A Escolha da lei aplicável ao contrato de seguro no Regulamento Roma I

AutorHelder Frias
CargoAbogado del Área de Mercantil de Uría Menéndez (Londres).
Páginas33-44

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Introdução

Veja nota 1

O passado tem demonstrado que a redacção de normas de conflitos de leis aplicáveis ao contrato de seguro suscita um sem número de dificuldades, não sendo, por isso, de estranhar que este tenha sido também um tema controverso no decurso da elaboração do Regulamento Roma I.

O contrato de seguro tem sido designado por alguns autores2 como a «ovelha negra» do direito internacional privado, nunca tendo sido objecto da devida atenção pelo legislador e, consequentemente, as normas vigentes nesta matéria até à entrada em vigor do Regulamento Roma I sempre foram severamente criticadas pela doutrina.

A este propósito, refira-se que a Convenção de 1980 sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (doravante abreviadamente designada por «Convenção de Roma») exclui grande parte dos contratos de seguro do seu âmbito de aplicação. Com efeito, apenas os contratos de resseguro e os contratos de seguro que cubram riscos situados fora dos territórios dos Estados-Membros da União Europeia se encontravam abrangidos por este diploma, o que acabou por conduzir a uma fragmentação do direito internacional privado do contrato de seguro.

Inicialmente, a larga maioria dos contratos de seguro eram, assim, regulados pelas normas de conflitos internas de cada Estado. Entretanto, foram aprovadas duas directivas comunitárias -a segunda Directiva Não Vida3 e a Directiva Vida consolidada4-5 (em conjunto, as «Directivas»)- que contêm normas de conflitos de leis que deveriam ser objecto de transposição para o direito interno de cada Estado-Membro.

Refira-se, desde já, que o Regulamento Roma I reproduz em tragos gerais o regime legal constante dos diplomas comunitários acima referidos, tendo o legislador comunitário optado por adiar a avaliação do mérito das suas normas para uma data posterior6.

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A verdade é que, no momento da elaboração das normas de conflitos de leis aplicáveis aos contratos de seguro, o legislador deverá ter em consideração a tensão permanente que se verifica entre a autonomia contratual das partes e a necessidade de protecção da parte mais desfavorável da relação (i.e., o tomador do seguro). Nesta medida, cada Estado poderá dotar certas normas específicas de uma natureza imperativa e de aplicação imediata, as quais regularão determinadas matérias de um dado contrato de seguro, independentemente da lei que seria de outro modo aplicável.

Torna-se, assim, imperioso estabelecer regras específicas para diversos contextos ou contratos (e.g., contratos celebrados por consumidores). Contudo, a eventual aplicação imediata de um número significativo de normas jurídicas não derrogáveis por acordo acabará por servir de desincentivo à activi-dade transfronteiriça das empresas de seguros.

Neste contexto, as normas de conflitos aplicáveis ao contrato de seguro deverão procurar dar resposta a três questões essenciais7:

(i) qual a liberdade que deverá ser concedida às partes na escolha da lei aplicável;

(ii) qual a lei aplicável na falta de escolha; e

(iii) em que medida deverá ser reconhecida eficácia às normas de aplicação imediata.

Neste artigo, analisaremos as respostas que o legislador comunitário consagrou no Regulamento Roma I para cada uma destas questões, confrontando, sempre que possível, tais soluções com as opções legislativas do passado.

Convenção de Roma

No que respeita à primeira questão, a Convenção de Roma aponta em grande medida no sentido da liberdade de escolha (cfr. Artigo 3.º da Convenção de Roma). No entanto, a Convenção de Roma acabou também por consagrar um número significativo de desvios a esta regra geral, nomeadamente:

- Nos termos do número 3 do Artigo 3.º da Convenção de Roma, a escolha da lei aplicável não poderá prejudicar a aplicação das disposições não derrogáveis por acordo de um país no qual todos os outros elementos do caso concreto se encontrem situados.

- Nos termos do Artigo 5.º da Convenção de Roma, os contratos celebrados por consumidores encontram-s e sujeitos a regras específicas segundo as quais a liberdade de escolha é muito menor.

- Nos termos do número 2 do Artigo 7.º da Convenção de Roma, as regras do país do foro que regulem imperativamente o caso concreto serão sempre aplicáveis.

- Nos termos do número precedente, as disposições imperativas da lei de outro país com o qual a situação apresente uma conexão estreita poderão ser aplicáveis em determinadas circunstâncias8.

- Nos termos do Artigo 16.º da Convenção de Roma, a aplicação de um preceito legal da lei escolhida pode ser recusada caso esse preceito se apresente como contrário à ordem pública do foro.

Quanto à determinação da lei aplicável na falta de escolha, a Convenção de Roma consagra no seu Artigo 4.º o mecanismo flexível da conexão mais estreita, embora estabelecendo uma presunção a favor do país onde se encontra domiciliada a parte que está obrigada a realizar a prestação característica do contrato9. Note-se que, nos contratos celebrados por consumidores, a solução será sempre a residência habitual do consumidor, uma vez verificados determinados requisitos.

Cumpre questionar se estas regras e princípios gerais deverão ser aplicáveis ao contrato de seguro ou se este contrato requererá uma abordagem diferente. Conforme referido supra, a Convenção de Roma é aplicável apenas aos contratos de seguro que cubram riscos situados fora dos territórios dos Estados-Membros da União Europeia. Caso o risco se situe no território de um Estado-Membro, serão ontcõ aplicáveis as normas das Directivas.

Como se poderá constatar infra, embora as partes contratantes gozem de uma certa liberdade de esco-

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lha ao abrigo das Directivas, estes diplomas impõem, ao contrário do disposto na Convenção de Roma, limitações materiais a essa liberdade. Com efeito, o âmbito da liberdade de escolha dependerá do tipo de riscos envolvidos, ao mesmo tempo que as normas das Directivas que permitem determinar a lei aplicável na falta de escolha são também diferentes das que podemos encontrar na Convenção Roma.

O regulamento Roma I

As normas de conflitos aplicáveis ao contrato de seguro constantes do Regulamento Roma I foram objecto de alterações materiais no decurso do (longo) processo de discussão e elaboração do Regulamento.

O documento inicial de trabalho, datado de 2005, que delineava os termos essenciais do futuro diploma comunitário, contemplava a introdução de um inovador sistema de conflitos de leis aplicável ao contrato de seguro que acabava por se distanciar materialmente das normas contidas nas Directivas.

Caso o Regulamento Roma I tivesse implementado estas normas de conflitos de leis, teríamos assistido a uma reforma radical do sistema então em vigor. Contudo, o teor destas normas não partilhavam de uma opinião favorável unânime, sobretudo devido às restrições propostas na liberdade concedida às partes contratantes de escolha da lei aplicável.

Na proposta inicial da Comissão, publicada em Dezembro de 2005, verificou-se uma alteração significativa da orientação seguida até aí nesta matéria. Nesta proposta previa-se simplesmente que o futuro regulamento não deveria prejudicar a aplicação nem a adopção por parte das instituições comunitárias dos actos de direito comunitário derivado que, em matérias específicas, regulem os conflitos de leis em matéria de obrigações contratuais, incluindo, nomeadamente, o disposto nas Directivas.

Ao arrepio da opção avançada na proposta de 2005, o Regulamento Roma I contém uma disposição inovadora no seu Artigo 7.º, que estabelece as normas de conflitos de leis aplicáveis a determinados contratos de seguro. Como se tratará de demonstrar infra, esta norma acaba por reflectir, em termos muito semelhantes, o disposto na Directivas relativamente a esta matéria.

O preceito legal acima mencionado tem como princípio basilar a distinção entre os contratos nos quais o tomador do seguro carece de uma protecção especial e os contratos nos quais não se impõe tal protecção acrescida. Nesta medida, o Artigo 7.º distingue em termos gerais contratos de seguro que cubram riscos de massa, por um lado, e contratos de seguro que cubram grandes riscos10 e contratos de resseguro, por outro.

Nos contratos de seguro que cubram riscos de massa, o Regulamento Roma I visa conferir uma protecção efectiva da posição contratual do tomador do seguro, razão pela qual a liberdade de escolha pelas partes da lei aplicável é a excepção e não a regra. Por outro lado, na falta de escolha, as normas de conflitos de leis favorecem os interesses do tomador do seguro ao apontarem para a lei com a qual o tomador do seguro (e não necessariamente a empresa de seguros) tem uma conexão mais estreita.

Pelo contrário, as partes dos contratos de seguro que cubram grandes riscos e contratos de resseguro podem escolher livremente a lei aplicável. Caso as partes não tenham efectuado qualquer escolha, então, a lei aplicável será, na maioria dos casos, a lei pessoal do (res)segurador, dado que se pressupõe, nestes casos, que o tomador do seguro terá acautelado devidamente os seus próprios interesses no decurso da negociação do contrato.

Em concreto, as regras constantes do Artigo 7.º podem ser resumidas nos seguintes termos:

- Os contratos de resseguro são regulados pelas normas gerais do Regulamento Roma I (o Artigo 7.º, número 1, refere expressa-

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mente que o mesmo não é aplicável a contratos de resseguro);

- Os contratos de seguro que cubram grandes riscos são regulados pelas regras especiais do Artigo...

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