Os novos desafios do sector eléctrico no contexto da sustentabilidade

AutorSuzana Tavares da Silva
Cargo del AutorProfessora Auxiliar da Faculdade de Direito de Coimbra / Instituto Jurídico
Páginas25-49

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0. Introduçao

O objectivo fundamental deste texto é dar a conhecer a regulação do sector eléctrico em Portugal (quer o regime geral, quer o subsector das energias renováveis), a sua evolução histórica até ao regime jurídico actual e, fundamentalmente, apresentar alguns aspectos mais controversos que têm sido discutidos pela doutrina e analisados na jurisprudência e na arbitragem internacional do investimento.

I Aspectos gerais e evolução histórica do sector em portugal

A evolução do quadro legal referente à organização político-económica do sector eléctrico em Portugal acompanha as tendências globais das experiências europeias, apenas com a diferença de que no contexto da ‘publicização’ do sector o papel das autarquias locais foi substancialmente reduzido em relação aos de outras experiências (Alemanha e Itália)1. Característica que ainda se mantém, mesmo no contexto do desenvolvimento do subsector das energias renováveis.

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1. A evolução legislativa do sector eléctrico em geral

As primeiras normas relativas à indústria eléctrica em Portugal constam da Lei da Organização dos Correios, Telégrafos, Telefones e Fiscalização das Indústrias Eléctricas, de 24 de Maio de 1911, diploma que surge como o primeiro documento normativo oficial sobre a produção e fornecimento de energia eléctrica no nosso país. Este processo desenvolveu-se, essencialmente, a partir de produção para fins industriais, quase todo de base hidroeléctrica2.

Mais tarde, a Lei de Electrificação do País3veio aprovar as bases em que passaria a assentar o sector eléctrico nacional, nas quais se previa já uma intervenção activa por parte do Estado na respectiva organização. Em primeiro lugar, manteve-se o sistema de concessões, atribuindo-lhes o carácter de utilidade pública, e reservaram-se para o Estado os poderes de promover e auxiliar a instalação de centrais produtoras, através da concessão de créditos, bem como da isenção de direitos de importação sobre máquinas, utensílios e outros materiais necessários que não pudessem ser obtidos na indústria nacional. O Estado abandonaria assim o papel que assumira até esse momento como mero garantidor da segurança das unidades de produção instaladas e regulador-mínimo, através da outorga de concessões e do reconhecimento de utilidade pública às instalações existentes. Estávamos na fase de intervenção pública na económica, típica do período pós-guerra.

Em 1960, o Decreto-Lei n.º 43335, de 19 de Novembro, introduziu algumas modificações no regime jurídico da Lei de Electrificação, que visavam, em grande medida, explicitar os princípios e regras fundamentais relativos à produção e transporte de electricidade. Com esta alteração é também notória a perda de protagonismo da Administração Local, sobretudo em matéria de produção de electricidade, como consequência de a electrificação do país ser assumida pelo Estado como política central.

Com a nacionalização, em 1975, das empresas produtoras de energia eléctrica4, são transferidos para o Estado todos os serviços e instalações existentes em território nacional, o que determina o fim do modelo de concessões de serviço público, passando a vigorar entre nós um monopólio entregue à exploração de uma empresa pública5, em regime de exclusivo, como viria a ser confirmado pela Lei n.º 46/77, de 8 de Julho.

Nesta fase assiste-se também a um diferendo entre o Estado e os municípios no que respeita à organização da distribuição de energia eléctrica em baixa tensão, incluindo o fornecimento aos consumidores finais. Com efeito, era necessário

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compatibilizar o regime jurídico de monopólio público da empresa pública com os direitos das autarquias locais, as quais tinham a seu cargo há vários anos a actividade de distribuição em baixa tensão, investindo na construção das respectivas redes. Um diferendo que culminou com a instituição de uma solução de compromisso, baseada na concessão legal à EDP pelos municípios da actividade de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão, de acordo com um regime jurídico definido pelo legislador nacional, regulado por o contrato-tipo6.

No que respeita à exploração do serviço eléctrico nas Regiões Autónomas, o Decreto-Lei n.º 315/80, de 20 de Agosto, haveria de transferir para aquelas entidades a propriedade e a tutela das empresas públicas nacionalizadas que nelas tivessem sede e nelas exercem a sua actividade principal. Uma transferência que está na origem da criação da Empresa de Electricidade dos Açores (EDA)7, à qual seria entregue a exploração do sistema eléctrico naquele arquipélago, e da transformação da EEM, E.P. em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos subscritos pela Região (a EEM - Empresa de Electricidade da Madeira, S. A.)8, responsável pela exploração do sistema eléctrico da Região Autónoma da Madeira.

A organização do sector viria a sofrer novas transformações já na década de 90, quando teve início o denominado processo de privatização e liberalização do sector. Embora a primeira iniciativa legislativa nesse sentido remonte a 1991, com a aprovação do Decreto-Lei n.º 99/91, de 2 de Março, a mesma nunca chegou a ser efectivamente aplicada, pelo que o marco histórico fundamental deve ser apenas o designado "pacote legislativo" de 19959.

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Em termos económicos, esta passagem de sectores públicos tradicionais (monopólios naturais) para o mercado implicou não só o levantamento das barreiras jurídicas à iniciativa privada, mas também uma actividade reguladora complementar, a quem se exigia não apenas a garantia do bom funcionamento do mercado, mas antes e previamente o próprio desmantelamento efectivo dos monopólios naturais, no contexto de uma actividade que a doutrina italiana designava como regulação pró-concorrencial10.

Neste contexto, podemos dizer que a primeira batalha se travou no próprio campo do direito económico, através da demonstração de que uma indústria de rede, como é o caso da electricidade e do gás natural, assente num sistema com diversos operadores, conseguiria ser mais eficiente do que um regime de operador único. No caso do sector eléctrico, a argumentação favorável à instituição dos mercados fundou-se nos exemplos dos pools americanos (comércio organizado de trocas eléctricas entre empresas de Estados diferentes) e nos esquemas informais de cooperação na troca de excedentes energéticos que eram geridos pela NORDEL, uma associação dos operadores das redes dos países nórdicos (Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega e Suécia).

No essencial, cumpre não esquecer também que a opção pela liberalização nestes sectores foi ditada pelo Banco Mundial, que para o efeito se apoiou na teoria do mercado contestável de Baumol e nos contributos da "escola de Chicago", e que no plano europeu essa posição económica de princípio foi reforçada por um argumento político: a estratégia europeia para garantir a sustentabilidade energética (garantia no abastecimento e redução de emissões) e diminuir a dependência externa nesta matéria, o que pressupunha uma melhoria nas trocas transfronteiriças de produtos energéticos.

É nesta fase que vem a ser publicado, no plano europeu, o denominado primeiro pacote de liberalização dos sectores energético, no qual se inclui a Directiva 96/92/ CE, de 19 de Dezembro. As preocupações fundamentais neste momento eram as de garantir a separação (unbundling) contabilística e jurídica das actividades -o que obrigou à fragmentação dos monopólios tradicionais, assentes em empresas verticalmente integradas, sem prejuízo de um grupo de empresas poder continuar a actuar em todas actividades-, o acesso de terceiros à rede e a criação de um sistema de autorizações para novas instalações de produção.

Portugal, que contava apenas com a EDP como operador no sector eléctrico, tomou a dianteira e optou por separar daquela empresa a propriedade da rede de

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transporte de electricidade, concessionando-a a uma empresa juridicamente distinta da EDP, constituída ex novo para o efeito (a Rede Eléctrina Nacional - REN11),

instituindo assim uma separação patrimonial (um modelo de ownership unbundling) entre as actividades de gestão da rede e as restantes actividades do sector. Uma solução organizatória e funcional capaz de conferir maior garantia em matéria de acesso à rede, sobretudo depois da limitação da participação social das empresas eléctricas no capital social da REN12.

As directrizes europeias do "primeiro pacote", acima enunciadas, obrigaram a uma revisão dos diplomas que faziam parte do pacote legislativo de 199513, de forma a adaptar a legislação nacional ao conteúdo da Directiva 96/92/CE. O sector eléctrico nacional passou então a assentar num regime de coexistência de produtores independentes e produtores vinculados que concorriam entre si, fazendo escoar a respectiva produção através de uma rede de transporte única, pertença de uma empresa diferente das empresas que integravam o grupo que controlava as actividades de produção vinculada, distribuição vinculada e comercialização à tarifa. É também nesta fase que começa a ser definido um universo de clientes elegíveis, ou seja, clientes que poderiam adquirir energia livremente no mercado ou directamente aos produtores independentes, sem intervenção dos distribuidores (caso o fornecimento tivesse lugar em AT) e/ou dos comercializadores.

Neste momento, é criada em Portugal uma autoridade reguladora para o sector. A Entidade Reguladora do Sector...

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