Propriedade intelectual - globalização e União Europeia

AutorLuís Couto Gonçalves
Cargo del AutorProfessor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade do Minho (Portugal)
Páginas125-144

Page 126

Introdução

O Acordo de Bretton Woods, celebrado em Julho de 1944, num momento, pois, ainda anterior ao final da segunda guerra mundial (1939/1945), procurou solidificar a cooperação e regulamentar o comércio internacional pela institucionalização das relações económicas transnacionais, procurando controlar a tendência proteccionista económica e transferir poderes soberanos para instituições supranacionais.

Em consequência desse Acordo, surgiram o "Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento" (que integra o chamado "Banco Mundial") e o "Fundo Monetário Internacional".

Por sua vez a Organização das Nações Unidas (ONU), criada em 1945, procurou, em vão, no seio do "Conselho Económico e Social", a criação da "Organização Internacional do Comércio" (OIT).

A experiência fracassada da OIT esteve na origem do General Agreement on Tariffs and Trade (GATT), em 1947, ao abrigo de um protocolo de aplicação provisória. O GATT manteve-se, "provisoriamente", até final de 1994, altura em que foi integrado (como um Acordo) na OMC.

O GATT era desprovido de personalidade jurídica e aplicável apenas quando não contrariasse as legislações internas das partes contratantes.

Pese embora as suas insuficiências, incluindo o corpo normativo débil em resultado da carência de aplicabilidade e efeito directos das suas normas sem força obrigatória, o GATT foi o único instrumento multilateral a disciplinar, embora modestamente, o comércio mundial até à criação da OMC.

A vontade dinâmica das partes contratantes esteve na base de sucessivos aperfeiçoamentos deste acordo, intitulados por Rondas (Rounds), das quais se destaca a do Uruguay Round (1986/1994), a mais marcante, que culminou com a criação da OMC em 1994.

Em rigor, não se pode dizer que este desenlace tenha sido uma surpresa. De facto, desde os anos 80 do século xx, começa a emergir um fenómeno novo, crescente, relevante e determinante: a globalização.

O GATT, pensado para um mercado internacional com uma estrutura muito diferente, assente, essencialmente, no comércio internacional de mercadorias, já não podia responder aos novos desafios e necessidades.

A globalização traduz-se, na esfera económica, numa ideia de circulação e de liberalização dos factores de produção à escala mundial. A globalização, para além de abranger um novo processo de investimento, produção e consumo, impõe um reforçado processo de integração de mercados e de aproximação e harmonização das respectivas regras de enquadramento e de funcionamento.

Page 127

A OMC, que conta, presentemente, com 162 membros (incluindo a UE e os seus 28 Estados, individualmente considerados) abrange um conjunto relevante de acordos, que inclui uma grande revisão do GATT, que passa a integrar o quadro legal da OMC para o comércio de mercadorias.

Os acordos da OMC abrangem ainda novas regras para o sector de serviços, os aspectos de propriedade intelectual relacionados com o comércio, a resolução de litígios e a política comercial.

As funções da OMC são essencialmente: i) administrar os acordos; ii) ser um fórum de negociações comerciais; iii) resolver disputas comerciais; iv) acompanhar políticas nacionais de comércio; v) dar assistência técnica aos países em desenvolvimento; vi) cooperar com outras organizações internacionais.

A OMC tem personalidade jurídica e um significativo aparelho institucional que a habilita a coordenar, coercivamente, se necessário, as relações comerciais mundiais.

A inserção da matéria da propriedade intelectual no âmbito da OMC não foi consensual e representou uma significativa querela entre os países mais industrializados e os países em desenvolvimento.

O ADPIC, de 1994, apesar de se juntar a convenções internacionais emblemáticas existentes em matéria de propriedade intelectual - a CUP de 1883 e a "Convenção de Berna para a protecção das obras literárias e artísticas de 1886", ambas várias vezes revistas - apresenta um carácter inovador, por ser a primeira vez que a propriedade intelectual é objecto de um acordo no âmbito de uma organização de natureza comercial a nível multilateral.

O acordo reconhecia a grande diversidade de normas destinadas a proteger os direitos de propriedade intelectual e a falta de um quadro multilateral de princípios, normas e disciplinas relacionados com o comércio internacional de mercadorias falsificadas e contrafeitas que eram fonte, cada vez maior, de tensões nas relações económicas internacionais.

O ADPIC, administrado pela OMC, traduz a vontade multilateral da comunidade internacional na adopção de um regime eficaz no combate à distorção e aos obstáculos ao comércio internacional a partir da protecção dos direitos de propriedade intelectual.

Assente nos princípios do tratamento nacional e do tratamento da nação mais favorecida, estabelece um regime substancial ao nível dos direitos de autor e direitos conexos, das marcas, das indicações geográficas, dos desenhos e modelos industriais, das patentes, das configurações (topografias) de circuitos integrados e da protecção de informações não divulgadas, que exige a adopção interna de procedimentos administrativos e judiciais que protejam estes direitos. Além disso, apoia-se num sistema autónomo de resolução de litígios, de vocação preventiva e sancionatória.

Em sentido amplo, a propriedade intelectual protege criações do espírito humano (coisas incorpóreas) e engloba duas categorias: o direito de autor e o direito da propriedade industrial.

Coisas incorpóreas, para citarmos Gómez Segade, são "criações da mente humana que, mediante os meios adequados, se tornam perceptíveis e utilizáveis

Page 128

nas relações sociais e que pela sua especial importância económica são objecto de uma tutela jurídica especial" 1 ou, na proposta de Orlando de Carvalho, "ideações que uma vez saídas da mente e, por conseguinte, discerníveis, ganham autonomia em face dos meios que as sensibilizam ou exteriorizam e em face da própria personalidade criadora justificando um tutela independente da tutela da personalidade como da tutela dos meios ou objectos corpóreos que são o suporte sensível dessas mesmas ideações"2.

O direito de autor, que inclui a tutela dos direitos conexos, protege as criações intelectuais dos domínios literário e artístico, por qualquer modo exteriorizadas e qualquer que seja o seu género, mérito ou forma de expressão, incluindo: obras literárias; obras audiovisuais; obras de multimédia; programas de computador (software); obras de arte aplicadas, desenhos ou modelos e obras de design que constituam criação artística; ilustrações e cartas geográficas; projec-tos, esboços e obras plásticas respeitantes à arquitectura, ao urbanismo, à geografia ou às outras ciências. No âmbito do direito de autor são também reconhecidos direitos exclusivos conexos sobre as prestações dos artistas, intérpretes ou executantes, dos produtores de fonogramas e videogramas e dos organismos de radiodifusão.

O direito da propriedade industrial protege os direitos sobre bens incorpóreos mais directamente ligados a interesses da actividade económica, os quais podem agrupar-se em duas grandes espécies: as criações industriais e os sinais distintivos. Os direitos sobre criações industriais abrangem, essencialmente, as patentes de invenção, os modelos de utilidade, as topografias dos produtos semicondutores, as obtenções vegetais e os desenhos ou modelos. Os sinais distintivos do comércio abrangem, designadamente, as marcas, os nomes e insígnias, os logótipos 3 e as denominações de origem e indicações geográficas.

A propriedade intelectual, no seu conjunto, tem, assim, por objecto a pro-tecção legal de um conjunto específico de direitos sobre coisas incorpóreas: as criações autorais, as industriais e os sinais distintivos.

O direito de autor tem por finalidade garantir um incentivo económico adequado aos criadores intelectuais e às entidades que investem na criação e na divulgação de bens intelectuais através da reserva aos titulares de direitos de um exclusivo de exploração económica das obras. À protecção destes interesses individuais de carácter patrimonial alia-se, nos sistemas jurídicos da União Eu-ropeia, a tutela de direitos de carácter pessoal (normalmente designados como "direitos morais").

Em todo o caso, o direito de autor é um direito dominado por considerações finalistas pelo que, como sucede com os demais direitos subjectivos, a liberdade atribuída ao autor não pode ser entendida em termos puramente individualistas. Entenda-se ou não que o direito de autor tem a natureza jurídica de um direito de propriedade (direito de propriedade intelectual), a verdade é que, a par com o direito de propriedade e os outros direitos patrimoniais, o direito autoral tem uma função social. É da consideração desta última que decorre a sujeição do direito

Page 129

exclusivo a limites ou excepções, que permitem compatibilizar o seu exercício com interesses sociais ou outros interesses individuais tidos como relevantes.

A propriedade industrial visa garantir, essencialmente, a afirmação da identidade da empresa em mercado de livre concorrência e com produção em massa. Dito de outra forma, o direito da propriedade industrial surgiu para resolver um problema que se começou a manifestar, com particular especificidade e intensidade, a partir da chamada revolução industrial: a necessidade de proteger a identidade da empresa e respectivos modos de afirmação concorrencial. Essa protecção concretizou-se e concretiza-se pela atribuição de direitos privativos em relação a concretas formas de afirmação de identidade: a afirmação técnica (patentes de...

Para continuar leyendo

Solicita tu prueba

VLEX utiliza cookies de inicio de sesión para aportarte una mejor experiencia de navegación. Si haces click en 'Aceptar' o continúas navegando por esta web consideramos que aceptas nuestra política de cookies. ACEPTAR