A Constituição de 1891 e o laboratório Jurídico-Político Brasileiro do estado de sítio

AutorRafael Vieira Rafael Vieira
Páginas327-349

Page 327

Ver Nota1

“Os mais satisfeitos com a performance, a eles pertence o termo bárbaro, [...] com ar entendido, piscando olhos uns aos outros, se felicitavam pela excelência da técnica que o chefe havia empregado, [...] aplicada predominantemente aos asnos e às mulas nos tempos antigos, mas que a modernidade, com resultados mais do que apreciáveis, reaproveitou para uso humano.”

(José Saramago, Ensaio sobre a Lucidez, p.36-37)

Page 328

I Sobre o estado de sítio: breve digressão teóricoconceitual

Certa vez ao referir-se à utilização do estado de sítio posteriormente ao período pós-1848 na França, Marx pode apontar para este como sendo: “um invento esplêndido, empregado periodicamente em todas as crises”2. Marx buscava refletir nesse momento sobre um mecanismo legal de suspensão da própria ordem legal em situações de crise, em modelos constitucionais que formalmente são cunhados para a garantia do direito de todos os cidadãos. Mas um paradoxo daí deriva: se a crise em um modelo de antagonismo social latente é de certa forma impostergável, e o consenso obtido a partir daí é somente aquele mediado pela violência e pela subjugação, tal invento voltaria a ser usado constantemente, conforme antecipado por Marx. Esse mecanismo acaba por não conseguir resolver as contradições da qual parte esse modelo, sendo condenado a recorrer em momentos de crise às mesmas estratégias de contenção que o origina.

O termo estado de sítio, de tradição francesa, ou estado de exceção, de tradição alemã apesar das diferenças semânticas e históricas tem uma afinidade já ressaltada de referir-se ao mecanismo de suspensão legal da ordem legal. Sua primeira aparição histórica formal, segundo a pesquisa feita por Giorgio Agamben3, remonta à um decreto instituído pela Assembléia Constituinte francesa em 8 de julho de 1791. O decreto se referia inicialmente às praças-fortes e aos portos militares, mas já com a lei de 19 frutidor do ano V, o Diretório assimila às praças fortes os municípios do interior, e com a lei do dia 18 frutidor do mesmo ano, foi atribuído o direito de declarar-se toda uma cidade em estado de sítio. A história posterior, segundo Agamben, “é a história de sua progressiva emancipação em relação à situação de guerra à qual estava ligado na origem, para ser usado, em seguida, como medida extraordinária de polícia em caso de desordens e sedições internas, passando, assim, de efetivo ou militar a fictício ou político”4. A burguesia, recém-saída vitoriosa da revolução de 1789, formulava um mecanismo para conter não somente eventuais tentativas de restauração por parte dos partidários do absolutismo, mas também a insurreição do restante do terceiro estado e dos milhões de miseráveis, que após a consolidação da burguesia no poder, tornaram-se classes que já não dividiam com ela projetos políticos semelhantes.

Compreender o caráter jurídico e outros elementos deste mecanismo, bem como alguns aspectos de sua história são fundamentais para a compreensão das relações sociais no Brasil e seus processos de dominação derivados. Estava em disputa na Constituição de 1891 o significado teóricoprático da soberania e suas construções de sentido que daí decorrem, já não havendo mais formalmente o poder moderador, responsável pelo desenrolar histórico da construção do Estado brasileiro a partir do Império. Nesse sentido,

Page 329

é importante a compreensão desse mecanismo, a partir do momento em que teoricamente o súdito do Império se tornaria o cidadão da República. No processo de universalização formal (vale ressaltar, no campo político-formal que o voto estava excluído aos mendigos e analfabetos, que correspondiam a uma porcentagem nada desprezível daquele momento) do direito, ocorre, como em França, o aparecimento do mecanismo que justamente suspende amplamente esse direito.

Entretanto, ao tentar expor a importância do estudo de tal mecanismo e seus reflexos no direito, isto não quer dizer que os processos de dominação se resumam aos momentos em que o estado de sítio foi ou não decretado. Estes processos de sujeição vão muito além das decretações formais, exercido diariamente por outras instituições de controle social, cuja influência jurídica também pode ser notada. Nesse sentido, ao priorizarmos o estudo das decretações formais, a busca é pela compreensão da estrutura mais ampla do próprio direito. As relações entre direito-violência-poder serão objetos de estudo a partir de um mecanismo que possa permitir tornar mais clara uma relação que é em si complexa e geralmente ignorada pela teoria da constituição hegemônica, que se contenta simplesmente com definições estanques tanto de Estado, direito, violência, poder e outros termos que pertençam a esse horizonte de compreensão.

O paradoxo da presença dos mecanismos de exceção no direito está completamente rodeado de outros elementos que revelam uma outra face do direito. A própria regulamentação de um mecanismo que tenta lidar com a exceção é paradoxal, pois estamos diante da tentativa do direito de definir aquilo que supostamente é imprevisível: a exceção. Como definir a exceção, se a exceção é justamente aquilo que não está presente diretamente no ordenamento? Caso desejássemos defini-la, estaríamos diante da seguinte situação: se ocorrer a exceção, decorre determinada conseqüência jurídica. Mas como definir a exceção? E quem a define?

A solução que a doutrina do direito público dá a essa situação é estabelecer à exceção termos que são amplamente vagos, permitindo somente sua definição no momento de concretização da norma: ordem pública, bons costumes, comoção interna, e etc. Isto fará com que nós remontemos à própria relação entre direito e linguagem, visto que o direito por meio de seus constantes processos de abstração, tenta generalizar ao máximo determinadas expressões para que caibam na universalidade das normas, fazendo com que estas expressões vagas tentem dar conta de uma normatização ampla do real, fazendo com que a decisão ocupe o vazio preenchido por tais expressões. Ao tentar regular situações amplas da vida por meio de uma palavra, o direito termina tornando-se recorrentemente refém da decisão, que é o ato de manifestação da atuação soberana na aplicação da norma jurídica.

Pierre Bourdieu5 certa vez ao refletir sobre tais reflexos no processo de produção da norma jurídica, chamava a atenção para o recurso constante de construções frasais impessoais, ou da utilização de verbos conjugados na

Page 330

terceira pessoa do singular, por sujeitos indefinidos, ou a partir do uso do indicativo, em termos genéricos e supostamente atemporais, na tentativa de obter como efeitos a neutralidade e universalidade como consequências derivadas de tal processo de de-semantização. Estes seriam os efeitos pretendidos em tal movimento de normatização das relações sociais, entretanto, em relação aos enunciados linguísticos, estes somente encontram qualquer possibilidade de referência quando articulados ao movimento de forças real que lhes imprime significado. Os termos vagos utilizados somente podem ser compreendidos se articulados também aos embates ideológicos e as relações de força e dominação que imprimem no universo jurídico apenas um dos aspectos de sua manifestação.

A afinidade estrutural do estado de sítio com o Poder Moderador, formalmente abolido com a república, nos remete propriamente aos paradoxos contidos no conceito moderno de soberania. Essa será uma das chaves que poderá guiar algumas considerações estabelecidas posteriormente.

II Estado de sítio, acumulação capitalista e a primeira república: uma interpretação teórica

Como compreender a funcionalidade do estado de sítio na estruturação das relações no período posterior à Constituição de 1891? Essa questão teórica será importante na consolidação de algumas hipóteses a serem desenvolvidas posteriormente que possam vincular a presença do sítio ao desenvolvimento das relações correspondentes. Estava em jogo na primeira república diferentes fatores que podem ser levados em conta na tentativa de compreensão dos fenômenos subjacentes, mas podemos apontar um fio condutor nesses diferentes processos: a consolidação, estruturação e desenvolvimento dos processos de dominação burguesa no período. As formas que assumem esses processos de dominação são dinâmicas, mas a vinculação parte da consolidação da relação entre soberania e estado de sítio como responsável pela produção de condicionamentos e vínculos internos a partir do seu próprio conteúdo e de sua manifestação6.

Geralmente nas interpretações estabelecidas sobre a primeira república no Brasil, o ponto central ressaltado é o marco de transição do modelo político formal do Império para a República, e a chamada “política dos governadores” como fenômeno de consolidação das estruturas de poder derivadas, onde o estudado são geralmente as interações entre os atores participantes dos processos em suas relações. Os fundamentos econômicos geralmente são compreendidos praticamente como uma extensão da economia do Segundo Império do ponto de vista da inserção brasileira na divisão internacional do

Page 331

trabalho, classificada de forma estanque entre “produtores de manufaturas versus produtores de matérias primas”.

A República e sua consolidação no Brasil, entretanto, tem uma série de pontos negligenciados em um processo histórico-social extremamente complexo para se entender a singularidade do desenvolvimento brasileiro. O objetivo não é tentar dar conta de todos esses processos, mas lançar bases para reflexões posteriores que possam contribuir na tentativa dessa compreensão. Geralmente as próprias...

Para continuar leyendo

Solicita tu prueba

VLEX utiliza cookies de inicio de sesión para aportarte una mejor experiencia de navegación. Si haces click en 'Aceptar' o continúas navegando por esta web consideramos que aceptas nuestra política de cookies. ACEPTAR