Liberdade e tolerância religiosa: "portugueses não católicos" no Ultramar do século XIX

AutorCristina Nogueira da Silva
CargoProfesora de la Facultad de Derecho de la Universidade Nova de Lisboa
Páginas40-66

    Cristina Nogueira da Silva: Profesora de la Facultad de Derecho de la Universidade Nova de Lisboa, donde imparte las materias de Historia del Derecho e Historia de las ideas. Doctora en Historia del Derecho con la tesis titulada A cidadania nos Trópicos: O Ultramar no constitucionalismo monárquico português (1820-c. 1880). Ha publicado diversos artículos sobre derecho colonial, organización política del imperio portugués, esclavitud y abolicionismo portugués, así como sobre el estatuto jurídico de las personas libres en los territorios coloniales portugueses. Igualmente ha publicado trabajos sobre la organización política de los territorios portugueses y su reforma en el siglo XVIII.

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  1. Estudar o estatuto político e jurídico das populações nativas dos Impérios coloniais europeus de oitocentos, a sua posição relativamente à cidadania e ao direito das respectivas metrópoles, envolve alguns problemas.

  2. Em primeiro lugar, porque esse estatuto não foi pensado, e muito menos formalizado, num momento "constituinte" do encontro colonial. Pelo contrário, foi-se definindo, muitas vezes em resposta a problemas gerados por circunstâncias concretas associadas a múltiplos encontros coloniais. Problemas como os que se colocaram, por exemplo, quando, após a declaração da liberdade como direito fundamental, nos textos constitucionais, os deputados metropolitanos debateram o estatuto dos escravos dos territórios ultramarinos; ou quando, após a abolição da escravatura, foi necessário pensar o estatuto dos escravos recém libertados, os libertos. Ou, antes disso, no caso do Império português, quando governo e governadores locais discutiram o estatuto dos trabalhadores livres em África, os "carregadores" de Angola, homens livres recrutados pelos sobas para apoiar o comércio europeu nesta província1.

  3. Problemas semelhantes colocaram-se, in loco, às autoridades judiciais europeias, quando as "partes" nativas recorreram, por sua própria iniciativa, aos tribunais coloniais, para verem os seus litígios resolvidos por uma instância "externa" ou por normas que entendiam ser-lhes mais favoráveis do que as que resultariam das formas nativas de resolução de conflitos2. Ou ainda quando grupos nativos usaram, a favor da sua "inclusão" (quase sempre comportando a "exclusão" de outros grupos), as estruturas burocráticas europeias e as respectivas autoridades3. Estas, por sua vez, ao competirem entre si pelo alargamento das respectivas jurisdições, criaram novas oportunidades de (re)definição do estatuto dos grupos nativos4.

  4. Finalmente, os grupos que participaram nos órgãos da administração (colonial e metropolitana), também souberam usar a sua presença Page 41 nesses órgãos para obter uma posição favorável face à cidadania metropolitana. No caso do Império português do século XIX, isso foi visível com as elites indianas cristianizadas de Goa, ou com as elites "crioulas" angolanas. Tendo alguns dos seus representantes acedido ao Parlamento metropolitano, assumiram aí o papel de "portugueses do Ultramar" e, nesse papel, recordaram aos "portugueses da metrópole" que a sua relação com eles era uma relação tradicionalmente igualitária, e que, portanto, lhes devia ser reconhecida a totalidade dos direitos civis e o máximo de autonomia e de participação política5.

  5. Estes últimos exemplos mostram, também, que a cidadania nas colónias, como na metrópole, foi uma construção na qual participaram colonizadores e colonizados. As populações nativas estiveram activamente envolvidas na construção do seu estatuto civil e político face à metrópole, embora seja importante sublinhar que nem todas e nem sempre. Na verdade, tal como sucedeu com as populações das metrópoles europeias, embora de modo muito menos formalizado, o acesso das populações nativas à cidadania foi diferenciado, não tendo sido raro que alguns colonizados usassem o seu "lugar" privilegiado para se transformarem eles em colonizadores de outros grupos.

  6. Finalmente, além de não ter havido uma codificação inicial do estatuto das populações nativas, ele também não foi codificado de uma vez por todas. O estatuto dessas populações foi variando, no tempo e no espaço, ao sabor da vontade política dos governos locais e centrais e, localmente, ao sabor dos diversos cenários em que o colonialismo ocorreu6.

  7. O processo de inclusão/exclusão das populações nativas das "províncias ultramarinas" portuguesas do século XIX foi, deste modo, um processo complexo, que não se deixa descrever de forma linear. No entanto, o art. 7º do texto constitucional que esteve em vigor durante quase todo o período da monarquia constitucional portuguesa, a Carta Constitucional, outorgada pelo rei D. Pedro, em 1826, parecia ter resolvido de forma clara todas as questões nele envolvidas7. Podia lerse, nesse art., que eram cidadãos portugueses todos os que tinham nascido em Portugal ou "seus domínios" (artº 7, § 1). A letra deste artigo parecia reflectir uma vontade "constituinte" de incluir na cidadania portuguesa todas as pessoas que nascessem no ultramar português (na África ocidental e oriental, na Índia, em Macau e em Timor), independentemente da cor da sua pele, da sua cultura ou da sua religião. Não era necessário que fossem "filhos de pai português", exigência que tinha predominado nas outras duas Constituições que vigoraram no mesmo período, a de 1822 e a de 1838, e que tinha Page 42 lançado um "princípio de incerteza" sobre a cidadania e a nacionalidade das populações nativas daqueles territórios.

  8. O que irei mostrar nas próximas páginas é que, ao declarar a religião católica como religião oficial do Estado e ao omitir o problema do pluralismo religioso das sociedades ultramarinas, a Carta constitucional conservou, apesar do ius soli, todas as indefinições e incertezas existentes em torno da nacionalidade e da cidadania do conjunto das populações nativas (não católicas) do Ultramar português. Que, apesar do ius soli da Carta, os políticos e juristas do século XIX nunca chegaram a decidir, de forma clara e definitiva, se e que populações nativas das "províncias ultramarinas" eram integradas por cidadãos portugueses, por vassalos da coroa portuguesa, por súbditos por direito de conquista ou, simplesmente, por estrangeiros, às vezes inimigos. Isso sucedeu em virtude de dois motivos fundamentais. Em primeiro lugar, a natureza elitista e civilizacionalmente conotada do conceito oitocentista de cidadania. A Nação era, para os políticos e juristas do século XIX, uma associação voluntária, um conjunto de indivíduos unidos pela adesão a um mesmo "contrato social", independentemente da sua cor, cultura ou religião. Contudo, para esses mesmos políticos e juristas, a maior parte das pessoas de cor, cultura e religião diferente que tinham nascido no Ultramar, estava encerrada em "estádios civilizacionais" anteriores à aquisição da "autonomia da vontade" requerida para o exercício pleno da cidadania no mundo civilizado. Além disso, tal como sucedeu em outras metrópoles europeias, dificilmente esses portugueses de oitocentos podiam incluir pacificamente, na sua "comunidade imaginada", o conjunto dos povos nativos de África, da América e da Ásia. A Nação portuguesa era por eles identificada num registo duplo, como um contrato, mas também como uma comunidade orgânica, um conjunto de pessoas ligadas pela mesma língua, cultura, genealogia8 e religião. Era também uma comunidade afectiva, baseava nos laços que ligavam os cidadãos portugueses à comunidade, a privilegiar os sentimentos de amor, fidelidade e implicação moral, facilitados pela convivência histórica e inter-geracional. No Ultramar, onde viviam pessoas com "hábitos, costumes, religião, e raças diferentes"9, não era fácil saber quem era ou não era português10.

I A religião na Constituição de 1822
  1. A declaração do catolicismo como religião oficial do Estado não foi uma novidade introduzida pela Carta Constitucional de 1826. Na primeira Constituição portuguesa, aprovada em 1822, pela assembleia constituinte que reuniu logo após a Revolução liberal de 1820, já se Page 43 tinha optado pela solução do Estado confessional. No entanto, no momento em que o tema foi discutido, o pluralismo religioso das populações ultramarinas do Ultramar não americano - porque a América portuguesa, o "Brasil" e as suas populações, dominou toda a discussão constitucional vintista-, foi brevemente referido, para apoiar propostas que iam no sentido da liberdade religiosa. Para alguns deputados, a declaração da Religião católica como religião oficial do Estado era incompatível com a nacionalidade portuguesa das populações não católicas do Ultramar. A existência desses "portugueses" exigia ou a declaração da liberdade religiosa ou, em alternativa, a sua "desnacionalização":

    "Temos portugueses nas regiões de África com diferentes seitas, ora se todos estes homens são tidos por vassalos portugueses, é necessário ver se havemos de prescindir deles serem portugueses todos, ou se havemos de prescindir da religião" 11.

  2. A mesma hipótese voltou a surgir na assembleia constituinte dos anos trinta, na qual alguns deputados defenderam, de novo, que se consagrasse a liberdade religiosa na Constituição, por causa da prática de cultos não católicos nas províncias do Ultramar12. Não podia afirmarse que a religião dos portugueses era a católica e que só aos estrangeiros era permitido "o exercício particular do seu respectivo culto", como estava definido no projecto da Constituição, porque isso significava proibir aos portugueses do ultramar a prática, em público ou em privado, dos cultos não católicos. Esses deputados esforçaram-se também por tornar claro que alguns cidadãos portugueses não eram católicos:

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