Princípio da legalidade e autonomia da vontade na contratação pública

AutorJosé Carlos Vieira de Andrade
Cargo del AutorProfessor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Páginas61-74

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Introdução

O problema das relações entre a legalidade e a autonomia contratual exprimese na seguinte pergunta: em que medida é que, num sistema de administração executiva, a vinculação da Administração Pública à legalidade substantiva prévia e à prossecução do interesse público afecta, determina ou influencia a sua autonomia como parte contratual.

Para responder adequadamente a esta pergunta, vamos considerar três dimensões de impostação do problema, que de algum modo também correspondem a três épocas de evolução normativa e doutrinária:

  1. Começaremos referir a dimensão e a época da legalidade da contratação, em que a subordinação administrativa à lei era encarada como um factor de exclusão ou de limitação da autonomia pública na celebração dos contratos -a perspectiva dominante era a da vinculação legal da decisão administrativa e teve como resultado a construção da figura específica do contrato administrativo, distinto dos contratos de direito privado celebrados pela Administração Pública, como uma forma de actividade excepcional ou, de todo o modo, tendencialmente limitada, enquanto acordo, pelo poder-dever de realização imperativa do interesse público.

  2. Referir-nos-emos depois à dimensão e à época da transparência contratual, em que se procura em primeira linha estabelecer os princípios e as regras procedimentais a que deve obedecer a celebração de contratos pela Administração Pública -a perspectiva central é agora, num sentido amplo, a da legalidade formal,

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    através da conformação normativa do procedimento de formação dos contratos e tende a referir-se a uma universalidade dos contratos públicos, como categoria diferente dos contratos entre privados, mas abrangendo todos os contratos da Administração Pública.

  3. Por fim, falaremos da dimensão da justiça material dos conteúdos contratuais, em que se põe o problema dos termos normativos em que deve ser assegurado o equilíbrio substancial entre o imperativo da prossecução do interesse público comunitário e os direitos e interesses dos particulares contratantes, no âmbito da execução do contrato -a perspectiva principal passa a ser a da legalidade subs-tancial e a do regime da relação jurídica substantiva contratual, que aponta para a distinção necessária entre os vários tipos de contratos administrativos, num continuum que vai desde os contratos de direito privado em que só o procedimento é de direito público até aos que exigem uma subordinação mais intensa do particular, que é máxima naqueles contratos que substituam ou obriguem à prática de actos administrativos de autoridade.

I Os problemas da legalidade da contratação
  1. Tradicionalmente, a questão correspondia à preocupação em saber se e até que ponto era admissível que a Administração Pública -subordinada à legalidade administrativa e ao interesse público- dispusesse de autonomia da vontade na utilização da forma contratual, isto é, para realizar acordos com particulares.

    Pressupunha-se que, segundo o modelo privado, as relações contratuais eram entre iguais, que havia liberdade de celebração e de estipulação do conteúdo contratual pelas partes, que disporiam também de capacidade para o compromisso.

    E perguntava-se como seria isso compatível com as características próprias da actuação administrativa, num sistema de administração executiva, onde haveria desigualdade (autoridade) entre a Administração e os particulares, sujeição administrativa à lei, que pré-confeccionava os termos de tal actuação, e ao interesse público, que, pela sua imperatividade, tornava indisponível a respectiva realização.

    Presumia-se, assim, o antagonismo radical entre a liberdade contratual e a legalidade heterónoma, relativas a dois mundos estanques: a liberdade e a competência, o privado e o público, a sociedade e o Estado.

    O problema fundamental era o da liberdade de celebração do contrato e de estipulação dos contenídos contratuais por parte da Administração -perguntava-se se ou até que ponto as vinculações administrativas, que existem sempre na competência e no fim (determinado pelos pressupostos de facto), permitiriam uma discricionaridade administrativa alargada, que incluísse a liberdade de entrar em acordo com os particulares e de modelar os termos desse acordo.

  2. Sabemos hoje que aquela contraposição, para além de não ser absoluta -e de, em rigor, nunca o ter sido-, está em grande medida ultrapassada pela realida-62

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    de actual, quer esta seja analisada do lado da Administração, quer seja avaliada do lado dos particulares.

    Desde logo, alterou-se a próprio paradigma do contrato, concretamente, do contrato de direito privado.

    A liberdade e a autonomia contratual têm de adaptar-se a relações sociais em que não há igualdade perfeita entre as partes, mas situações reais de domínio de uns e de vulnerabilidade de outros -como se comprova, por exemplo, no universo cada vez mais alargado dos contratos de adesão. Tal como falta muitas vezes a liberdade e a disponibilidade total do conteúdo contratual- num mundo em que um número crescente de normas jurídicas impõe ou proíbe a inclusão nos contratos de determinadas cláusulas.

    Podemos talvez dizer que a vontade que caracteriza a figura do contrato privado deixou de ser a da escolha livre do conteúdo, enquanto manifestação de uma liberdade estipulatória, e passou a ser a vontade que se exprime através de um consentimento livre e esclarecido.

    Por seu lado, alterou-se também o padrão da legalidade: a actividade administrativa não se limita às tradicionais funções de polícia e finanças, desenvolvese em áreas económicas e sociais e desempenha novas tarefas de prestação, de infra-estruturação e de regulação, que nem sempre se compadecem com a prefiguração abstracta, estrita e universal das soluções para os conflitos de interesses públicos e privados, a ser aplicada aos particulares, independentemente do respectivo acordo.

    A expansão intervencionista vai tornar inevitável a colaboração dos particulares no desempenho das tarefas públicas. Se é certo que em grande medida o Estado social agigantou os serviços burocráticos da Administração, cedo esta verificou que não podia acudir a tudo por intermédio do seu aparelho organizatório -e o contrato apresentou-se como uma forma de concertar essa realização conjunta dos objectivos comunitários, seja na pretação de serviços, seja na criação de infra-estruturas.

    Do mesmo modo, as actuações de controlo e de regulação administrativa das actividades de iniciativa privada para salvaguarda do interesse público não se satisfazem com as categorias unilaterais da permissão, imposição ou proibição.

    Perante situações de grande complexidade, há necessidade de planificação e de racionalização, para assegurar a eficiência e a eficácia das novas tarefas administrativas. O contrato representa aqui uma possibilidade de assegurar o interesse público, através da adequação das normas que o determinam às circunstâncias não previstas nem previsíveis.

    O que caracteriza os contratos celebrados pela Administração pública é o acordo de vontades ente ela e os particulares, bem como o princípio do equilíbrio entre as prestações acordadas, segundo uma ideia de justiça comutativa, expressa na respectiva equação financeira -basta isso para assegurar a lógica contratual.

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    A gramática dos contratos é, hoje, portanto, a mesma para os contratos privados e para os contratos públicos.

  3. Isso não significa, porém, que a legalidade administrativa não limite a auto-nomia contratual da Administração: enquanto imperativo de realização dos fins públicos e de garantia dos direitos dos cidadãos, continua a pôr limites à utilização administrativa da figura contratual, tal como implica diferenças de regime, que continuam a justificar a ideia de contrato administrativo.

    Inicialmente, partia-se do princípio da proibição da utilização do contrato no âmbito da actuação administrativa de direito público: mesmo nos casos em que excepcionalmente fosse admitido o contrato, haveria sempre limites mais ou menos intensos à liberdade estipulação pública.

    Pelo contrário, hoje, a lei permite como regra geral a utilização do contrato no exercício da função administrativa, salvo excepções ou limites -nos termos da lei portuguesa «salvo se outra coisa resultar da lei ou da natureza da relação a estabelecer».

    O regime inverteu-se: deixou de valer o princípio da proibição e não pode sequer afirmar-se, em geral, a existência de áreas proibidas; o princípio é o da admissibilidade, embora com limites e compressões.

    Assim, por exemplo, admitem-se os contratos substitutivos de actos administrativos, designadamente contratos de atribuição e de concessão, bem...

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