O jurisprudencialismo. Uma concepção do Direito e do pensamento jurídico

AutorAntonio Castanheira Neves
Páginas9-48

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Ante verba

Invocarei, como pórtico destas minhas relexões, um enunciado de Cornelius Castoriadis, com que totalmente me identiico e, por isso, me permito fazer meu: È possível que tudo o que diga e escreva nada valha. No entanto, há outra hipótese menos optimista: o das pessoas hoje não terem minimamente vontade de ouvir, e de fazerem o esforço reclamado por um discurso que apela para a relexão crítica, para a responsabili-dade, para a recusa do deixar andar.

Observarei ainda –a convocar uma atitude que tenho por essencial– que os nossos esforços serão superluamente académicos se ignorarem os problemas fundamentais da nossa actual realidade humana, histórico--cultural e social, e não se propuserem assumilos na responsabilidade re-lexiva da sua compreensão e orientação – se não lograrem comprometer os seus destinatários, universitários e não universitários, a enfrentarem esses problemas humanos na humana circunstância da nossa existência. Sem o que mais não serão do que lúdicos exercícios culturais, pensados e discutidos em curto-circuito, e então tão vãos e dispensáveis como para Josef Knecht, na primeira fase, o Glasperlenspiel concebido poo Herman Hess – e de que o Magister Ludi só se resgatou quando, depois de compreender a censura de Frei Jakobus e de ter visto que tudo isso era ainal um fútil jogo de fuga à responsabilidade, põde escrever na sua carta

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de renúncia: “ O nosso dever supremo e o meio mais sagrado é manter, para o país e o século, a sua base espiritual, que se revelou também um elemento moral de uma eicácia superior – quero dizer, aquele sentido da verdade sobre o qual repousa, entre outras, também a justiça”. Condenável academismo de que só nos exorcisaremos, também nós hoje, e desde logo como universitários, se izermos igualmente nosso, subscrevendo-a, o teor dessa paradigmática carta do Magister Ludi renunciante.

I A problemática
1. O direito como problema
  1. O universo jurídico encontra-se actualmente numa situação de grave ambiguidade problemática. Todo o discurso que lhe corresponde, seja o falado, seja o escrito, parece admitir uma evidência – refere o direito como se dele não duvidasse ou fosse algo que se sabe o que é, no seu sentido constitutivo, na sua intencional determinação, nos seus básicos relevo e consequência humano-sociais. O mesmo é dizer que o direito é tido já como pressuposto, já como o sujeito do juízo. Decerto que não signiica isso que o direito não seja objecto de plúrimos problemas e em todos os níveis culturalmente relexivos (teológicos e ilosóicos, institucionais e dogmático, estratégicos e linguístico-analíticos, políticos e crítico-sociológicos, etc.), só que trata-se de uma problemática que justamente o postula aproblemático na sua pressuposição – como, aliás, dir-se-á analogamente acontecer em todos os domínios temáticos, com o postular o seu objecto. E todavia a situação actual – histórico-cultural e mesmo civilizacional, reconheceremos –é de molde a termos de airmar a superação, numa grave quebra, dessa evidência, já que o direito deixou de ser apenas objecto ou referência de problemas para ser ele próprio um problema. Para além, e decisivamente, dos problemas, de todos os problemas sobre o direito, impõe-se-nos hoje o problema de o direito– o direito não apenas pressuposto de problemas, mas ele em si mesmo pro-blema, o problema do direito a recompreender e a relectir na convocação de uma também outra e muito diferente problemática, aquela que lhe é essencialmente especíica.

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b) A juridicidade sofre efectivamente uma profunda crise paradigmática – sem que essa crise a possa iludir a supericialidade fenomenológico-retórica que nos envolve. “Crise” referimo-la, não na sua signiicação vulgar e sim no sentido que a etimologia justiica e conceitualmente rigo-roso. Uma crise é sempre o resultado de um esgotamento das possibilidades de um sistema de referências e de pensamento – de um “paradigma”, poderá dizer-se, no exacto conceito de T. Kuhn – até então subsistente, referencialmente pressuposto, e assim determinante, e traduz-se num essencial desequilíbrio entre as referências de sentido e de fundamentos de inteligibilidade que esse sistema ou paradigma oferece e os novos problemas emergentes da experiencia entretanto e evolutivamente vivida e a que deixou de dar resposta ou solução adequada e exigível – é como se perante a nova problemática o sentido do paradigma pressuposto deixasse de ter sentido. E com vários e eventuais estádios discrimináveis nessa evolução, que pode ir da insistência vã nas soluções já falhadas ao cep-ticismo consequente ao dogmatismo entretanto assumido, do desespero da atribuição de um sem-sentido do problema à relexiva reconstituição ainal do sentido do problema – atitude esta última que, transcendendo das soluções anteriores à novação do próprio problema, será a única verdadeiramente superadora. Ora, uma crise naquele sentido e a exigir uma atitude deste último tipo, é justamente o que está a veriicar-se relativamente ao paradigma moderno, especiicamente moderno-iluminista, do direito, da compreensão e intencionalidade da juridicidade que por três séculos se constituiu e que é a nossa herança imediata.

É esse paradigma, bem se sabe, o do legal-normativismo –já que são duas as suas dimensões constitutivas, a do normativismo na índole do pensamento jurídico e a do legalismo no sentido do direito. Cada uma dessas dimensões teve a sua origem própria e foi determinada por diver-sas condições e factores numa ampla complexidade, ilosóico-cultural e mesmo religiosa, antropológica e económica, ideológica e políticosocial, etc. Mas o que agora tão-só importa reconhecer é a situação criticamente de colapso, e portanto a crise, desse paradigma em todos os momentos referenciais e intencionais decisivos– desde logo no seu fundamental objectivo de dar uma solução jurídica ao problema político (ao problema humano-político da modernidade), e isso porque entretanto se revelaram insustentáveis os seus pressupostos capitais, se reconhecem os handicaps, digamo-lo assim, da sua própria génese intencional, se subverteu

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o sentido originário da lei, da normatividade jurídica que o paradigma quis instituir como o verdadeiro nomos da prática moderna, porque passaram a ser outras as exigências contextuais implicadas e assumidas por uma sua radical erosão crítica. Não se trata agora, nesta circunstância, de explicitarmos tudo o que vai dito. Bastarnos-emos com as só alusões que sejam suicientes para justiicarmos a conclusão a que não podemos subtrair-nos. Assim, os pressupostos já na verdade caducos eram o pressuposto antropológico da concepção do homem moderno, na sua autonomia individualista, o pressuposto ilosóico-cultural do racionalismo, ainda que correlativo ao empirismo, e o pressuposto político do contratualismo, a postular a liberdade como fundamento, sem pressupostos e ex novo, de todos os acordos práticos. E com base neles e na sua coerência, a lei que o direito fundamentalmente e apenas deveria ser concebia-se com as características bem especíicas de validade racional, de universalidade e abstracção, de permanência, de carácter formal e de a priori normativo2, características que garantiriam a autonomia jurídica que, consubstanciada no sistema doutrinariamente dogmático da sua determinação, se distanciaria do político para ser dele a condição da referida solução jurídica. Só que esta concepção do direito na sua juridicidade ia inquinada do que se dirá um paradoxal pecado original, pois se ela teve na sua origem a primeira inequívoca politização histórica do direito –a lei jurídica, iden-tiicando o direito, era exclusivamente a lei do Estado, em que decerto se assumia o político –dela simultaneamente se pretendia aquela autonomia que diferenciasse o jurídico do político e esta contradição não deixaria de ter fortes consequências, consequências político-jurídicas. Desde logo, os exponenciados compromissos políticosociais, que o Estado viria a assumir e de que a legislação passaria a ser instrumento normativo, subverteriam, com efeito, aquela concepção da lei em todas as suas também aludidas características, com o resultado de as leis se terem convertido já em meros instrumentos de funcionalidade político-social (é o que di-zemos “funcionalismo político”), já em contingentes e aleatórios actos políticos, em que a distância entre o direito e o político se apaga. Depois, haverá de considerar-se ainda três tópicos muito relevantes – o do juri-

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dismo (a contínua conversão de o direito em sempre novos direitos numa também contínua especiicação regulatória pretendida pelas diversas teleologias socialmente diferenciadas e em ordem apenas, simultaneamemte, ao seu contrôle e à sua sistémica eiciência, e em que o resultado é a subversão do sentido do direito), o do funcionalismo jurídico, já aludido, de diversos matizes (o direito submete-se a uma sua irresistível instrumentalização política e sócio-económica sem condições, e em que a sua autonomia se sacriica) e o economicismo global (a globalização económicojurídica, a implicar fundamentalmente a própria exclusão do direito num mundo em rede “sem leis nem juízes”), etc.

O paradigma entrou, pois, em ruptura e como expressão de um verda-deiro cepticismo, correlativo à sua entretanto dogmatização, naquela dog-matização que sempre acaba por revestir todo o pensamento dominante, proliferam as propostas de uma sua tentada correcção, por modiicação ou inserção de outros componentes, por uma diferente sua perspectivação ou assimilação contextual, etc. –o paradigma falhava e acções concertadas, de transacções e precários acordos segundo o lema each with each ou pro-vindo de uma espécie de forum de aberta negociação social ( a “contratualização das leis” e do direito –...

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