A aplicação do direito da concorrência da União Europeia pelos tribunais comuns em Portugal (Ac. Relação do Porto de 12.04.2010)

AutorJoaquim Caimoto Duarte - Tania Luisa Faria
CargoDepartamento de Direito Comercial da Uría Menéndez (Lisboa).
Páginas49-54

Page 49

1. Introdução

A promoção da concorrência entre as empresas, do funcionamento eficiente dos mercado, a oposição a formas de organização monopolista e abusos de posição dominante são incumbências do Estado, merecendo, inclusivamente, consagração constitucional no Artigo 81.º, alínea f), da Constituição da República Portuguesa («CRP»). O desenvolvimento que o direito da concorrência tem registado em Portugal nos últimos anos, em particular após a criação da Autoridade da Concorrência («AdC») e da entrada em vigor da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho («Lei da Concorrência»), parece consubstanciar um esforço no sentido de concretizar o desígnio constitucional. Todavia, enquanto a actividade da AdC tem ganho relevância pública, os tribunais portugueses (com excepção do Tribunal de Comércio de Lisboa, a que nos voltaremos a referir infra) não parecem assumir protagonismo semelhante em matéria de direito da concorrência, razão pela qual entendemos justificar-se uma breve reflexão a este propósito.

Acresce que, desde a adesão de Portugal à União Europeia (anteriormente «Comunidade Económica Europeia», depois «Comunidade Europeia»), mercê da vigência do Regulamento (CEE) n.º 17/621 -entretanto substituído pelo Regulamento (CE) n.º 1/20032, que abordaremos mais detidamente, infra-, os tribunais portugueses passaram a poder aplicar os Artigos 81.º e 82.º do Tratado CE, actual-mente os Artigos 101.º e 102.º do Tratado sobre Funcionamento da União Europeia («TFUE»), que proíbem, respectivamente, e de forma muito sucinta, os acordos e práticas concertadas restritivas da concorrência e os abusos de posição dominante com impacto no espaço da União Europeia.

A susceptibilidade do impacto da conduta no comércio intra-comunitário constitui, precisamente, o critério para determinar a aplicação das normas de concorrência da União Europeia em prejuízo das normas nacionais, que, na grande maioria dos casos, têm uma redacção paralela (no caso português, as normas internas correspondentes constam dos Artigos 4.º, 5.º e 6.º da actual Lei da Concorrência). Assim, existem dois conjuntos de normas susceptíveis de serem aplicados a questões de concorrência pelos tribunais portugueses, sendo que a nossa análise se centralizará no direito da concorrência da União Europeia.

Cumpre ainda, nesta nota introdutória, distinguir entre o tribunal de competência especializada em questões de direito da concorrência em Portugal, tipicamente o Tribunal de Comércio de Lisboa3, e os

Page 50

demais tribunais civis que, por facilidade, designaremos neste texto como «tribunais comuns», nos quais se centrará a nossa análise. Com efeito, o Tribunal de Comércio de Lisboa poderá ser chamado a aplicar direito da concorrência da União Europeia (para além do direito nacional) na apreciação de recursos de decisões da Autoridade da Concorrência («AdC»), cabendo aos tribunais comuns apreciar todos os outros casos envolvendo os Artigos 101.º e 102.º do TFUE em disputas entre particulares (v.g., validade dos contratos e acções de responsabilidade civil por violação de normas do direito da concorrência).

O mote para esta análise será o recente Acórdão do Tribunal da Relação do Porto («TRP»), de 12 de Abril de 2010, que, em nosso entender, constitui um exemplo elucidativo, e, em particular, actual, de algumas dificuldades associadas à aplicação do direito da concorrência da União Europeia pelos tribunais comuns portugueses, dificuldades estas que explicam em grande medida o reduzido número de decisões neste contexto e a falta de desenvolvimento das mesmas.

2. A aplicação do direito da concorrência pelos tribunais portugueses

Em virtude das significativas implicações destas matérias na integração económica europeia, o direito da concorrência da União Europeia constituiu, tradicionalmente, uma excepção ao princípio da subsidiariedade. Competia primacialmente à Comissão Europeia («Comissão») a execução da política de concorrência, apesar dos tribunais nacionais poderem salvaguardar os direitos decorrentes dos Artigos 101.º e 102.º do TFUE (na numeração actual), conforme anteriormente referido, ao abrigo do Regulamento 17/62, com limitações relevantes, mormente não poderem aplicar o Artigo 101.º, n.º 3 (que comporta uma excepção à proibição genérica de acordos e práticas concertadas restritivas da concorrência, preenchidos certos pressupostos de cariz económico), bem como, não poderem apreciar casos objecto de processos em curso por parte da Comissão.

Com a entrada em vigor, em 2004, do Regulamento n.º 1/2003, verificou-se uma profunda mudança na aplicação das regras de defesa da concorrência na União Europeia, em particular no que concerne à sua descentralização. Este regulamento, instituiu um regime de competências paralelas que permite à Comissão e às autoridades de concorrência e tribunais nacionais aplicar aquelas disposições.

Para além do referido regulamento, a cooperação entre os tribunais nacionais e a Comissão é regida pela Comunicação da Comissão sobre a cooperação entre a Comissão e os tribunais dos Estados-Membros da UE na aplicação dos artigos 81.° e 82.° do Tratado CE4.

Em face deste enquadramento normativo, os tribunais nacionais podem decidir em sede dos Artigos 101.º e 102.º do TFUE, sem que seja necessário aplicar paralelamente o direito nacional da concorrência. Em caso de disposições contraditórias, o princípio geral da primazia do direito comunitário exige que os tribunais nacionais não apliquem qualquer disposição do direito nacional que seja contrária às regras primeiramente referidas, seja esta disposição nacional anterior ou posterior à disposição comunitária.

Quando é chamado a aplicar as regras comunitárias de concorrência, um tribunal nacional pode procurar primeiramente orientações na jurisprudência dos tribunais da União Europeia (Tribunal Geral e Tribunal de Justiça, as duas instâncias que compõem essa jurisdição) ou mesmo nos regulamentos, decisões, comunicações e orientações da Comissão referentes à aplicação destas disposições.

Caso estes instrumentos não ofereçam orientações suficientes, o tribunal nacional poderá mesmo assim solicitar à Comissão o seu parecer sobre questões respeitantes à aplicação das regras de concorrência da União Europeia. Quando a Comissão já se tenha pronunciado relativamente à questão controvertida, os tribunais nacionais não podem tomar decisões que sejam contrárias à decisão aprovada pela Comissão. Devem também evitar, tomar decisões que entrem em conflito com uma decisão prevista pela Comissão em processos que esta tenha iniciado. Numa situação deste tipo, o tribunal nacional pode avaliar se é ou não necessário suspender a instância, sem que seja posto em causa o recurso ao mecanismo do reenvio prejudicial, actualmente previsto no Artigo 267.º do TFUE.

Page 51

Na...

Para continuar leyendo

Solicita tu prueba

VLEX utiliza cookies de inicio de sesión para aportarte una mejor experiencia de navegación. Si haces click en 'Aceptar' o continúas navegando por esta web consideramos que aceptas nuestra política de cookies. ACEPTAR