Pensar o direito, pensar a advocacia, neste nosso tempo

AutorJosé de Faria Costa
CargoProfessor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Anterior Presidente do Conselho Directivo da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Páginas7-15

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  1. Há textos que é bom que comecem por enunciar banalidades, muito embora se assumam como narrativas que não devem ficar devedoras, em nada, para com o lado mais comum e vulgar das coisas que se escrevem ou dizem, mesmo no mundo do direito. E devem fazê-lo porque, não raro, as chamadas banalidades encerram espessura e complexidade que a simples e comezinha análise dificilmente decifra. Por estranho que pareça as banalidades são, de ordinário, expressão de realidades extraordinárias e, neste sentido, dimensões matriciais muito mais importantes e essenciais do que à primeira vista poderiam parecer. Com este pano de fundo começamos por enunciar aquilo que é uma evidência, uma banalidade, para todos os que lidam com os aparatos e os constructa jurídicos: o mundo do direito está em um turbilhão de mudança. Poder-se-ia até dizer que a tão propalada crise da justiça, disseminada e intersticial neste nosso novo modo-de-ser colectivo que se assume como global, mais do que afirmação de uma crise, é antes o afloramento de uma ruptura, de um sismo civilizacional, que vai trazer qualquer coisa de diferente. Não sabemos se melhor ou pior mas, por certo, diferente.

    E se as considerações que se acabam de levar a cabo -sobretudo naquilo que se refere à chamada crise- valem, em primeira linha, quando reflectimos sobre o direito, enquanto disciplina, discursividade e território normativos, é também verdade insofismável que o turbilhão de que falávamos se estende ou penetra nas concretas instituições com que o direito se «faz» no quotidiano. Invade a real e efectiva organização judiciária, projecta-se com efeitos gigantescos no funcionamento dos tribunais e, por contaminação reversa ou cruzada, não deixa de se fazer sentir, e de que maneira, com verdadeiros sobressaltos, na própria advocacia. Parece nada ficar igual. Parece nada ser igual ou idêntico ao que era tão-só uma ou duas décadas atrás, tal a profundidade e a rapidez das mutações. Eis o horizonte crítico sobre o qual vamos trabalhar e reflectir. Está, por conseguinte, instalado um estado de inquietude e de perplexidade no território normativo onde o direito é e onde ele se transforma, transformando, também implicitamente, todo

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    o real social do qual é, desde sempre (assumindo-se, assim, sem rodeios, a dimensão onto-antropológica que defendemos para a fundamentação do direito), causa e efeito. Categorias do pensamento moderno (causa e efeito) que se empregam como desafio à complacência e timidez desta tardo-modernidade que as tão mal trata, fazendo delas como que centros de imputação de erros e de malfeitorias, o que está longe de corresponder minimamente à verdade. Bem ao contrário. Mas deixemos de remissa estes dados e as correspondentes considerações críticas e centremos a nossa atenção naquilo que é o nosso propósito primacial: pensar o direito mas pensá-lo ligado à nobre profissão da advocacia.

  2. Comecemos por enunciar um dado. Toda a reflexão jurídica -e falamos aqui sobretudo sobre a reflexão doutrinal do direito- centra a sua atenção nesse momento único e irrepetível que é a legítima decisão jurídica. Ora, independentemente das doutrinas com que se percebe ou fundamenta o direito, o certo é que a decorrência normal do ajuizar crítico de tanto e tanto que se escreveu e escreve reflectidamente sobre o direito vai no sentido de sempre quase tudo se fazer desaguar no território da decisão jurídica. Ou, se se quiser, no lugar onde agem e actuam os juízes: no território dos tribunais. Tentemos perscrutar, ainda que de forma perfunctória, a razão ou razões que sustentam a declinação -que é também inclinação- normativa que vai no sentido de que a decisão levada cabo por um juiz no seio de um Tribunal é o centro de tudo. E, de uma forma ou de outra, implícita ou explicitamente, consciente ou inconscientemente, para tantas e tantas doutrinas, é o alfa e o omega de todo o direito.

    Olhemos para trás. Mas não muito para trás porque desnecessário ou até inconveniente. Olhemos até à Ilustração. Sabe-se que é a partir desse momento que se operou uma verdadeira e real ruptura no modo de conceber e fazer funcionar o direito. Assim, para encurtarmos razões, pode dizer-se que é naquela época que se constrói o direito como uma narrativa sustentada, por sobre tudo, na positivação escrita (linguística) dos conteúdos normativos. O direito, de uma forma ou de outra, confunde-se com a mera positividade que se exprime na letra da lei. E se o juiz só deve ser «la bouche de la Loi», o certo é que só ao juiz e não a qualquer uma outra figura ou personagem social se atribui uma tão nobre função. Uma vez mais o conflito que ascendeu à normatividade jurídica -e há milhares e milhares de conflitos que felizmente jamais ascendem à normatividade jurídica, porquanto são solucionados em outras sedes- só pode ser resolvido definitivamente através da lei que unicamente pode ser «lida» por um juiz. E se assim é permita-se-nos perguntar: qual, então, o papel do advogado, qual o seu lugar ou o seu território?

  3. E -continuando, aliás, nesta maré de perguntas- qual a razão funda que subjaz a toda esta nova forma de compreensão das coisas?

    Todos sabemos que, conforme as diferentes épocas históricas, o direito, como dado onto-antropológico, encontra sempre -tem necessariamente de encontrar sempre- novas formas de legitimação. Sintetizemos: à legitimidade divina que o ancien régime dava às «coisas» do direito, passa-se para uma legitimidade sustentada na vontade popular. O poder político -e neste se aglomeram e a ele ficam submetidas todas as outras forma de poder- só é legítimo se e só se sustentado na chamada vontade popular. Por outras pa lavras: estava criada a nova noção de Estado moderno. É nesta nova geometria de valoração dos poderes dentro do Estado que se encontra a famosa tripartição dos poderes: poder legislativo, poder executivo e poder judicial. Tudo levado a cabo, com diferentes matizes, é evidente, mas no essencial ma nifestando-se como idêntico, debaixo do império da Lei (e não já debaixo do império do direito). E, como já vimos, quem é, em derradeira instância, o único intérprete da Lei? O Juiz. Daí que seja fácil perceber a articulação doutrinal enfeudada manifestamente a esse objectivo último: a decisão judicial levada a cabo por um juiz no território normativo de um tribunal. E as coisas parecem casar sem possibilidade de divórcio. Na verdade, o direito é a dimensão histórico-social que os homens e as mulheres, historicamente situados, encontraram para dirimir conflitos. Por certo. E o juiz -enquanto terceiro, terceira pessoa, que é um «outro» que se assume como irredutível «outro» que tem de dirimir os conflitos entre «mim» e o «outro»- é o derradeiro elo da cadeia na solução desses mesmos conflitos. Quando todos os outros modos de solucionar o conflito fracassam aparece-nos, então, o juiz como a entidade soberana na qual repousa a legitimidade para pacificar a ordem social. Se assim está construído o nosso modo-de-ser colectivo, fácil é de perceber que a doutrina se tinha necessariamente de afeiçoar a este modo de conceber as coisas do mundo e do direito.

    Este Império da Lei trouxe consequências. Por certo. E a não menor delas podemos vê-la em uma precisa hipertrofia da importância de tudo o que estava ligado ao mundo do direito e aos seus reflexos na vida quotidiana. Foi assim nos séculos XVIII

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    e XIX e ainda nos primórdios do século XX. E se olharmos as coisas de um jeito diacrónico entre o período do ancien régime e a modernidade, poder-se-á, então, dizer que, de uma certa maneira, a classe dominante da aristocracia de sangue fez-se substituir pela aristocracia da toga. O mundo e as suas diferentes construções ou refracções era visto no caleidoscópio, complexo e tantas vezes artificial, do direito. As coisas começaram a mudar e a mudar radicalmente com o fim da 1.ª Guerra Mundial (o qual, como se sabe, para muitos historiadores constitui o ponto de charneira ou de viragem do século: o século XIX acaba, pois em 1918).

    Ora, se o direito era um factor de agregação, porquanto potenciava, de forma harmónica, a vida colectiva e a vida individual de cada um dos membros da comunidade, é também verdade que, por mor do cruzar desses efeitos, a conflitualidade jurídica aumentava. E aumentava também porque os direitos subjectivos da pessoa humana se afirmavam tal como, muito depois, mas na mesma linha de raciocínio, se vieram a afirmar os direitos fundamentais do cidadão no Estado de Direito Democrático. E quem é que podia defender, em primeira linha, esse cidadão perante os ataques do Estado ou mesmo perante os ataques dos seus concidadãos? O Advogado. Aquele que, de uma forma límpida e imediata, assume o...

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