A obrigação de não concorrência dos administradores com eficácia pós-mandato: contornos e limites

AutorAdriano Squilacce - Daniel Bento Alves
CargoAdvogados da área do Direito Público, Contencioso e Arbitragem de Uría Menéndez-Proença do Carvalho (Lisboa).
Páginas116-126

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Introdução

No presente artigo propomo-nos abordar, ainda que sinteticamente, certas questões que poderão emergir da estipulação de uma obrigação de não concorrência dos administradores -pessoas singulares- de uma sociedade anónima com eficácia após a cessação do respectivo mandato. Assim, e tal como decorre da delimitação do objecto deste artigo, não cuidaremos da relevância da obrigação de não concorrência dos administradores das sociedades anónimas com eficácia durante o período do mandato.

Dos interesses subjacentes à obrigação de não concorrência com eficácia pós-mandato

No decurso do mandato de um administrador de uma sociedade anónima, excepto se existir autorização em contrário, aquele fica automaticamente vinculado a não concorrer com a sociedade por força do disposto no n.º 3 do artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais (não sendo, por isso, necessária a existência de uma expressa estipulação das partes), sendo que, mediante o termo do mandato, obviamente que tal obrigação se extingue, salvaguardando-se, no entanto, a protecção que advém para a sociedade do instituto da «concorrência desleal» previsto no artigo 317.º do Código da Propriedade Industrial. Compreende-se que assim seja, já que, apenas durante o mandato, é que o administrador está sujeito a deveres de lealdade para com a sociedade (cfr. artigo 64.º, n.º 1 - al. b), do Código das Sociedades Comerciais), devendo prosseguir os interesses desta, o que, naturalmente, deixa de ocorrer com a cessação do mesmo.

No entanto, cumpre aqui perguntar se as partes (i.e., o administrador e a sociedade) podem acordar voluntariamente que o administrador permaneça obrigado a não concorrer com a sociedade após o fim do respectivo mandato?

Da perspectiva da sociedade anónima, poderá haver interesse em que o administrador fique obrigado a não concorrer com aquela após o termo do mandato. Isto porque, durante o exercício das suas funções (e unicamente por causa desse exercício), o administrador pode ter estabelecido relações de confiança pessoal com clientes da sociedade e outros terceiros e, ainda, ter tido acesso a informação privilegiada dentro da sociedade. Esta circunstância faz com que o administrador constitua uma séria «ameaça» em termos comerciais, caso venha a desenvolver, directa ou indirectamente, uma activi-dade concorrente com a da sociedade após o termo do mandato. Um exemplo ilustrativo dos casos em que a sociedade tem interesse no pacto de não concorrência com eficácia pós-mandato é a situação em que a totalidade do capital social é adquirida por um terceiro investidor e este pretende substituir, total ou parcialmente, os membros do Conselho de Administração, evitando a «ameaça» de uma eventual concorrência da «prata da casa». Ora, a fim de acautelar esta «ameaça» comercial, haverá interesse em estipular um pacto de não concorrência, já que a protecção que advém para a sociedade do instituto da «concorrência desleal» não se revela adequada para este fim. Na verdade, o instituto da «concorrência desleal» apenas é aplicável quando se encontrem verificados determinados pressupostos (e.g. a prática de actos susceptíveis de criar confusão com um empresa; falsas afirmações com o

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intuito de desacreditar concorrentes, etc.), não visando proteger a sociedade em relação à mera concorrência por parte de um ex-administrador.

A este propósito, importa referir que o pacto de não concorrência com eficácia pós-mandato não se des-tina a suprimir «mais um concorrente» da sociedade anónima no que respeita à disputa da clientela (até porque o mercado está sujeito ao princípio da livre concorrência plasmado no artigo 101.º do Tratado da União Europeia e nos artigos 61.º, 81.º - al. f), e 99.º - al. a), da Constituição da República Portuguesa - «CRP» -, estando ainda reconhecido pela Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho). De facto, como refere JÚLIO GOMES, «em relação à clientela, parecenos, aliás, que nunca se deve perder de vista que numa economia de mercado a clientela é livre e não é um objecto susceptível de apropriação indirecta» («As Cláusulas de não concorrência no Direito do Trabalho», in Revista de Direito e de Estudos Sociais, Verbo, Janeiro-Março de 1999, página 12). Assim, para que possa ser concebido, o pacto de não concorrência terá de ter o propósito de proteger a sociedade do risco específico da concorrência «diferencial» do antigo administrador (que será analisada infra), que se «distingue» dos demais concorrentes por aquele conhecer a sociedade «por dentro». Na ver-dade, este traço distintivo -quando existente- é que permitirá suportar a licitude do pacto de não concorrência. Aliás, a propósito dos pactos de não concorrência de trabalhadores (cujas possíveis semelhanças devem ser analisadas com um cuidado redobrado de adaptação, tendo em conta a perspectiva aqui tratada), JACQUELINE AMIEL DONAT salienta que «Para a empresa toda a concorrência é um risco, mas a única que se pode proteger através de uma cláusula de não concorrência é a que resulta de certas condições da actividade do antigo trabalhador» (Anotação ao Acórdão da Cour de Cassation, de 14 de Maio de 1992, in Juris-Classeur Périodique, Ed. 1992, página 249, apud JÚLIO GOMES, ob. cit., páginas 14 e 15).

Já do ponto de vista do administrador, também poderá existir interesse na estipulação do pacto de não concorrência com eficácia pós-mandato, já que lhe dará a oportunidade de beneficiar de uma compensação pecuniária enquanto contrapartida da obrigação de não concorrência, assegurando, desta forma, rendimentos futuros num período em que já não estará adstrito a desempenhar as funções que recaíam sobre si. Aliás, o interesse do administrador no pacto de não concorrência será tanto maior quanto mais forte for a autonomia comercial e a imagem no mercado da sociedade à qual esteve ligado, já que, nestes casos, será mais difícil ao administrador constituir uma ameaça comercial relevante para a sociedade após o mandato.

Da admissibilidade do pacto de não concorrência com eficácia pós-mandato

Caso se admita a validade de um pacto de não concorrência desta natureza, obviamente que a sua génese assentará na liberdade contratual das partes e na possibilidade de o administrador aceitar livremente restringir a sua liberdade de trabalho, a sua liberdade de escolha de profissão e a sua liberdade de iniciativa económica, não assentando nunca na prorrogação implícita dos deveres de lealdade (previstos no artigo 64.º, n.º 1 - al. b), do Código das Sociedades Comerciais) que recaíam sobre este durante o mandato.

Assim sendo, parece-nos razoável afirmar que a sujeição do administrador à obrigação de não concorrência com eficácia pós-mandato configurará uma nova obrigação e não a prorrogação de uma obrigação existente durante o mandato. Evidentemente que esta diferença implicará que a admissibilidade da obrigação de não concorrência pósmandato seja aferida à luz de normas e princípios que estão consagrados fora do Código das Sociedades Comerciais, nomeadamente no Código Civil e na CRP, podendo ainda recorrer-se a outros normativos enquanto elementos de acessórios interpretação.

Conforme já avançado, o pacto de não concorrência com eficácia pós-mandato constituirá uma limitação à liberdade de iniciativa económica, à liberdade de trabalho do administrador e, ainda, à liberdade fundamental de escolha de profissão, que se assume como um direito fundamental consagrado no n.º 1 do artigo 47.º da CRP -integrado no capítulo atinente aos direitos, liberdades e garantias pessoais-, nos termos do qual «Todos têm o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho, salvas as restrições legais impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à sua própria capacidade». A este propósito, cumpre apenas ressalvar que a liber-dade de escolha de profissão é uma componente da liberdade de trabalho, sendo que esta última decorre indiscutivelmente do princípio do Estado de direito democrático, apesar de não estar consagrada de forma autónoma na CRP (J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra, 4.ª Edição, 2007, página 653). De resto, o n.º 1 do artigo 58.º da CRP consagra o direito ao trabalho ao referir que «Todos

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têm direito ao trabalho» (desta feita, integrado no capítulo relativo aos direitos e deveres económicos). Embora as liberdades de trabalho e de escolha de profissão apresentem uma estreita relação com o direito ao trabalho, tratam-se de direitos distintos (vide JORGE MIRANDA, «Liberdade de trabalho e profissão», in Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XXX, n.º 2, Abril-Junho de 1998, Almedina, página 151).

Deste enquadramento constitucional da liberdade de escolha de profissão, integrada nos direitos, liberdades e garantias pessoais, resulta que esta liberdade constitui um direito de personalidade do administrador (neste sentido, vide JOÃO PACHECO DE AMORIM,

Liberdade de Profissão e Direito ao Trabalho: contributo para uma distinção entre duas figuras afins

, in Estudos Jurídicos em Homenagem ao Professor António Motta Veiga, Almedina, 2007, página 115).

É que, como realça JORGE MIRANDA, a liberdade de trabalho compreende: «positivamente, a liberdade de escolha e de exercício de qualquer género ou modo de trabalho que não seja considerado ilícito pela lei penal, possua ou não esse trabalho carácter profissional ou não profissional, seja típico ou atípico, permanente ou temporário, independente ou subordinado, esteja estatutariamente definido ou não» (ob. cit., página 153). Ou...

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