Estado de exceção e mudança (in)constitucional no Brasil (1935-1937)

AutorRaphael Peixoto de Paula Marques
CargoDoutorando em Direito na Universidade de Brasília (UnB/Brasil)
Páginas353-386
Historia Constitucional, n. 14, 2013. http://www.historiaconstitucional.com, págs. 353-386
ESTADO DE EXCEÇÃO E MUDANÇA
(IN)CONSTITUCIONAL NO BRASIL (1935-1937)
STATE OF EXCEPTION AND (UN)CONSTITUTIONAL
CHANGE IN BRAZIL (1934-1937)
Raphael Peixoto De Paula Marques
Doutorando em Direito na Universidade de Brasília (UnB/Brasil)
SUMÁRIO. INTRODUÇÃO. I. REFORMAR PARA SUSPENDER: A
EQUIPARAÇÃO ENTRE ESTADO DE SÍTIO E ESTADO DE GUERRA II.
SUSPENDER PARA EXCEPCIONAR: A REPRESSÃO POLÍTICA SOB O
ESTADO DE GUERRA III. APROFUNDANDO O ESTADO DE EXCEÇÃO: O
GOLPE DE ESTADO DE 1937 E A “GHOST CONSTITUTION”.
Resumo: O artigo busca analisar, a partir da ocorrência da “Intentona
Comunista” em 1935, a articulação entre mudança constitucional e estado de
exceção durante o governo do presidente brasileiro Getúlio Vargas no período
compreendido entre 1935 e 1937. O exame recairá sobre o contexto histórico e
os debates parlamentares relacionados à reforma da Constituição brasileira de
1934 que pretendeu equiparar os efeitos do Estado de Sítio ao Estado de
Guerra. Analisa, ainda, as consequências políticas e jurídicas da mencionada
equiparação, bem como tenta resgatar os antecedentes e as justificativas para
o golpe de estado ocorrido em 1937 e que deu início ao período conhecido
como Estado Novo.
Abstract: This paper analyzes the relationship between constitutional
change and state of exception during the administration of Brazilian President
Getúlio Vargas in the period between 1935 and 1937. The analysis will be on
the historical context and the parliamentary debates related to the reform of the
Brazilian Constitution of 1934 that aimed to increase the effects of the state of
emergency. It also analyzes the political and legal consequences of that
equation as well as attempts to rescue the background and justifications for the
coup occurred in 1937 that began the period known as “Estado Novo”.
Palavras-chave: Mudança constitucional, Estado de sítio, Estado de
guerra, Segurança Nacional, Anticomunismo, Getúlio Vargas.
Keywords: Constitutional change, Martial law, Emergency Powers,
National Security, Anticommunism, Getúlio Vargas.
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O Estado brasileiro não tem que
enfrentar a III Internacional em outro terreno. É
a legítima defesa. É uma questão de força. […]
Temos que cumprir hoje um dever sagrado,
que é o de salvar o Brasil. Que fique para
amanhã este outro, de preservar a
Constituição.
Editorial de jornal citado pelo deputado
federal Salles Filho (1935)
INTRODUÇÃO
No dia 23 de novembro de 1935, ocorreu no Brasil o que ficou conhecido
como a “Intentona Comunista”.” O evento foi uma conspiração de natureza
político-militar que se qualificou como uma rebelião armada contra o presidente
da República brasileiro Getúlio Vargas. O levante teve forte influência do
Partido Comunista Brasileiro (PCB).1
Em menos de cinco meses após a revolta, de novembro de 1935 a março
de 1936, o regime varguista montou um aparato repressivo à altura de qualquer
ditadura: decretou o Estado de Sítio, reformou a Constituição de 1934 para
aumentar os efeitos das medidas de emergência e alterou a Lei de Segurança
Nacional. No âmbito da atuação das instituições, promoveu uma feroz
repressão policial, com inúmeras prisões, criou a Comissão Nacional de
Repressão ao Comunismo, com o objetivo de expurgar do serviço público civis
e militares acusados de subversão, e o Tribunal de Segurança Nacional, órgão
judicial para processar e punir os participantes da “Intentona”.
O levante de 1935, se não foi o responsável isolado pelo golpe de estado
ocorrido em novembro de 1937, ao menos proporcionou as condições para a
sua articulação. Em um regime constitucional de frágil manutenção, cujos
governantes não acreditavam na possibilidade de conter a subversão com as
leis e com a constituição existentes, “a aventura de 1935 foi um presente dos
céus para os setores da cúpula civil e militar que, desde 1930, defendiam a
implantação de um regime autoritário”.2
Uma das medidas que mais contribuiu para o aprofundamento do
autoritarismo do regime foi a modificação da Constituição de 1934. Aprovada a
reforma da Lei nº 38/1935, a chamada “Lei de Segurança Nacional”, faltava o
último e mais drástico passo: alterar a constituição para conferir ao estado de
sítio efeitos de estado de guerra. Mas, por quê? A resposta – reflexo da
1Para uma análise mais detalhada sobre a “Intentona Comunista”, ver Marly de Almeida
Gomes Vianna, Revolucionários de 1935 – sonho e realidade, Ed. Expressão Popular, São
Paulo, 2007; Paulo Sérgio Pinheiro, Estratégias da ilusão: a Revolução Mundial e o Brasil
(1922-1935), Companhia das Letras, São Paulo, 1991; Stanley Hilton, A rebelião vermelha,
Record, Rio de Janeiro, 1986.
2Boris Fausto, Getúlio Vargas: o poder e o sorriso, Companhia das Letras, São Paulo,
2006, p. 75-76.
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vontade do presidente da República de suspender a constituição – encontrava-
se na previsão constitucional do art. 161: “O estado de guerra implicará a
suspensão das garantias constitucionais que possam prejudicar direta ou
indiretamente a segurança nacional”.
Os obstáculos, para atingir esse objetivo, seriam mais difíceis, tendo em
vista os limites ao poder de reforma estabelecidos pela Constituição de 1934.
As regras constitucionais acerca da matéria eram decorrência da experiência
vivenciada na Primeira República com a banalização do estado de sítio.3
A partir desse contexto, o presente artigo pretende discutir as
conseqüências da “Intentona Comunista” de 1935 para a ordem constitucional
promulgada em 1934 a partir da articulação entre mudança constitucional e
estado de exceção. Primeiramente, reconstruir-se-á o contexto histórico e os
debates parlamentares acerca da proposta de reforma constitucional que
visava equiparar os efeitos do estado de sítio com os do estado de guerra (I).
Em segundo plano, investigar-se-ão as contradições e a repercussão
institucional desta alteração constitucional (II). Por último, estudar-se-ão as
conseqüências das medidas de exceção adotadas e os antecedentes para o
golpe de estado ocorrido em novembro de 1937 que deu início ao “Estado
Novo” brasileiro (III).
I. REFORMAR PARA SUSPENDER: A EQUIPARAÇÃO ENTRE
ESTADO DE SÍTIO E ESTADO DE GUERRA
A “Intentona Comunista” ocorreu no fim do mês de novembro de 1935.
Eclodiu na cidade de Natal no dia 23, passando pela cidade do Recife e
somente no dia 27 na cidade do Rio de Janeiro. Antes de começar a rebelião
no Rio de Janeiro, ainda no dia 25 de novembro de 1935, Vargas já havia
reunido o Ministério para expor a situação e discutir com o seu ministro da
Justiça, Vicente Ráo, os termos do pedido de autorização para a decretação do
estado de sítio entregue ao Poder Legislativo (VARGAS, 1995, p. 445).4Na
mensagem enviada ao parlamento, constava o seguinte:
“Graves perturbações da ordem pública ocorreram na noite de
23 para 24 deste mês, no nordeste do país, em razão de uma
insurreição armada nos Estados do Rio Grande do Norte e de
Pernambuco, com inequívoca finalidade extremista. Que movimento
de tal natureza entre nós se processava, bem sabe os DD.
Representantes da Nação, pelas informações que teve o Governo
ensejo de ministrar-lhes, quando se viu na necessidade de
determinar o fechamento de organizações extremistas, precisamente
por lhes haver descoberto a trama. […] A irrupção desse movimento,
3Durante a Primeira República (1889-1930), apenas os presidentes da República Campos
Sales, Afonso Pena e Nilo Peçanha não utilizaram o estado de sítio. Durante o governo de
Arthur Bernardes a medida foi utilizada por 1.287 dias. A reforma constitucional de 1926 foi
aprovada em pleno estado de sítio, fato que motivou inúmeros protestos da minoria
parlamentar e de outros setores que faziam oposição a Arthur Bernardes.
4De acordo com o art. 40 da Constituição de 1934, era da competência do Poder
Legislativo “autorizar a decretação e a prorrogação do estado de sítio”.

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