O crime de abuso de informação privilegiada (insider trading), em especial a questão dos administradores como insiders primários, quando actuam em representação da sociedade

AutorFrancisco Proença de Carvalho - Filipa Loureiro
CargoAbogados del Área de Mercantil de Uría Menéndez Proença de Carvalho (Lisboa).
Páginas111-119

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Introdução

É evidente que os crimes económicos estão na ordem do dia. Os Tribunais portugueses têm lidado cada vez mais com os chamados crimes de mercado e a comunicação social tem prestado atenção crescente a estas matérias.

Os mercados de valores mobiliários vivem da informação, informação essa que é essencial para as decisões dos investidores e dos reguladores. Efectivamente, a salvaguarda da eficiência do mercado traduz-se na promoção da adequada formação dos preços dos valores mobiliários transaccionados e da igualdade de oportunidades quanto a decisões de investimento (limitação do uso de informação privilegiada ou insider trading -termo de origem anglo-saxónica, muito difundido na doutrina nacional e internacional, que consiste na compra ou venda de activos mobiliários, com base em informação privilegiada). No entanto, pela sua origem, natureza e função uma parte dessa informação é, em certos momentos, reservada a um círculo limitado de pessoas, ficando mais tarde acessível ao público em geral. O momento da divulgação e a qualidade da informação a divulgar condicionam e influenciam as decisões dos agentes no mercado e têm repercussões significativas nos preços. É essa informação, que ainda não foi tornada pública, que se designa por informação privilegiada.

O mercado de valores mobiliários pressupõe sempre uma informação assimétrica, apesar dos esforços empreendidos na defesa da igualdade e da transparência. Segundo VALERIO SANGIOVANNI, a assimetria informativa entre aqueles que operam no mercado é um pressuposto lógico do insider trading («L’attuazione della direttiva sull’insider trading nel diritto tedesco». Banca, borsa e titoli di credito (BBTC), 2000, I, p. 540-570). O estudo desta conduta levanta, portanto, a questão de saber até onde pode ir essa assimetria.

A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) tem um papel preponderante nesta activi-dade de controlo e de supervisão, estabelecendo regras, procedimentos, para que a informação seja geral e paritária, ou seja, que seja recebida por todos os intervenientes no mercado de forma igualitária. A implementação de um sistema de deveres informativos denso no mercado nacional de valores mobiliários deve-se à notória influência norte-americana, de onde herdámos o edifício normativo relacionado com o «full disclosure», que foi construído a partir dos anos 30, em reacção à perturbação mais violenta dos preços que aquele mercado sofreu com a crise de 1929.

É nesta tentativa de controlo, orientada pelo princípio da transparência e da eficiência, que a CMVM baliza as condutas permitidas no seio do mercado de valores mobiliários, censurando comportamentos abusivos que tenham origem em informação não disponível a todos os intervenientes e que ponham em causa o bom funcionamento do merca-

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do de capitais, nomeadamente através da criminalização do abuso de informação privilegiada.

Ora, o crime de abuso de informação surge da necessidade de prevenir comportamentos oportunísticos baseados na assimetria da informação.

O abuso de informação privilegiada falseia a pari-dade informativa e transparência do mercado. Deste modo a repressão do insider trading é fundamental para garantir a eficiência dos mercados financeiros, assegurando a sua regulamentação, a liquidez dos títulos e a confiança dos investidores.

O abuso de informação privilegiada e a sua criminalização
Breve resenha histórica sobre o crime de insider trading

A regulação do mercado em Portugal tem uma origem mais reactiva do que proactiva, pois são os acontecimentos que criam de uma forma geral a necessidade de regulação.

O século XX foi dominado por uma incipiente anarquia do mercado, que levou à aprovação do Regimento do Ofício do Corrector e do Regulamento da Bolsa, os quais permaneceram em vigor durante setenta e três anos (até ao 25 de Abril de 1974). Porém, os progressos económicos da década de 60 e dos primeiros anos da década de 70 estavam completamente desajustados à estrutura da Bolsa de Valores de Lisboa, tendo surgido o DL n.º 8/74 que reformou a orgânica e as regras de funcionamento das bolsas de valores (referências colhidas em FERNANDO TEIXEIRA DOS SANTOS in Avaliação geral e perspectivas de regulação de mercado de capitais).

A década de 80 foi caracterizada por TEIXEIRA DOS SANTOS como a «ressaca da crise bolsista de 1987», tendo surgido a figura do Auditor-Geral do Mercado de Títulos, com funções de supervisão e o Conselho Nacional das Bolsas de Valores, com funções de informação e aconselhamento do Ministro das Finanças. Foi uma altura de elevada criação de regras de controlo, em virtude do desenvolvimento da realidade económica portuguesa, posterior à adesão de Portugal à CEE, que culminou em 1991 com a aprovação do Cód.MVM, altura em que os mercados de valores mobiliários foram liberalizados. A partir daqui trata-se com especial acuidade o enquadramento sancionatório dos ilícitos de mercado, designadamente o insider trading (TEIXEIRA DOS SANTOS in «A avaliação Geral e Perspectivas de Regulação do Mercado de Capitais», 2001, p. 5). Posteriormente, perante um Código (Cód.MVM) que se tornou muito rígido, sentiu-se a necessidade de criar o actual Código de Valores Mobiliários (CdVM), instituído pelo DL 487/99 de 3 de Novembro.

Mas apesar da regulamentação propriu sensu se ter verificado no século XX, já no século XVIII se destacavam os benefícios obtidos por um grupo restrito de «iniciados» (termo de origem francesa) que negociavam as suas acções na posse de interesses reservados e, por outro lado, o prejuízo sofrido pelo público investidor, que não dispunha de tais informações. Começaram, assim, a surgir denúncias do enriquecimento próprio de uns e o empobrecimento de outros. No século XX persiste a denúncia da prática de insider trading, que traduz de modo paradigmático a apropriação de informação reservada por pessoas que mantêm relações de especial proximidade com a entidade emitente de valores mobiliários.

O crime de abuso de informação foi introduzido pelo Código das Sociedades Comerciais, tendo sido posteriormente autonomizado, em 1991, no Cód. MVM, que acolheu a generalidade das sugestões contidas na Directiva 89/592/CEE de 13 de Novembro e mais tarde integrando o CdVM, no actual artigo 378.º, tendo surgido associado à necessidade de protecção dos mercados.

Existem, porém, ainda grandes dificuldades na recolha e sustentação de prova deste crime em juízo. Veja-se, a título de curiosidade que a primeira condenação em Portugal em matéria de insider trading ocorreu 17 anos depois da entrada em vigor da incriminação. Esta dificuldade resulta do facto de o dano real não ser imediatamente visível, como acontece em geral com a criminalidade económica mais sofisticada, pois estas práticas surgem num «contexto lícito», isto é, no seio da negociação no mercado de valores mobiliários. Além do mais, estamos no âmbito de um mercado em que a diver-sificação e sofisticação de instrumentos financeiros e a multiplicação de estruturas de negociação, a par da interligação decisiva entre instrumentos financeiros derivados e activos subjacentes, dificultam a eficácia de fiscalização.

Neste contexto é de referir o amplo lote de medidas aprovadas pela CMVM em Agosto de 2008, que englobaram nomeadamente medidas regulamentares sobre relatórios de informação, recomendações sobre relatórios de research e esclarecimentos inter-

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pretativos sobre divulgação de informação privilegiada por emitentes e comunicação de operações suspeitas e defesa de mercado.

Os contornos do tipo legal de crime em Portugal

À medida que se vai intensificando o «tráfego mobiliário» e a velocidade da circulação de informação vai aumentando, surge a necessidade de prever comportamentos que podem ser prejudiciais para a nova realidade surdida no século XX: o mercado dos valores mobiliários.

Nessa medida, emerge a importância do Direito Criminal mobiliário, que surge como parte integrante do sistema jurídico-mobiliário. No sistema jurídico português são tipificados como crimes de mercado, o abuso de informação e a manipulação de mercado.

Para compreender a criminalização ou descriminalização é essencial lançar mão da própria noção de bem jurídico, que foi autonomizada nos princípios do século XIX. O direito penal económico distingue-se do direito penal clássico (primário) pela sua...

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