Primeira Lei do Contrato de Trabalho em Portugal: Lei nº 1.952, de 10 de Março de 1937

AutorMargarida Seixas
Páginas481-513
PRIMEIRA LEI DO CONTRATO DE TRABALHO EM PORTUGAL:
LEI Nº 1 952, DE 10 DE MARÇO DE 1937
Margarida Seixas1
Resumo: No período da consolidação do Estado Novo em Portugal, as matérias laborais
assumiram um papel central, ancorado no esforço para implementar o corporativismo,
traduzido no Estatuto do Trabalho Nacional (ETN, 1933) e num acervo de novos diplomas
sobre matérias laborais, entre os quais a primeira lei do contrato de trabalho (1937), que
deve ser entendida como concretização do próprio ETN (férias, aviso prévio para despedi-
mento, trabalho de mulheres e crianças, remuneração). Da análise dos debates na Assem-
bleia Nacional e do parecer da Câmara Corporativa sobre a proposta do Governo ressaltam
as nalidades da regulação laboral, bem como a assunção plena da natureza “especial” da
relação jurídica de trabalho, em que se atenuava o “aspecto jurídicoe se fazia penetrar “o
aspecto económico e social”, (mas sem esquecer o vínculo jurídico voluntário), para alcan-
çar a realização de interesses diferentes, ambos legítimos e merecendo a tutela do Estado,
através do “justo equilíbrio”.
Palavras-chave: Estado Novo, Direito do Trabalho, Corporativismo, Portugal
Abstract: During the consolidation of the Estado Novo in Portugal, labour issues took
on a predominant role rooted in the effort to implement the corporativism conveyed in
the Statute of National Labour (ETN, 1933) and in a collection of new legislation about
labour matters such as the rst of the work contract enactment (1937). This enactment can
be acknowledged as the embodiment of the ETN (that is, paid vacation, advance notice
of termination, women’s and child labour, and remuneration). In analysing the National
Assembly debates and the Corporatist Assembly opinion about the government program,
the highpoints were both the intent to regulate labour and the full belief in the special na-
ture of the legal relation of labour. Here, while remembering the voluntary legal bond, the
juridical feature was mitigated, and the social and economics viewpoint prevailed in order
to achieve different interests, both of them legitimate and suitable for State protection by
virtue of “fair balance.”
Key-words: “Estado Novo”; Labour law; Corporativism; Portugal.
SUMÁRIO: I. ESTADO NOVO E TRABALHO; II. A LEI DO CONTRATO DE TRABALHO
DE 1937: 1. Processo legislativo; A. Proposta do Governo; B. Parecer da Câmara Corpo-
rativa; C. Debates na Assembleia Nacional; 2. Análise da Lei; A. Contrato de trabalho; B.
Empregados e assalariados, ordenados e salários; C. Cessação; D. Férias; E. Protecção da
maternidade; F. Varia; III. CONCLUSÃO. IV. BIBLIOGRAFIA.
1 Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Investiga-
dora do Centro de Investigação em Teoria e História do Direito da Universidade de Lisboa.
E-mail: margaridaseixas@fd.ulisboa.pt
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MARGARIDA SEIXAS
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I. ESTADO NOVO E TRABALHO
Em Portugal, a 28 de Maio de 1926, um golpe militar derrubou a I Repú-
blica e iniciou um novo período (“Ditadura Militar”2), que veio a evoluir para
o regime designado “Estado Novo”, consolidado essencialmente no início da
década de 1930, em especial através da Constituição de 19333. Foram várias
as fontes do corporativismo português4 que inuenciaram as concepções que
enformavam as matérias laborais e o tratamento que lhe era conferido pelo
Direito. Pode apontar-se a forte inuência do corporativismo italiano5, da
doutrina social da Igreja6, do integralismo lusitano (com destaque para Antó-
nio Sardinha)7, do pensamento de António Costa Lobo e de Oliveira Martins,
2 Sobre o período da Ditadura Militar e os seus antecedentes, com análise cuidada e
indicação de extensíssima bibliograa, pode ver-se Luís BIGOTTE CHORÃO, A crise da
República e a Ditadura Militar, Porto (Sextante Editora – Porto Editora), 2010 (2ª edi-
ção). Sobre o Estado Novo, ver a lista de bibliograa referida na nota 4 e, para lá das várias
obras indicadas neste texto, a obra muito completa de Luís REIS TORGAL, Estados Novos
Estado Novo. Ensaios de História Política e Cultural, 2 volumes, Coimbra (Imprensa da
Universidade), 2009 (2ª edição revista). Muito interessante, pela análise do tratamento do
tema ao longo do tempo e por diferentes perspectivas, é o artigo de Francisco PALOMANES
MARTINHO, “O Estado Novo na historiograa portuguesa: sobre a questão do Fascismo”,
in Historiograas Portuguesa e Brasileira no Século XX. Olhares Cruzados, Coimbra (Im-
prensa da Universidade), 2013, pp. 111-146, http://hdl.handle.net/10316.2/38576
3 Pode, v.g., ver-se António ARAÚJO de 1933, A Lei de Salazar, Coimbra (Edições
Tenacitas), 2007, livro que colige vários textos do Autor sobre a Constituição de 1933.
4 Sobre o corporativismo português – mas extravasando até o contexto nacional –
pode ver-se a «Bibliograa essencial sobre o “corporativismo português”», em Fernando
ROSAS e Álvaro GARRIDO (coord.), Corporativismo, Fascismo, Estado Novo, Coimbra
(Almedina), 2012, pp. 313-319.
5 Como defendido desde há muito (mas talvez com algum exagero) por Manuel LU-
CENA, A Evolução do Sistema Corporativo Português, I, O Salazarismo, Lisboa (Pers-
pectivas e Realidades), 1976. Armando essa inuência, mas marcando claramente as
diferenças, por exemplo António COSTA PINTO, vg. “O Estado Novo português e a vaga
autoritária dos anos 1930 do século XX”, O Corporativo em Português. Estado, Política e
Sociedade no Salazarismo e no Varguismo, Lisboa (ICS), 2007, pp. 45-47.
6 Sobre este aspecto, existe diversa bibliograa – também indicada na lista referida
na nota 4 –, de que destaco uma obra mais recente, bastante completa: Daniele SERAPI-
GLIA, La via portoghese al corporativismo, Roma (Carocci), 2011, pp. 111 e ss. para a fase
inicial do Estado Novo.
7 Ver, por exemplo, para a inuência integralista na Constituição de 1933, Filipe Da-
niel de AREDE NUNES, O pensamento político no nascimento do Estado Novo em espe-
ESTUDOS LUSO-HISPANOS DE HISTÓRIA DO DIREITO
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do corporativismo austríaco, da ditadura de Primo de Rivera e, inicialmen-
te, do nacional-sindicalismo de Rolão Preto8. José João Abrantes assinala
até uma inuência do “«socialismo catedrático», com a defesa do reforço do
Estado e da sua intervenção na vida económica, embora com respeito pela
propriedade e iniciativa privada”9.
O corporativismo – para o qual “as classes sociais não têm interesses an-
tagónicos e o Estado tem a função de as fazer colaborar entre si10 – apre-
sentava-se como alternativa tanto face “ao capitalismo selvagem de matriz
demo-liberal, como ao colectivismo socialista11. Os novos regimes12 – entre
os quais o português – transportariam esta nova ideologia, uma concepção
que exigia transformações institucionais para a criação do novo Estado cor-
porativo, orgânico, contrário ao individualismo e ao conito social.
Tendo como base teórica o associativismo prossional e a valorização dos
corpos intermédios, pretendia-se uma auto-direcção da Economia, mas, na
verdade, nunca foi esse modelo português, que construiu um Estado clara-
mente intervencionista, baseado na unidade da Nação e na procura/imposi-
ção de paz social. Como diz Romano Martinez, “o corporativismo, em Portu-
gal, foi criado por lei13, ou seja, não se formou a partir da livre iniciativa de
cial: a inuência do integralismo lusitano na elaboração da Constituição de 1933 [texto
policopiado], Lisboa: [s.n.], 2007, e também António ARAÚJO, “Dúvidas e incertezas so-
bre as origens da Constituição Política de 1933”, A Lei de Salazar, cit., pp. 26-28.
8 Cf., entre muitos outros, António COSTA PINTO, vg. “O Estado Novo português e a
vaga autoritária dos anos 1930 do século XX”, cit; pp. 25-49 (o autor tem uma extensíssi-
ma obra sobre esta temática e outras conexas); Bernardo LOBO XAVIER, Curso de Direito
do Trabalho, I, I, Lisboa (Verbo), 2004, pp. 90-91, e Pedro ROMANO MARTINEZ, Direito
do Trabalho, Coimbra (Almedina), 2010 (5ª edição), pp. 94-95.
9 José João ABRANTES, «O Direito do Trabalho do “Estado Novo”», Cultura, Vol. 23
(2006), disponível em https://journals.openedition.org/cultura/1518, p. 2.
10 Idem, p. 3.
11 Goffredo ADINOLFI, “O corporativismo na ditadura fascista italiana”, in António
COSTA PINTO e Francisco PALOMANES MARTINHO (org.), A Vaga Corporativa – Cor-
porativismo e Ditaduras na Europa e na América Latina, Lisboa (ICS/UL), 2016, p. 41.
12 Para uma visão de conjunto comparativa, António COSTA PINTO, “O corporati-
vismo nas ditaduras da época do Fascismo”, VARIA HISTORIA, vol. 30, nº 52, Jan/Abril
2014, pp.17-49.
13 Cf. Pedro Romano MARTINEZ, Direito do Trabalho, cit., p. 95. Para uma expo-
sição clara desta dinâmica, presente em Portugal desde os alvores do Estado Novo, ver,
por exemplo, Fernando ROSAS, “O Corporativismo Enquanto Regime”, Corporativismo,
Fascismo, Estado Novo, cit., pp. 20-22, reforçado nas pp. 26, 33-35.

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