Para a história da convocação das Cortes Constituintes em Portugal em 1820: A proposta 'corporativista' de António de Almeida

AutorJosé Domingues, Vital Moreira
CargoUniversidade Lusíada ? Norte (Porto)/Universidade Lusíada ? Norte (Porto) / Universidade de Coimbra
Páginas634-668
PARA A HISTÓRIA DA CONVOCAÇÃO DAS CORTES
CONSTITUINTES EM PORTUGAL EM 1820: A PROPOSTA
“CORPORATIVISTA” DE ANTÓNIO DE ALMEIDA
TOWARDS THE HISTORY OF THE CONVOCATION OF
THE CONSTITUENT CORTES IN PORTUGAL IN 1820: THE
ANTÓNIO DE ALMEIDA’S “CORPORATIST” PROPOSAL
José Domingues
Universidade Lusíada – Norte (Porto)
Vital Moreira
Universidade Lusíada – Norte (Porto) / Universidade de Coimbra
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. I. DADOS BIOGRÁFICOS SOBRE O AUTOR DO
PARECER. II. CONTEÚDO DO PARECER. 2.1. Restrições aos direitos políticos.
2.2. Representação de índole corporativista. 2.3. As categorias representadas.
2.3.1. Representação dos proprietários. 2.3.2. Representação das “cidades e vilas
consideráveis”. 2.3.3. Representação dos negociantes e fabricantes. 2.3.4.
Representação do clero secular. 2.3.5. Representação do clero regular. 2.3.6.
Representação da Universidade. 2.3.7. Representação da Academia das Ciências.
2.3.8. Representação da magistratura. 2.3.9. Representação do exército. 2.3.10.
Representação da Companhia dos Vinhos do Alto Douro. 2.4. Composição das
Cortes e estatuto dos deputados. III. IMCOMPATIBILIDADE COM OS PRINCÍPIOS
DA REPRESENTAÇÃO LIBERAL. CONCLUSÃO.
Resumo: A partir do dia 1 de outubro de 1820, a unificação da Junta Provisória
de Governo do Porto, instituída com a revolução de 24 de agosto, com o Governo
Interino de Lisboa, nomeado no dia 15 de setembro, ficou consolidada a ideia de
uma “regeneração política do País, assente na convocação das Cortes para a
elaboração de uma Constituição. No entanto, como as Cortes portuguesas não
reuniam há mais de um século, levantou-se a questão de saber qual seria o
melhor sistema de representação nacional, adequada às luzes do século XIX. Para
tentar obter resposta, numa primeira manifestação do princípio da soberania
nacional, a Junta Preparatória das Cortes promoveu uma extensa “consulta
externa”, por portaria de 6 de outubro de 1820, particularmente dirigida à
sociedade letrada. Foram emitidas mais de duas mil circulares a solicitar a
opinião de indivíduos letrados e esclarecidos, bem como das instituições
científicas da Universidade de Coimbra e da Academia das Ciências de Lisboa,
sobre a convocação das futuras Cortes Constituintes. Este artigo traz à colação o
parecer inédito do médico António de Almeida, que propôs uma original
representação política nacional de índole corporativista. Independentemente da
repercução que possa ter tido naquela época, hoje é mais um fragmento ímpar do
processo constituinte de 1820, que ilustra uma notável página desconhecida da
história da representação política em Portugal.
Historia Constitucional
ISSN 1576-4729, n. 21, 2020. http://www.historiaconstitucional.com, págs. 634-668
Abstract: From October 1, 1820, onwards, the unification of the Provisional
Government of Oporto, established with the revolution of August 24, with the
Interim Government of Lisbon, set up on September 15, the idea of a “political
regeneration” of the Country based on the convening of the Cortes for the
adoption of a Constitution was definitly consolidated. However, since the
traditional Portuguese Cortes had not been covened for more than a century, the
question arose as to what would be the best national representation system,
suited to the conditions of the nineteenth century. In order to reach an answer,
the Junta Preparatória of the Cortes promoted an extensive external consultation
procedure on October 6, 1820. More than two thousand invitations were issued
requesting the opinion of knowlegeable and enlightened individuals, as well as of
the two mais scientific institutions, the University of Coimbra and the Academy of
Sciences of Lisbon, on the best way to convene the future Constituent Cortes.
This article brings to light the unpublished opinion of doctor António de Almeida,
who proposed an original political representation scheme of a corporatist nature.
Regardless of the repercussion it may have had at that time, today it is another
unique fragment of the constituent procedure of 1820, wich illustrates a
remarkable, yet unknown, page of the history of political representation in
Portugal.
Palavras chave: Liberalismo, Cortes de 1820, Representação Política, Soberania
Popular.
Key words: Liberalism, Cortes of 1820, Political Representation, Popular
Sovereignty.
INTRODUÇÃO
Este ano de 2020 comemora-se o bicentenário do constitucionalismo
moderno em Portugal, com lastro na Revolução Liberal iniciada na cidade do
Porto, a 24 de agosto de 1820. “A regeneração de 24 de agosto de 1820 até ao fim
de maio de 1823 –asseverava Freire de Carvalho, poucos anos depois– foi outra
nova luz que apareceu na longa noite tenebrosa da nossa servidão e das nossas
misérias”1. Desde o primeiro instante, os líderes vintistas anunciaram uma
“regeneração política” do País assente na convocação das Cortes e na
consequente adoção de uma Constituição escrita, que se viria a concretizar com a
primeira Constituição Política da Monarquia Portuguesa, aprovada pelas Cortes a
23 de setembro de 1822, jurada pelos deputados constituintes no dia 30 de
setembro, pelo rei no dia 1 de outubro e pelo reino no dia 3 de novembro desse
ano.
Mas as Cortes não eram convocadas há 123 anos, pois a última convocatória
tinha sido feita para a cidade de Lisboa por D. Pedro II, em 1697; não obstante,
persistia bem acesa uma tradição juspolítica multissecular que avalizava a sua
convocação, sobretudo, em momentos de grave crise política, institucional,
económica e social. Prima facie, estavam reunidas todas as condições necessárias
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1 José Liberato Freire de CARVALHO, Ensaio Histórico-Político sobre a Constituição e o Governo do Reino de
Portugal, Paris, em Casa de Hector Bossange, 1830, p. 312.
José Domingues y Vital Moreira
635
para que, em 1820, a estratégia de convocar as Cortes agradasse a todos e fosse
acolhida sem grandes reservas.
No entanto, apesar de todos concordarem e aclamarem a convocação das
Cortes, não tardou a surgir a primeira dificuldade aos proponentes
revolucionários do Porto: segundo a Constituição tradicional da monarquia
portuguesa, a competência para convocar as Cortes pertencia ao rei, que desde
1807/08 se tinha exilado no Brasil, em fuga à primeira invasão napoleónica ao
território português. De imediato, os governadores do Reino em Lisboa, que
governavam em nome de D. João VI, tentaram apoderar-se da iniciativa da Junta
Provisional governativa portuense invocando a dita prerrogativa régia e
assumindo-se “como os legítimos representantes de el-rei e, na sua ausência, os
únicos com legitimidade para convocar as Cortes, jogando a legitimidade tradicional
do rei contra a legitimidade revolucionária do governo provisório”2.
Sem perda de tempo, a Regência lisboeta, por portaria de 1 de setembro de
1820, nomeou uma Comissão Preparatória3 e, no dia 9 desse mês e ano,
anunciava a convocação das Cortes para Lisboa, nos moldes tradicionais (ou seja,
com representação separada dos três “estados”), com início marcado para o dia
15 de novembro desse ano. No entanto, dois meses antes dessa data, no dia 15
de setembro, um pronunciamento militar em Lisboa, secundando a revolução do
Porto, dissolveu a Regência, substituindo-a por um Governo Interino de
nomeação popular, alinhado com os ideais da Revolução, o qual passou a
coexistir com a Junta do Governo Supremo instituída no Porto no dia 24 de
agosto. A portaria de 27 de setembro de 1820, assinada em Alcobaça, acabou
com esta bicefalia governativa no campo revolucionário e deu origem a duas
novas juntas de âmbito nacional: a Junta Provisional do Governo Supremo do
Reino, encarregada do governo e da administração pública; e a Junta Provisional
Preparatória das Cortes, esta última subdividida em duas secções (uma para
tratar da convocação das Cortes e outra para tratar do seu funcionamento
interno)4.
Mas a dualidade do poder político revolucionário de 1820 só terminou
definitivamente no dia 1 de outubro, com a entrada triunfante da Junta do
Governo Provisório do Porto na capital, dirigindo-se diretamente ao Palácio da
Regência, situado na Praça do Rossio, para celebrar o encontro amistoso com os
membros homólogos do Governo Interino de Lisboa e se proceder à tomada de
posse do novo Governo provisório, agora de âmbito nacional. “Perante este cenário
político, esfumou-se a questão sobre se a Junta Provisional podia ou não convocar
as Cortes à margem da vontade do rei. A legitimidade revolucionária triunfou sobre
a legitimidade tradicional do monarca”5.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
2 José DOMINGUES e Vital MOREIRA, “Nas Origens do Constitucionalismo em Portugal: o parecer de J. J. Ferreira
Gordo sobre a convocação das Cortes Constituintes em 1820”, in e-Legal History Review 28, 2018, p. 9.
3 Foram nomeados membros desta Comissão Preparatória das Cortes: D. Frei Patrício da Silva (arcebispo de Évora),
Luís António Furtado de Castro do Rio de Mendonça e Faro (conde de Barbacena) que foi substituído por Joaquim
José Ferreira Gordo, Matias José Dias Azedo (tenente-general conselheiro de guerra), António José Guião
(desembargador), Tomás da Silva Monteiro (desembargador) e, para secretário, Manuel Borges Carneiro.
4 Suplemento à Gazeta de Lisboa, n.º 234, Lisboa, quinta-feira: 28 de setembro de 1820.
5 José DOMINGUES e Vital MOREIRA, “Nas Origens do Constitucionalismo em Portugal”, op. cit., pp. 7-16 (13).
PARA A HISTÓRIA DA CONVOCAÇÃO DAS CORTES CONSTITUINTES EM...
636

Para continuar leyendo

Solicita tu prueba

VLEX utiliza cookies de inicio de sesión para aportarte una mejor experiencia de navegación. Si haces click en 'Aceptar' o continúas navegando por esta web consideramos que aceptas nuestra política de cookies. ACEPTAR