As origens do princípio de «habeas corpus» no pré-constitucionalismo português

AutorJosé Domingues
CargoFaculdade de Direito, Universidade Lusíada do Porto
Páginas329-352
Historia Constitucional, n.14, 2013. http://www.historiaconstitucional.com, págs. 329-352
AS ORIGENS DO PRINCÍPIO DE «HABEAS CORPUS»
NO PRÉ-CONSTITUCIONALISMO PORTUGUÊS
ORIGINS OF PRINCIPLE OF «HABEAS CORPUS» IN
THE PORTUGUESE PRE-CONSTITUTIONALISM
José Domingues
Faculdade de Direito – Universidade Lusíada do Porto
SUMARIO: I. INTRODUÇÃO.- II. A SEGURANÇA MEDIEVAL.- III. ORIGENS
ADAS CARTAS DE SEGURO.- IV. JUSTIÇA MAIOR DE EL-REI.- V.
INOCÊNCIA VERSUS ABUSO E IMPUNIDADE.- VI. CONCLUSÃO.
Resumo: O propósito deste trabalho é trazer à liça um mecanismo de defesa
que tem sido pouco estudado e revela um vetusto arraigado no Direito
medieval português, contra a arbitrariedade e ilegalidade da prisão preventiva
durante o curso do processo judicial. São as chamadas cartas de seguro –que
bem podem apelidar-se como o habeas corpus português– que estiveram em
vigor no território de Portugal desde a segunda metade do século XIII, pelo
menos, até ao ano de 1830.
Abstract: This work aims to bring to the fore a defense mechanism that has
been little studied and reveals an age-old rooted in the medieval Portuguese
law against the arbitrariness and illegality of the preventive detention during the
course of the judicial process. They are called insurance cards – -which may
call themselves as Portuguese habeas corpus - that were in force in the
territory of Portugal since the second half of the thirteenth century, at least until
the year 1830.
Palavras chave: habeas corpus, liberdade, cartas de seguro.
Key Words: habeas corpus, freedom, insurance letters.
«Per securitatis literas nos hic intelligimus judicis
competentis decretum, quo reo ad capturam pronuntiato
conceditur, ut impune possit ad judicium venire, et solutus
ab objecto crimine sub certis clausulis liberari».
«Entendemos aqui por carta de seguro, o decreto em que o
juiz competente concede, ao réu pronunciado para captura,
a faculdade de comparecer impunemente em juízo, e, sob
certas cláusulas, regressar solto do crime de que é
acusado».
1794 – Pasqual José de Melo Freire, Institutionum
Juris Criminalis Lusitani.
330
I. INTRODUÇÃO
Passou a ser comummente aceite e assiduamente referenciado que a
chegada do instituto do habeas corpus a Portugal se deve à Constituição
Republicana de 1911 –Título II (“Dos direitos e garantias individuaes”), artigo
31º1–, por influência directa da sua congénere brasileira, a Constituição da
República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de Fevereiro de 1891 –
(“Declaração de Direitos”) artigo 72º, § 222–. Importa referenciar que o Brasil foi
o primeiro país da América Latina a garantir no seu ordenamento jurídico o
direito de habeas corpus: inicialmente no Código Penal de 1830 (como
pretensão), depois no Código de Processo Penal de 1832, acabando por o
constitucionalizar no referido texto fundamental de 1891 e mantendo-o em
todas as constituições posteriores.
Se seguirmos a linhagem sugerida pelo testemunho dos textos
constitucionais lusos e brasileiros, invariavelmente, seremos impulsionados
para a origem e desenvolvimento do habeas corpus no seio do sistema da
Common Law. Fazendo um raciocínio retrospectivo, quer dizer que este direito
chegaria a Portugal por influência do constitucionalismo brasileiro, que, por sua
vez, terá sido inculcado pelos textos legislativos ingleses3. No âmbito jurídico
anglo-saxónico, ao adulado habeas corpus “great writ of English Liberty” ou
“the common law’s most importante judicial instrument”4sobeja a autoritas dos
trabalhos jurishistoriográficos, fortemente enfatizados, na última década, pelos
ataques terroristas do 11 de Setembro de 2001 e as, consequentes, prisões de
pessoas nas bases militares de Guantanamo (Cuba) e Bagram (Afeganistão)5.
1“Dar-se-ha o habeas corpus sempre que o individuo soffrer ou se encontrar em imminente
perigo de soffrer violencia, ou coacção, por illegalidade, ou abuso do poder. A garantia do
habeas corpus só se suspende nos casos de estado de sitio por sedição, conspiração,
rebelião, ou invasão estrangeira. Uma lei especial regulará a extensão d’esta garantia e o seu
processo”.
2“Dar-se-á o habeas corpus , sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo
de sofrer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder”. Texto em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm (consultado no dia
10 de Junho de 2012). Repare-se que o primeiro parágrafo da lei constitucional portuguesa é
um traslado, ipsis verbis, do respectivo parágrafo da Constituição brasileira.
3É natural que, pela proximidade geográfica, tenha existido uma influência norte-americana.
Foi este país que, pela primeira vez, constitucionalizou a garantia do habeas corpus (1789).
Mas como na sua Constituição, em vez de uma garantia expressa e afirmativa de habeas
corpus, se optou por uma cláusula de proibição da suspensão, a normativa brasileira acaba por
se radicar no Direito inglês.
4Paul D. Halliday, Habeas Corpus: From England to Empire, Harvard University Press,
Cambridge, 2010, p. 336 nota 3 e p. 29, respectivamente. Sendo a primeira designativa usada
desde 1729.
5Consultar, v. g., Brian R. Farrell, “Habeas Corpus in Times of Emergency: A Historical and
Comparative View”, Pace International Law Review Online Companion, 2010, pp. 75-76; Brian
R. Farrell, “Access to Habeas Corpus: A Human Rights Analysis of U.S. Practices in the War”,
Transnational Law & Contemporary Problems, vol. 20, Spring 2011, pp. 4-31.

Para continuar leyendo

Solicita tu prueba

VLEX utiliza cookies de inicio de sesión para aportarte una mejor experiencia de navegación. Si haces click en 'Aceptar' o continúas navegando por esta web consideramos que aceptas nuestra política de cookies. ACEPTAR