A competencia do Tribunal de Justiça para interpretar o ADPIC e o efeito direito do artigo 33.° deste Acordo
Autor | Luís M. Couto Gonçalves |
Páginas | 869-885 |
[Comentario ao Acórdáo do Tribunal de Justiça da Uniao Europeia (Grande Secc.áo), de 11 de setembro de 2007, C-431/05, «Merck Genéricos» v. «Merck & Co. Inc.» e o.]
Pode ser consultado em http://curia.europa.eu.
Luís M. Couto Gonçalves. Professor Associado com Agregacao, na Faculdade de Direito da Universidade do Minho (Portugal). Correo electrónico: luismcg®direito.uminho.pt.
Page 870
a) «Merck & Co. Inc.» (empresa norte-americana) era titular, em Portugal, da patente de invencáo portuguesa n.° 70.542, pedida em 4 de dezembro de 1979 e concedida por despacho de 8 de abril de 1981, com prioridade reportada a 11 de dezembro de 1978. Esta patente era relativa a um processo para uma composicáo farmacéutica nova, a qual era comercializada desde 1 de Janeiro de 1985 sob a marca «Renitec».
b) «Merck & Co. Inc.» concedeu a «Merck Sharp & Dohme, Lda» (empresa portuguesa) uma licenca de exploracáo da patente n.° 70.542 para usar, vender ou de qualquer modo dispor do medicamento «Reni tec» em Portugal, tendo-lhe igualmente concedido poderes de defesa da referida patente.
c) A empresa portuguesa «Merck Genéricos-Produtos Farmacéuti cos, Lda.» lancou no mercado sob a marca «Enalapril Merck» um medicamento, a precos substancialmente mais baixos do que os da mar ca «Renitec», informando na publicidade, feita junto dos médicos, de que se trataría do mesmo produto.
d) «Merck & Co. Inc.» e «Merck Sharp & Dohme, Lda.» intentaram uma accao declarativa contra a «Merck Genéricos» pedindo a condenacao da Ré a: i) abster-se de importar, fabricar, preparar, manipular, embalar, colocar em circulagao, vender ou por a venda, directa ou indi rectamente, quer em Portugal, quer para exportacáo, o produto far macéutico sob a marca «Enalapril Merck»; ii) pagar uma indemnizacao as Autoras pelos prejuízos patrimoniais e nao patrimoniais causados.
e) A Ré, em sua defesa, invocou, nomeadamente, a excepcáo de caducidade da patente n.° 70.542, alegando que já tinha decorrido oPage 871 prazo de 15 anos previsto no artigo 7.° do Código da Propriedade Industrial (CPI), de 1940, aplicável por for9a do regime transitorio previsto no artigo 3.° do Decreto-Lei n.° 16/1995, de 24 de Janeiro, que aprovou o CPI de 1995, cuja entrada em vigor te ve lugar em 1 de Junho de 1995. De acordó com o referido artigo 3.°, as patentes, cujos pedidos tivessem sido apresentados antes da entrada em vigor do Código de 1995, conservavam a duragao que lhes era atribuida pelo CPI de 1940. Isto significaría que a patente havia caducado em 8 de abril de 1996 (15 anos depois da concessao). O artigo 94.° do CPI de 1995 dispunha que a duragao da patente de invencao era de 20 anos contados da data do respectivo pedido.
f) As Autoras consideraran!, no entanto, que a caducidade da patente só de vería ter lugar em 4 de dezembro de 1999, ou seja, 20 anos depois do pedido, por forca da aplicagao do artigo 33.° do «Acordó sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comercio» (ADPIC).
De acordó com esta disposigao legal, «a duragao da protecgao oferecida nao terminará antes do termo do período de 20 anos calculado a partir da data do depósito».
g) O ADPIC consta do Anexo 1C ao Acordó que instituí a Organizagáo Mundial do Comercio (OMC), assinado em Marraqueche, em 15 de abril de 1994, também pelos representantes da Comunidade e dos seus Estados-Membros.
O Acordó OMC e respectivos Anexos foram aprovados, em nome da Comunidade, em relagao as materias da sua competencia, pela Decisao 94/800/CE do Conselho, de 22 de dezembro de 1994 (JO L 336, de 23 de dezembro de 1994, p. 1).
Em Portugal, este Acordó e seus Anexos foram aprovados pela Resolugao da Assembleia da Assembleia da República n.° 75/B/94, de 15 de dezembro e ratificados pelo Decreto do Presidente da República n.° 82-B/94, de 27 de dezembro.
h) O ADPIC entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1995 e toraou-se aplicável para a Comunidade e para os seus Estados-Membros em 1 de Janeiro de 1996, antes, ainda, da expiragao do prazo originario de duragao da patente em análise (8 de abril de 1996).
i) Tendo em vista ultrapassar o confuto de regimes de duragao de protecgao, e sem perder de vista o disposto no artigo 33.° do ADPIC, foi aprovado o artigo 2.° do Decreto-Lei n.° 141/1996, de 23 de agosto que revogou o referido artigo 3.° do Decreto-Lei n.° 16/1995 estabelecendo, nos termos do artigo 1.°, que as patentes pedidas antes da entrada em vigor do CPI de 1995, vigentes em 1 de Janeiro de 1996, ou concedidas após esta mesma data, se aplicaría, igualmente, o artigo 94.° do CPI de 1995. Porém, no caso em aprego, a dúvida nao ficou inteiramen-Page 872te resolvida a ser aceite a tese de que a patente n.° 70.542 já tivera caducado em 8/4/1996, antes, pois, da data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.° 141/1996 (12 de setembro de 1996), considerando-se que este diploma nao poderia fazer «ressuscitar» uma patente caducada.
j) O CPI de 1995 foi, entretanto, revogado pelo actual CPI de 2003, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 36/2003, de 5 de margo, que entrou em vigor em 1 de Julho do mesmo ano, cujo artigo 99.° mantém a duragáo da patente de 20 anos contados da data do respectivo pedido.
l) A acgáo interposta pela «Merck & Co. Inc.» e «Merck Sharp & Dohme, Lda.» foi julgada improcedente em primeira instancia.
Em segunda instancia, no que diz respeito a questao da caducidade da patente, o Tribunal da Relagáo de Lisboa, por acórdáo de 14/12/2004, aceitou o efeito directo do artigo 33.° do ADPIC e decidiu pela validade da patente e condenou a Ré a uma indemnizacáo, mas já nao, obviamente, á abstengáo de comercializacáo e de outros actos, já que a patente (mesmo sendo abrangida pelo prazo de 20 anos) já havia expirado em 4 de dezembro de 1999.
m) «Merck Genéricos» interpós recurso deste acórdáo para o Supremo Tribunal de Justiga, o qual decidiu, por acórdáo de 3 de novembre de 2005, suspender a instancia e submeter ao Tribunal de Justiga da Uniáo Europeia (TJ) as duas seguintes questóes prejudiciais:
1.ª O Tribunal de Justiga das Comunidades Europeias é competente para interpretar o artigo 33.° do ADPIC?
2.ª Em caso de resposta positiva a primeira questao, devem as jurisdigoes nacionais aplicar o mencionado artigo, oficiosamente ou a pedido de uma das partes, num litigio perante elas pendente?
.
Considerandos de direito (números 29 a 48 do acórdáo comentado): «Através das duas questóes que coloca, e que importa examinar conjuntamente, o órgáo jurisdicional de reenvió pergunta, no essencial, se o direito comunitario se opóe a que o artigo 33.° do acordó ADPIC seja directamente aplicado por um órgáo jurisdicional nacional num litigio que lhe seja submetido».
A título preliminar, recorde-se que, por forga do artigo 300.°, n.° 7, TCE, "os acordos celebrados ñas condigóes definidas no presente artigo sao vinculativas para as instituigóes da Comunidade e para os Estados-Membros"
.
O acordó OMC, de que o acordó ADPIC faz parte, foi assinado pela Comunidade e em seguida aprovado pela decisáo 94/800. Por con-Page 873seguinte, segundo jurisprudencia constante, as disposicoes do acordó ADPIC passaram a fazer parte integrante da ordem jurídica comunitaria (v. designadamente, acordaos de 10 de Janeiro de 2006, IATA e ELFAA, C-344/04, Colect., p. 1-403, n.° 36, e de 30 de maio de 2006, Comissao/Irlanda, C-459/03, Colect., p. 1-4635, n.° 82). No ámbito desta ordem jurídica, o Tribunal de JustÍ9a é competente para decidir a título prejudicial sobre a interpretacáo desse acordó (v., designadamente, acordaos de 30 de abril de 1974, "Haegeman", 181/73, Colect., p. 251, n.os 4 a 6, e de 30 de setembro de 1987, "Demirel", 12/86, Colect., p. 3719,n.º 7)
.1
O acordó OMC foi celebrado pela comunidade e por todos os seus Estados-Membros no exercício de urna competencia partilhada e, como o Tribunal de Justica já observou no n.° 24 do acórdáo "Hermés"' (...), sem que as suas obrigacóes respectivas para com as restantes partes contratantes tivessem sido repartidas entre si
.
Daqui resulta que, tendo o acordó ADPIC sido celebrado pela Comunidade e por todos os seus Estados-membros no exercício de urna competencia partilhada, o Tribunal de Justica, chamado a pronunciar-se ao abrigo das disposicoes do Tratado CE, nomeadamente o artigo 234.°, tem competencia para definir as obrigacSes que a Comunidade assim assumiu e para interpretar, com esta finalidade, as disposicoes do acordo (v. acórdáo "Dior"2 e o., n.° 33)
.
Além disso, como o Tribunal de Justina já declarou, tratando-se de um dominio em que a Comunidade ainda nao tenha legislado e que, por consequéncia, é da competencia dos Estados-membros, a proteccáo dos direitos de propriedade intelectual e as medidas tomadas para esse efeito pelas autoridades judiciais nao sao reguladas pelo direito comunitario, pelo que este nao impóe nem exclui que a ordem jurídica de urna Estado-Membro reconheca aos particulares o direito de invocarem directamente urna norma do acordó ADPIC ou imponha ao juiz a obriga§áo de aplicar oficiosamente essa norma (v. acórdáo "Dior" e o., n.°48)
.
Em contrapartida, se se concluir que, no dominio em questáo, existe regulamentacáo comunitaria, aplica-se o direito comunitario, o que implica a obriga?áo de, na medida do possível, proceder a urna interpretacáo conforme ao acordó ADPIC (v., neste sentido, acórdáo "Dior" e o., n.° 47) sem que, contudo, possa ser atribuido efeito directo a disposicáo em causa desse acordó (v., neste sentido, acórdáo "Dior" e o., n.°44)
.
Ora, para determinar qual das duas hipóteses consideradas nos dois números anteriores do...
Para continuar leyendo
Solicita tu prueba