Da constituição do estado novo Português (1933)

AutorPaulo Ferreira da Cunha
CargoCatedrático de Derecho
Páginas188-207

Da constituição do estado novo Português (1933)1

    Paulo Ferreira Da Cunha Catedrático de Derecho y Director del Instituto Jurídico Interdisciplinar de la Facultad de Derecho de la Universidad de Oporto, y Profesor Invitado en la Escuela Superior de Derecho Constitucional de São Paulo. Preside la Sección de Derecho de la Academia Skepsis, y es correspondiente de la Academia Europea de Teoria del Derecho (Bruxelas). Doctor en Derecho Público por la Facultad de Derecho de la Universidad de Coimbra y en Historia y Filosofia del Derecho por la Universidad de Paris II, y Agregado en Ciencias Jurídicas Públicas. Entre sus más de cincuenta libros destacan: Para uma História Constitucional do Direito Português, Coimbra, 1995 (agotado); Constituição, Direito e Utopia, Coimbra, 1996; Teoria da Constituição, 2 vols., Lisboa / São Paulo, 2000-2002; y, Novo Direito Constitucional Europeu, Coimbra, 2005.


Page 188

"Não discutimos Deus e a Virtude. Não discutimos a Pátria e a sua História. Não discutimos a Autoridade e o seu Prestígio. Não discutimos a Família e a sua Moral. Não discutimos a Glória do Trabalho e o seu Dever."

António de Oliveira Salazar

I Construção da Utopia do Estado Novo
1. Olhares dos tempos

1 É ainda bem conhecida a impressionante tirada de Salazar que citámos em epígrafe.

2 O tempo em que vigorou a Constituição de 1933, foi, apesar em parte dela própria2, um tempo em que nada do que era importante se discutia no sufocado "espaço público" de então, imperando um deficit de cultura da discussão3. A hierarquia, melhor, a hierarquização, dominava. No tempo de hoje, pelo contrário, tudo parece estar em discussão, e a confusão hierárquica é profunda - apesar dos tabus do politicamente correcto e de algum retorno do snobismo, do autoritarismo pontual dos poderes fácticos (não legitimados) começarem a ser entrevistos4. ComoPage 189 pode um tempo em que tudo se discute - e tão mal, desde logo na comunicação social sensacionalista - julgar um outro tempo silencioso e de discurso unívoco? Essa a primeira grande dificuldade. E contudo pode e deve fazê-lo.

3 E apesar de todo o silêncio (desde logo o da censura) cremos que esses tempos falam eloquentemente pela pena do silencioso legislador que se apresenta como pretendendo, antes de tudo o mais, "arrumar a casa" do Estado5. Professor da Faculdade de Direito de Coimbra, da área da Economia (que engloba as Finanças), Salazar não podia deixar de o fazer. Não é etimologicamente isso que "os economistas fazem": oikos, nomos?

2. Preparando o terreno

4 O ano imediatamente anterior ao da promulgação da Constituição do

Estado Novo foi um ano de intensa e decisiva actividade administrativa e legislativa. O clima normativo e jurídico / policial que então se respirava prepara a institucionalização plena do regime. Se tomarmos o paradigma "história constitucional" e não apenas "história do direito constitucional", e se o levarmos até às suas últimas consequências, poderemos certamente concluir que a ordem constitucional, nas suas traves mestras, no seu sentido, em boa medida já se encontrava definida antes da aprovação da Constituição. Obviamente, haveria depois projecto, haveria debate (embora limitado e vigiado apertadamente pela censura), haveria divergências dentro do bloco no poder6, mas o clima estava criado. Um clima de autoritarismo anti-liberal e anti-democrático, de intervencionismo estadual, e - passem os anacronismos - de um certo retorno, colorido de piedade, ao despotismo iluminado.

5 Não resistimos a recordar esse ano de 1932, em que se "arruma a casa" antes de se arriscar (apesar de todo o controlo) uma consultaPage 190 plebiscitária. Aí encontraremos vastos materiais para aquilatar da Constituição real.

6 Uma das primeiras preocupações do poder instituído em vias de encenar uma legitimação pelo procedimento7 muito pouco convinvente, será limpar o terreno dos adversários e inimigos políticos. Sairão ao longo do ano vários diplomas nesse sentido. Já o Decreto 19. 143 tinha levado à organização de processos relativos a "atentados contra a segurança pública". Em 5 de Fevereiro, o Decreto 20. 861 determina que o julgamento de tais processos incumba ao foro militar, especificamente o tribunal militar da área do cometimento do "crime".

7 No mesmo sentido de impedir críticos, várias providências são tomadas para a instituição da "lei da rolha", cerceando ou abolindo a liberdade de expressão. O Decreto 20. 889, que vem da área educativa, determina a interdição, aos estabelecimentos dependentes do respectivo ministério, da inserção de artigos ou outras peças escritas que se debrucem sobre a actuação dos respectivos superiores hierárquicos, nas publicações que possuam carácter oficial, ou que aufiram de subsídios do Estado. Curiosamente, esta determinação não ficará sem posteridade, mesmo depois da revolução de Abril...

8 Veremos que no fim do ano fica pronta uma bateria de medidas penais contra os adversários do regime com justificações que valerá a pena comentar.

9 Em contrapartida, tomam-se entretanto medidas de fomento, de organização, de saneamento financeiro, de promoção da educação - embora sempre com um cunho ideológico bem marcado.

10 O Decreto 21. 896, por exemplo, regulamenta o serviço nocturno no ensino primário elementar oficial, e faz questão de proclamar os seus intuitos:

"Com vista a uma acção mais intensa em prol da diminuição do número de analfabetos (...)"

11 No mesmo sentido vai o Decreto 21. 725, de 12 de Outubro, dirigido à Biblioteca Nacional, o qual, muito demofilicamente, mas certamente com traços utópicos na sua justificação, " (...) considerando que se impõe conservar nessa Biblioteca a tradição de leitura nocturna, porque uma grande parte da sua clientela é constituída por estudantes, empregados públicos e comerciais e operários (...)", autoriza o serviço de leitura nocturna.

Page 191

12 Durante este período assistimos à publicação no Diário do Governo de múltiplos estatutos e normativos de regulamentação de escolas e faculdades, à criação e reforma de muitos lugares, mas também de várias instituições de educação e cultura. Cite-se, pela sua relevância, o Estatuto do Ensino Secundário, aprovado pelo Decreto 20. 741, e a criação da Academia Nacional das Belas Artes, pelo Decreto 20.977, de 5 de Março.

13 Há ainda muitas nomeações sanitárias, e de outras infraestruturas sociais, como os estruturantes Estatutos da Companhia de Caminhos de Ferro, pelo Decreto 20. 612.

14 Já o Decreto 21.923 - entre tantos outros - é de índole financeira mas não sem que nos alerte para a realidade da repressão política, reforçando a verba para pagamento de despesas de anos económicos findos, a fim de serem satisfeitas a diversas colónias as despesas entretanto havidas com os deportados políticos.

15 A política do "orgulhosamente sós" estava já em germe, e todavia muitas páginas do boletim oficial são preenchidas, mesmo em francês e inglês, com a transcrição de vários instrumentos internacionais, ou simplesmente com a notícia das ratificações ou adesões a acordos por parte dos mais diferentes países.

16 À doutrinação ideológica é dada uma particular atenção. Uma das formas de que se reveste é a obrigatoriedade, para os manuais escolares, da inclusão de citações que são verdadeiros tópicos de propaganda. Durante este ano, será uma matéria retomada múltiplas vezes.

17 Em 21 de Março, o Decreto 21 014 estipula uma primeira lista de frases.

Em 13 de Abril, a portaria 7. 323 do Ministério da Instrução Pública, alarga esse rol, o que de novo ocorrerá por nova Portaria, de número 7. 363, a 11 de Junho. No fim do ano, estabelece-se uma variante desta determinação. Estando já as frases redentoras nos livros, passam agora a inundar as paredes. Pelo Decreto 22. 040, de 28 de Dezembro, determina-se como obrigatória a afixação em salas de aula, corredores e pátios de pensamentos ou dísticos do mesmo teor dos que deveriam, desde Março, figurar nos manuais. E esta imposição é taxativa, para todos os estabelecimentos de ensino (salvo, ao que parece, a silentio, as universidades: valha-nos isso!), mesmo de ensino particular, técnico e artístico, e ainda para todas as bibliotecas públicas. Não admira que, com tamanho controlo do pensamento, a Portaria 7.338 se imiscua no trabalho da Academia das Ciências, determinando normas para a publicação do seu Dicionário Bio-Bibliográfico.

18 Vale a pena determonos uns minutos sobre essas frases. Concentremonos nas do Decreto.

Page 192

19 Os textos citados para as escolas primárias, liceus, bibliotecas, estabelecimentos de ensino artístico e de ensino particular são da autoria de António Enes (acreditar nas colónias), Alfredo Pimenta (chefes), Herculano (serviço), Bossuet (vontade e governo), Salazar (optimismo em Portugal), Sidónio Pais (ordem pelo cumprimento da lei), Gustavo Kass (exaltação do operário), Malapert (idealização da Mulher).

20 Para as escolas técnicas profissionais e médias os pensamentos são de Rodin (paciência), de novo Enes sobre as colónias, Mussolini (liberdade), de novo Bossuet mas apenas sobre o governo, a mesma citação de Salazar optimista, António Sardinha sobre o tradicionalismo, o mesmo pensamento de Malapert, a mesma citação de Sidónio, um mais longo trecho sobre artistas e artífices, de Charles Bernard (e outro, incisivo, de Anatole France, e mais um trecho ainda elogiando o operário português, de Nobre Guedes), diferente frase de Kass enaltecendo também o trabalho manual, contra os preconceitos, a mesma sentença de Alfredo Pimenta sobre os chefes, uma frase sobre desenho, forma, língua e pensamento, de Alois Ridler, e finalmente Salazar, com...

Para continuar leyendo

Solicita tu prueba

VLEX utiliza cookies de inicio de sesión para aportarte una mejor experiencia de navegación. Si haces click en 'Aceptar' o continúas navegando por esta web consideramos que aceptas nuestra política de cookies. ACEPTAR