Brasil: Considerações iniciais sobre os bancos de dados informatizados e o direito à privacidade.

AutorDanilo Cesar Maganhoto Doneda
CargoMestre em Direito Civil pela UERJ. Doutorando em Direito Civil na UERJ. Professor da Universidade Candido Mendes - Ipanema.

"Transformamos tão radicalmente o nosso ambiente que devemos agora transformar-nos a nós mesmos, para podermos existir neste novo ambiente"Norbert Wiener.

"Enquanto o homem se pavoneava e se fingia de deus, uma imbecilidade infantil se abatia sobre ele. As técnicas eram guinadas às mais altas posições e, uma vez instaladas em seu trono, lançaram suas correntes sobre as inteligências que as haviam criado" Edgar Allan Poe.

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1 - "Direito a ser deixado em paz" ou, para alguns, "direito a estar só". O right to be let alone, enunciado pelo magistrado norte-americano Cooley ao final do século passado, foi um dos alicerces do célebre artigo de Brandeis e Warren, The right to privacy. O estudo foi pioneiro ao estabelecer um marco na doutrina do direito à privacidade, além de ser de certa forma profético ao antecipar a importância que a matéria viria a assumir com o desenvolvimento das tecnologias de informação que começam a se fazer sentir.(1)

Para a dupla de juristas norte-americanos, o direito à privacidade merecia a consideração de ser “o mais abrangente dos direitos do homem”; para os ordenamentos jurídicos contemporâneos, sua definição e delimitação constituem um enorme desafio.

Diversas menções à privacidade podem ser encontradas na Bíblia, em textos gregos clássicos e mesmo da China antiga(2) , enfocando basicamente o direito, ou então a necessidade da solidão. Na Inglaterra do século XVII estabeleceu-se o princípio da inviolabilidade do domicílio - man´s house is his castle, que iria dar origem à tutela de alguns aspectos da vida privada relacionados com o respeito ao domus, ao espaço físico privado do homem.(3) Ainda na época feudal a casa da família passou a representar um espaçode intimidade, proporcionando a separação da vida da comuna e indo ao encontro de interesses pessoais - a intimidade do sono, do almoço, do ritual religioso, talvez até do pensamento;e com a família burguesa a idéia do ensimesmamento em casa e de cada indivíduo em seu quarto passou a ser vista como condição de habitabilidade.(4)

Mesmo assim não foi o homem do medievo, por demais integrado a uma vida cotidiana de caráter coletivista, que desejou o isolamento. No outono da Idade Média surgia o homem burguês que, juntamente com sua necessidade da propriedade privada, precisava também de uma vida privada. O burguês passou a se isolar dentro de sua própria classe, dentro de sua própria casa - dentro de sua propriedade.(5)

O surgimento da doutrina do right to privacy, em matiz fortemente identificada com o direito ao isolamento, corresponde justamente a um dos períodos de ouro da sociedade burguesa norte-americana, o final do século passado. Não por acaso, a motivação para o trabalho doutrinário surgiu do desconforto experimentado por um dos autores, o futuro juiz da Suprema Corte Samuel Warren, ao ver certos aspectos enrubecedores da festa de casamento de sua filha divulgados nos jornais da época.

Tomado como garante do isolamento e da solidão, o direito à privacidade não se apresentava exatamente como uma realização de exigências naturais do homem, mas sim de uma classe. Necessário notar que entre os direitos fundamentais tutelados pelo Estado liberal de então sempre se encontra o direito à propriedade; o direito à privacidade nunca estava expressamente enunciado. É a privacidade, então, quase que um privilégio alcançado por alguns. "Poverty and privacy are simply contraditoires"(6)

2 -Foi em 1890, mesmo ano em que The right to privacy foi publicado, que o norte-americano Herman Hollerith concebeu uma máquina eletromecânica, que lia uma série de dados perfurados em cartões e que fez com que o censo de seu país fosse realizado naquele ano em um terço do tempo do censo anterior. Hollerith mais tarde fundaria a Tabulating Machine Company, hoje conhecida como IBM.

A corrida tecnológica àquela época já estava em marcha acelerada. O artigo de Brandeis e Warren enfocava justamente a tecnologia como provedora dos meios que possibilitavam a intromissão indevida em assuntos privados: a fotografia, a imprensa, as gravações, todas em contínuo desenvolvimento.

Mesmo aparentando uma índole mais pacífica do que as máquinas fotográficas, a máquina de Hollerith, ao revolucionar o censo norte-americano, foi um dos primeiros passos de uma tecnologia que proporcionaria uma redefinição dos limites do direito à privacidade.

Em determinado momento o cérebro humano deixou de ser o único meio de processamento de informações. Em uma evolução que partiu do ábaco, utilizado por comerciantes há mais de dois mil anos, passou pelo matemático e filósofo Blaise Pascal que construiu em 1642 um engenho mecânico capaz de somar e subtrair números de oito algarismos, à Charles Babagge, que em 1834 idealizou um mecanismo capaz de executar sequências matémáticas pré-definidas (os primeiros programas), por fim chegamos ao engenho de Hollerith que, com sua tecnologia, deu cabo da extenuante tarefa do censo norte-americano.

O primeiro passo fora dado para o processamento mecânico de informações. Posteriormente, na primeira metade do nosso século, houve um acelerado desenvolvimento de diversos instrumentos mecânicos e eletromecânicos com o propósito de facilitar cálculos numéricos até que, em 1946, foi ligado pela primeira vez o ENIAC (Eletronic Numerical Analyzer and Computer), o primeiro computador eletrônico, resultado temporão do esforço de guerra norte-americano, que operava sob lógica digital, capaz de efetuar 3.500 multiplicações por segundo, o que era assombroso para a época.(7)

O ENIAC é o primeiro na linha evolutiva dos computadores digitais, máquinas eletrônicas cuja capacidade de processar e armazenar informações cresce a cada dia, manipulando dados em níveis sequer sonhados pelos seus criadores e dando à informação processada importância fundamental na dinâmica da sociedade moderna.

O cenário estava pronto. A partir da segunda guerra a evolução dos computadores e de sua capacidade de processar informações dependia da ciência que, neste ramo, progredia a passos largos com o impulso da guerra fria e da demanda por novos sistemas de telecomunicações. O homem, pela primeira vez, deparava-se com um rival na faculdade de manipular informações e seu relacionamento com o computador desde o início apresentou um elemento de desconfiança, afinal era uma máquina capaz de realizar tarefas lógicas de grande volume e em velocidade extraordinária se comparada aos humanos, além de contar com o pressuposto da infalibilidade. Os primeiros receios humanos foram de que o computador iria tomar seus lugares na realização de diversas tarefas, relegando o homem a uma situação de inferioridade frente ao então alcunhado "cérebro eletrônico". A atual substituição de diversos postos de trabalho pelo trabalho automatizado demonstra que o receio não era de todo infundado.

Outra preocupação dizia respeito à utilização da tecnologia para finalidades autoritárias, temor encarnado com maestria pelo Big Brother na obra de George Orwell, "1984". Câmaras, microfones, sensores de todo o tipo formavam uma parafernália tecnológica que servia à observação completa do homem em todos seus passos. Tratava-se do “homem de vidro” em sua “casa de vidro”(8) . O temor não se esgotava na ficção de Orwell, que explorava o tema proposto anteriormente por Jeremy Bentham em seu Panopticon e se espraiava por toda a sociedade, conforme notava o dramaturgo Arthur Miller em comunicação ao Congresso norte-americano:

"O computador, com sua insaciável sede de informação, com sua imagem de infalibilidade, com sua incapacidade de esquecer o que armazena, chegará a ser o centro de um sistema de vigilância permanente que converterá a socieda0de em que vivemos num mundo transparente, em que nossa casa, nossas finanças, nossas associações e instituições, nossa condição física e mental aparecerá una a qualquer observador"(9)

O pesadelo tecnológico, ao menos por hora, não se consumou como nas escritas mais pessimistas. Houve, no entanto, uma mudança na forma como o indivíduo podia parecer mais transparente aos outros olhos.

Informações organizadas em arquivos empoeirados e dossiers de grandes dimensões passaram a ser dominados por computadores com resultados excelentes, impossíveis até então de serem obtidos pelo trabalho humano, o que representava uma verdadeira revolução. Tornou-se possível recolher um maior volume de informações, processá-las muito mais rapidamente, agregá-las e combiná-las dos mais diversos modos, obter aquelas necessárias em tempo irrisório e muito mais. Assim nascia o banco de dados informatizado.(10)

Antes mesmo do surgimento dos computadores e da sua efetiva utilização em larga escala, a importância estratégica do tratamento da informação já era notada. Na Itália, em 1954, o Conselho Ministerial decidiu iniciar uma política de discriminação contra os comunistas e seus aliados, com base em informações colhidas sobre a fé política dos italianos. Merece destaque também o caso do fabricante de automóveis FIAT que, conforme posteriormente divulgado, selecionou 350.000 dos seus empregados entre 1948 e 1971 com base em dados sigilosos do SIFAR (antigo serviço secreto militar italiano), evitando a contratação de pessoas com tendências políticas de esquerda.(11)

O hábito de coletar informações sobre cidadãos há muito era conhecido do Estado. Antes dele, a Igreja organizou durante séculos registros sobre as populações de determinados locais, tarefa que passou a ser realizada pelo Estado quando os meios tornaram-na possível e a questão passou a ser determinante para definir estratégias de desenvolvimento. O cidadão pôde se beneficiar disso ao obter certidões e documentos da administração pública com maior presteza, assim como os governos puderam ter uma noção mais exata das necessidades da população.

Os meios de se processar informação, conforme verificado, surgiram, desenvolveram-se e popularizaram-se. Logo o processamento de informações se colocou também ao alcance de entes privados. Os meios...

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