O papel das pessoas coletivas como administrador ou gerente de uma sociedade comercial

AutorPedro Ferreira Malaquias - Inês Caria Pinto Basto - Afonso Choon
CargoAdvogados
Páginas19-33

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Enquadramento

Antes da aprovação do Código das Sociedades Comerciais 1 (o «CSC»), não existia nenhum impedimento legal (quer no Código Comercial, quer ainda na Lei de 11 de abril de 1901 que regulava o regime jurídico das sociedades por quotas) que obstasse a que as pessoas coletivas pudessem exercer o cargo de administrador ou de gerente de sociedades comerciais. Perante este vazio legislativo era relativamente pacífico na doutrina, com reflexos na prática societária portuguesa 2, o entendimento de que, tal como as pessoas singulares, também as pessoas coletivas podiam ocupar cargos de gerente e de administrador de sociedades comerciais 3.

Como explica Nogueira Serens, no período anterior à entrada em vigor do CSC, uma vez que o artigo 172.º do Código Comercial 4 dispunha que «a eleição dos administradores será feita entre os sócios», não poderia ser negada às pessoas coletivas a possibili-

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dade de serem designadas para os cargos de administração, já que «no caso (extremo) de todos os sócios serem pessoas coletivas, a constituição desse órgão não seria possível; se além de sócios-pessoas coletivas, houvesse sócios-pessoas humanas, fosse qual fosse o valor da sua participação seriam estes os administradores (...) - e sê-lo-iam apenas por serem sócios, e não por serem os mais competentes para o exercício do cargo» 5.

Esta situação veio a ser modificada quando, através do Decreto-Lei n.º 389/77, de 15 de setembro 6 se

veio permitir que o órgão colegial de administração das sociedades anónimas pudesse integrar membros que não fossem acionistas.

Este alargamento contribuiu definitivamente, por um lado, para a crescente profissionalização do cargo de administrador das sociedades anónimas, que passou a ser considerado como uma «tarefa de pessoas, profissionalmente competentes e juridicamente capazes, às quais era possível imputar a responsabili-dade (mesmo penal) pelos êxitos e inêxitos da sociedade» 7. Esse mesmo juízo, acerca das qualidades pessoais, humanas e profissionais do administrador, não poderia naturalmente ser efetuado em relação a pessoas coletivas, já que a sua personali-dade é uma mera criação do direito 8.

Por outro lado, desapareciam definitivamente os motivos que justificavam a equiparação, que vinha sendo feita, entre pessoas coletivas e pessoas singulares, no que concerne ao acesso aos órgãos de administração das sociedades, já que a sociedade administrada deixava de ter que escolher os seus administradores entre os seus acionistas.

Não tendo, contudo, desaparecido a prática de designação de pessoas coletivas para cargos de administração, e relativamente às sociedades anónimas, o legislador optou por consagrar, no artigo 390.º do CSC (que aqui reproduzimos por facilidade de exposição), o seguinte:

Artigo 390.º - Composição

[...]

3. Os administradores podem não ser acionistas, mas devem ser pessoas singulares com capacidade jurídica plena.

4. Se uma pessoa coletiva for designada administrador, deve nomear uma pessoa singular para exercer o cargo em nome próprio; a pessoa coletiva responde solidariamente com a pessoa designada pelos atos desta.

No que diz respeito às sociedades por quotas e sem norma semelhante à do n.º 4 do supra referido artigo 390.º, apenas foi estabelecido, no artigo 252.º do CSC:

Artigo 252.º - Composição da Gerência

1. A sociedade é administrada e representada por um ou mais gerentes, que podem ser escolhidos de entre estranhos à sociedade e devem ser pessoas singulares com capacidade jurídica plena.

As referidas disposições legislativas suscitam várias questões de interpretação, as quais, apesar da sua relevância prática e da frequência com que surgem na vida das sociedades comerciais portuguesas, se encontram ainda longe de reunir respostas consensuais por parte da doutrina que sobre elas se pronunciou 9.

Este artigo pretende contribuir para um aprofundamento da reflexão acerca da problemática associada à designação de pessoas coletivas para o cargo de administrador de sociedades anónimas, abordando e tomando posição acerca (i) do sentido e da natureza da designação, (ii) do âmbito de aplicação objetivo e subjetivo do referido n.º 4 do artigo 390.º do CSC, (iii) do tempo e do modo através do qual opera a nomeação do administrador, (iv) da posição da pessoa coletiva designada após a nomeação da pessoa singular, (v) da posição da pessoa singular nomeada e, por fim, (vi) do regime de responsabilidade solidária da pessoa coletiva (temas que ocuparão a primeira parte da nossa exposição), bem como da admissibilidade da designação de pessoas coletivas para o cargo de gerente de sociedades por quotas (questão que iremos abordar num segundo momento).

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I · Sociedades anónimas
1 · Sentido e natureza da designação da pessoa coletiva e da nomeação da pessoa singular para o cargo de administrador

Vimos já que antes da aprovação do CSC se vinha admitindo que uma pessoa coletiva pudesse ser designada e pudesse exercer o cargo de administrador de sociedades comerciais 10. Mas como a pessoa coletiva necessita de uma pessoa física que expresse a sua vontade e aja no exercício daquelas funções, deveria esta nomear uma pessoa singular enquanto seu representante permanente para exercer o mandato para a qual foi eleita 11.

É imperativo, para se entender o regime estabelecido no CSC relativamente à designação de pessoas coletivas para o cargo de administrador de sociedades anónimas, sublinhar que o CSC veio romper com esta tradição anterior, e que ainda hoje tem repercussões no registo comercial português 12.

De facto, ao consagrar-se no n.º 3 do artigo 390.º do CSC que os administradores «devem ser pessoas singulares com capacidade jurídica plena», afastou-se definitivamente a possibilidade de pessoas coletivas exercerem diretamente, ou através de representante, o cargo de administrador de sociedades anónimas.

A reforçar este entendimento, veja-se que o legislador ao consagrar no n.º 4 do artigo 390.º do CSC que a pessoa coletiva deverá nomear uma pessoa singular que exercerá o cargo em nome próprio, procurou afastar definitivamente a possibilidade de a pessoa singular atuar enquanto representante da pessoa coletiva.

No mesmo sentido aponta o facto da pessoa coletiva, nos termos do n.º 4 do artigo 390.º, in fine, responder solidariamente pelos atos praticados pela pessoa singular nomeada.

Caso a pessoa coletiva fosse, na verdade, o administrador, e a pessoa singular apenas um mero representante desta, a pessoa coletiva já responderia pelos atos da pessoa singular, nos termos gerais da responsabilidade dos administradores, previstos no artigo 72.º e seguintes do CSC.

Deve assim entender-se, como refere Raúl Ventura que "o sistema de representação foi banido" pelo CSC 13.

Temos assim que, por um lado, uma pessoa coletiva não pode ocupar nem exercer o cargo de administrador de sociedades anónimas, mas por outro, pode, contudo, ser designada para o mesmo. Como resolver esta aparente contradição?

Diríamos que o legislador pretendeu, sem abdicar da regra de que os administradores têm que ser pessoas singulares, «salvar» essa designação, não a sancionando com a invalidade, mas procurando antes atribuir-lhe um (diferente) efeito útil. Ou seja, a designação da pessoa coletiva, ao contrário do que acontece relativamente às pessoas singulares, não tem por efeito a ocupação, ou o exercício do cargo de administrador pela pessoa coletiva. «Ela não constitui a pessoa coletiva no poder de gerir a sociedade ou de exercer qualquer uma das atribuições que são características do administrador» 14, mas investe antes a pessoa coletiva no poder-dever de nomear uma pessoa singular para, em nome próprio, exercer o cargo.

Esta ideia decorre mais claramente do anteprojeto proposto por Raúl Ventura em que se podia ler que «a designação no contrato ou a eleição duma pessoa colectiva não é nula, mas entende-se como conferindo a esta a faculdade de designar a pessoa singular que, em nome próprio exercerá o cargo».

Confirmando a abolição do sistema de representação que vigorava antes da aprovação do CSC, vemos que, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 390.º do CSC, a pessoa singular nomeada pela pessoa coletiva exercerá o cargo em nome próprio. E apesar da letra da lei nada referir, não podemos aceitar que à pessoa singular seja concedido, através da sua

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nomeação pela pessoa coletiva, um mandato sem representação, em que apesar de agir em nome próprio, atuaria por conta e no interesse da pessoa cole-tiva designada. De facto, a pessoa singular nomeada apenas poderá, enquanto administrador, agir no interesse da sociedade administrada 15.

Deve assim afastar-se qualquer tentação de ver na nomeação da pessoa singular a criação de uma relação de representação com a pessoa coletiva designada, com todas as consequências que daí advêm e que analisaremos mais à frente.

Ora, não ocupando a pessoa coletiva designada o cargo de administrador, que só poderá ser preen-chido por pessoas singulares (nos...

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