superação das fragilidades inerentes á acessoriedade da fiança, através de uma garantia autónoma da relação base, da relação de que emerge o crédito do beneficiário, que a garantia visa assegurar.

Assim, apesar de assegurar ao credor um determinado resultado que constitui objecto de um outro contrato, o contrato base, a garantia autónoma cria uma obrigação do banco e o correspondente direito do beneficiário, imunes a quaisquer excepções emergentes desse contrato base. Digamos que a finalidade de segurança da garantia impõe a autonomia ou independência desta, em relação ao contrato base4.

Ao contrário do que sucederia com uma fiança, sendo inválida a relação base, nem por isso será inválida a garantia (cfr. o artigo 632° do Código Civil). Ainda que o devedor e ordenante da garantia disponha de meios de defesa contra o seu credor (que, por exemplo, não cumpriu ou não cumpriu correctamente a sua prestação), nem por isso o banco garante poderá invocar esses meios de defesa, relativos ao contrato base, contra o beneficiário da garantia (cfr. o art. 637° do Código Civil). Isto porque a garantia não é acessória, antes é autónoma em relação ao contrato-base, estando assim blindada e o respectivo beneficiário protegido, em relação às vicissitudes e riscos inerentes a essa relação base.

Esta função de segurança é claramente reforçada, quando à autonomia se une o carácter automático da garantia, conforme sucede com as muito difundidas garantias bancárias à primeira solicitação, em que uma simples declaração do beneficiário gera a obrigação de pagamento por parte do banco. Com esta cláusula de pagamento à primeira solicitação, o beneficiário fica protegido em relação aos riscos de atrasos provocados pela necessidade de provar os (e litigar quanto aos) pressupostos de que depende o exercício do seu direito5, juntando-se assim à função de segurança uma outra importante função de celeridade ou de evitar dilações. São estas as duas funções deste tipo de garantias bancá-rias autónomas à primeira solicitação, que tomarei como referência, nas linhas que se seguem.

Conforme resulta do estudo desta figura pela doutri-na portuguesa, a mesma apresenta uma estrutura triangular6, em que podemos distinguir: uma relação base (relação principal ou relação de valuta), normalmente, um contrato do qual emerge um crédito e a obrigação do devedor de constituir uma garantia bancária a favor do credor para segurança desse crédito; um contrato de mandato (relação de cobertura)7, entre o devedor na relação base e o banco, pelo qual

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este se obriga a emitir uma garantia a favor do credor e beneficiário da garantia; um contrato de garantia bancária autónoma8, à primeira solicitação, pelo qual o banco se obriga9 a pagar uma determinada quantia ao beneficiário à primeira solicitação deste e indepen-dentemente das excepções que pudessem emergir da relação base (relação de garantia).

3. Memória de um litígio: o perigo que pesa sobre o ordenante

Na minha prática profissional como advogado, já conheci dois dos três vértices destas relações triangulares.

Já apoiei beneficiários, no acto de interpelação do banco para cumprimento da garantia, em garantias bancárias documentais, em que o beneficiário tinha de fazer acompanhar a solicitação para pagamento de certos documentos, tendo podido testemunhar a satisfação desses beneficiários, quando receberam o montante garantido.

E também já apoiei ordenantes ou mandantes, que se confrontavam com ameaças de execução da garantia pelo beneficiário ou até com a comunica-ção do banco que, em cumprimento das suas obri-gações emergentes do mandato, os informava que o beneficiário exigira o pagamento do montante garantido, tendo testemunhado a tensão, ansiedade e até a revolta que esta situação gera no ordenante.

Por várias vezes, intentei justamente procedimentos cautelares com vista a evitar o pagamento da garantia pelo Banco, tema deste estudo.

Menciono um dos casos, que marcou a minha pré--compreensão, em relação a este tipo de garantias. Estava em causa a execução de duas garantias bancárias de elevado valor (2 500 000 €, cada) emitidas por um banco português de referência, a favor de duas empresas de promoção imobiliária e construção civil estrangeiras - execução irregular, visto que o contrato base (um contrato-promessa de compra e venda de terrenos urbanizáveis, em que as partes acordaram a constituição da garantia para situações de incumprimento) se extinguira pela verificação de uma condição resolutiva (a não apro-vação de um determinado plano de urbanização até certa data), não passando a execução da garantia de um meio de os respectivos beneficiários pressiona-rem o nosso constituinte para prorrogar o prazo de vigência do contrato.

O tribunal não atendeu ao nosso pedido para que a providência fosse concedida sem audiência prévia das beneficiárias e a verdade é que no período de tempo que mediou até à citação, estas empresas exe-cutaram com sucesso as garantias e a nossa constituinte teve de reembolsar ao banco o valor das garantias.

Intentámos uma ação contra as beneficiárias, no final de 2006, e em 2011, o Tribunal da Comarca de Lisboa condenou-as a pagar à nossa constituinte o montante de que se haviam apropriado ilicitamente, através da execução das garantias, o que veio a ser confirmado em 2012, por Acórdão da Relação de Lisboa.

Sucede que, entretanto, se verificou a insolvência de uma das empresas beneficiárias das garantias, pelo que, apesar de ter toda a razão, a nossa Constituinte sofreu um prejuízo considerável.

Este caso fez-me reflectir sobre o perigo que as garantias bancárias à primeira solicitação represen-tam para o ordenante, sobretudo, se emitidas a favor de beneficiários que não tenham escrúpulos em acioná-las ilicitamente.

É justamente este perigo que exige a tutela cautelar, que, como é sabido, visa proteger as partes de um particular "periculum", o perigo de quando for jul-gada a acção judicial referente à relação base, a mesma já não proteger eficazmente o interesse do devedor na relação base.

4. Inversão das posições no contrato base Pagar primeiro, litigar depois

Em bom rigor, estas garantias operam uma inversão das posições10 e dos ónus das partes na relação

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base, bem como dos correspondentes riscos. Caso não existisse a garantia, o credor na relação base teria de discutir primeiro e só receberia depois (concomitantemente, o devedor estaria na vantajo-sa posição de só depois de discutir, ser obrigado a pagar).

Com a emissão da garantia, o credor/beneficiário recebe primeiro e só terá de discutir depois, ao pas-so que o devedor/mandante terá de pagar primeiro e só poderá discutir depois.

Portanto, a garantia inverte o ónus de propositura da acção de satisfação do crédito garantido, passan-do este ónus a incidir sobre o devedor.

Em consequência desta inversão de papéis, a garantia opera uma inversão dos riscos de insatisfação do crédito do beneficiário. Sem garantia, este incorre-ria...

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