Obra radiodifundida e comunicação pública

AutorMaria Vitória Rocha
Páginas393-404

Page 394

I A questão fixada no acórdão uniformizador de jurisprudência do supremo tribunal de justiça nº. 15/2013 1

O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (doravante designado por STJ) fixou a seguinte jurisprudência: «A aplicação, a um televisor, de aparelhos de ampliação de som, difundido por canal de televisão, em estabelecimento comercial, não configura nova utilização da obra transmitida, pelo que o seu uso não carece da autorização do autor da mesma, não integrando o crime de usurpação previsto nos artigos 149.º, 195.º, e 197.º CDADC».

A fixação de jurisprudência pelo STJ, embora não crie um precedente judiciário, contribui fortemente para uma certa orientação da jurisprudência nacional.

É tirado um Acórdão Uniformizador, em Processo Penal, quando há Acórdãos contraditórios, ou seja, quando um tribunal superior (da Relação ou STJ), num caso idêntico e com a mesma legislação, decida de forma diversa. Da decisão contrária a um Acórdão Uniformizador cabe recurso directo até ao STJ. Ou seja, o STJ pode ser sempre chamado de novo a pronunciar-se sobre a questão, mantendo a jurisprudência fixada ou modificando-a. No entanto, este recurso extraordinário só é obrigatório no caso dos Tribunais da Relação, quando não caiba recurso ordinário para o STJ e o Acórdão da Relação esteja em contradição com jurisprudência fixada pelo STJ. Existe um dever que impende sobre o Ministério Público, mesmo quando não seja parte na causa, de interpor o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, sendo de impulso obrigatório. Pode ser também interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis. O recurso extraordinário de fixação de jurisprudência pressupõe o trânsito em julgado do

Acórdão contraditório (cfr. Artigos 437.º a 448.º do Código de Processo Penal).

No caso em análise, existiam Acórdãos opostos perante a mesma legislação e situações de facto idênticas. Impunha-se fixação de jurisprudência para efeitos criminais. O que não nos parece é que tenha sido a melhor, antes pelo contrário.

Page 395

Os Acórdãos em oposição eram os seguintes:

- O Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 7-01-2013 (Acórdão recorrido) considerou que, havendo radiodifusão de obras via televisão num bar, não havia crime de usurpação, com o fundamento de que à recepção do sinal não se seguia uma transmissão potenciadora de uma nova utilização ou aproveitamento organizado da transmissão original da obra musical, nada retirando ou acrescentando à obra em si. Concretizando, entendeu o referido Acórdão que as colunas que foram acopladas ao aparelho de televisão serviram apenas para ampliar e melhorar o som, tornando-o uniforme no espaço para todos os clientes. A situação foi considerada de simples recepção, em lugar público, de emissão de radiodifusão, não dependendo de autorização dos autores das obras, nem lhes atribuindo o direito à remuneração previsto no artigo 155.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (doravante designado por CDADC).

O Tribunal entendeu não estarem verificados os elementos típicos do crime de usurpação.

- O Acórdão do mesmo Tribunal da Relação de Guimarães, de 2-07-2007

(Acórdão fundamento), numa situação idêntica, considerou que estava verificado o crime de usurpação, porque o arguido não se limitara a receber o sinal, mas havia modelado, encaminhado e direccionado o mesmo, dividindo-o por 4 colunas de som ligadas ao televisor, transformando-se em emissor sem autorização, cometendo, desta forma, o crime de usurpação.

A questão em discussão é a de saber se num estabelecimento público (no caso, bar) a ligação a um aparelho de televisão de colunas de som, com a finalidade de amplificar o som por todo o estabelecimento, depende de autorização do autor e de pagamento da respectiva remuneração. Caso a resposta seja afirmativa, o responsável incorre no crime de usurpação, previsto no artigo 195.º CDADC, uma vez que não existe autorização do titular de direitos de autor, nem de qualquer entidade de gestão que o represente. Sendo a resposta negativa, estará afastada a necessidade de autorização e pagamento e, por consequência, o crime em causa.

II Noções gerais sobre radiodifusão, obra radiodifundida e comunicação pública no direito português: querelas doutrinais e divergências na jurisprudência

A este respeito, existem duas posições em Portugal, com algumas cambiantes, desde 1992, muito bem sintetizadas na Recomendação do Provedor de Justiça n.º 4/B/2002, sobre direitos de autor e recepção, em estabelecimentos abertos ao público, de emissões de rádio ou de televisão, que seguiremos de perto 2.

Page 396

  1. Mera recepção?

    A primeira doutrina surgiu no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (PGR) n.º 4/92, de 28 de Maio de 1992 (publicado em 16-03-1993), e é sustentada por um sector minoritário da doutrina nacional (em que se incluem Oliveira Ascensão 3 e Sá e Mello) 4.

    Assenta no princípio da liberdade de recepção das emissões, ou seja, na consideração de que a livre recepção é um princípio universal, pelo que a mera recepção de transmissões radiofónicas ou televisivas, mesmo que em lugar público ou aberto ao público, sem uma acção autónoma visando a transmissão ao público das emissões radiodifundidas, não constitui comunicação pública das obras radiodifundidas, para efeitos de preenchimento da previsão dos tipos legais de crime mencionados.

    Para haver um acto de transmissão distinto da mera recepção, é necessário que exista uma acção especificamente vocacionada para esse objectivo, traduzida, nomeadamente, no emprego de dispositivos técnicos suplementares aos dos aparelhos de recepção. O artigo 149.º, n.º 2 CDADC, deve ser conjugado com o artigo 155.º (que atribui ao autor o direito a uma remuneração pela comunicação pública da obra através de altifalante ou instrumento análogo transmissor) e com o artigo 151.º (sobre instalação dos instrumentos necessários para a trans

    Page 397

    missão no lugar onde deva realizar-se a radiodifusão ou comunicação prevista no artigo 149.º) 5.

    A recepção pública da obra apenas constituirá um acto de comunicação quando pressuponha nova utilização ou aproveitamento organizados, através de processos técnicos diferentes dos que integram o próprio aparelho receptor, como, a título exemplificativo, altifalantes ou instrumentos análogos, transmissores de sinais, sons ou imagens.

    Esta doutrina tem como corolário a oposição à aplicação directa do art. 11 bis n.º 1, 3.º da Convenção de Berna, alegando tratar-se de uma mera imposição de legislar, que confere aos Estados-Membros larga discricionariedade na transposição para os seus ordenamentos jurídicos.

  2. Novo acto de comunicação pública?

    A segunda posição baseia-se numa interpretação literal do disposto nos artigos 68.º, n.º2, alínea e), 149.º, n.ºs 2 e 3 CDADC, e do artigo 11 bis n.º 1, 3.º da Convenção de Berna. A remuneração da obra fica fora da discricionariedade concedida aos Estados e prevalece a Convenção sobre o Direito interno ordinário desconforme, nos termos do disposto no artigo 11 bis, 1, 3.º da Convenção de Berna e do artigo 8.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa (CRP).

    Para além da interpretação literal das normas em causa (nomeadamente, da definição constante do artigo 149.º, n.º2 CDADC, bem como da sua articulação com o artigo. 108.º, n.º2, do mesmo), esta posição assenta na ausência de distinção entre comunicação ao público e recepção, sempre que esta tenha lugar de modo a ser acessível ao público. Não existe mera recepção.

    É considerada artificial a distinção entre meios de transmissão (de sons, imagens ou sinais) próprios do aparelho receptor e os que lhe são alheios ou adicionais. O aspecto central é a distinção entre recepção em lugar privado (em ambiente familiar ou semelhante), onde a comunicação operada pelo aparelho tem sempre por destino um círculo restrito, e recepção em lugar público ou aberto ao público, onde a comunicação terá uma utilização alargada e servirá de incentivo à frequência de clientes. Esta segunda posição, a favor da exigência de autorização e remuneração, nos casos de comunicação em lugar público ou aberto ao público, é dominante na doutrina nacional. Neste sentido,

    Rebello fez vários estudos sobre o tema e foi coordenador do livro referido em nota, Comunicação pública de emissões de rádio e televisão, onde se incluem, além de uma introdução pelo autor mencionado, o Parecer n.º 4/92 e o anterior

    Parecer contrário n.º 35/69, de 8 de Agosto de 1969, da própria Procuradoria-Geral da República, três pareceres contrários ao Parecer n.º 4/92, de Palma Carlos, de Ferrer Correia e Almeno de Sá, e de Maria Pereira, a reacção internacional adversa gerada, traduzida numa carta da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), numa Resolução e num Parecer da CISAC e numa carta do Groupement Européen des Sociétés d’Auteurs et Compositeurs (GESAC), bem como uma dezena de decisões jurisprudenciais desfavoráveis ao Parecer n.º 4/92. Também Dietz fez um notável Parecer sobre esta ques-

    Page 398

    tão, que considera «artificial e insustentável» 6. A própria doutrina do Parecer n.º 4/92 foi desautorizada pela Informação acima mencionada, emanada do, então, Gabinete do Direito de Autor, de 6 de Dezembro de 1999. Hoje em dia, acrescentamos aos...

Para continuar leyendo

Solicita tu prueba

VLEX utiliza cookies de inicio de sesión para aportarte una mejor experiencia de navegación. Si haces click en 'Aceptar' o continúas navegando por esta web consideramos que aceptas nuestra política de cookies. ACEPTAR