Em Lisboa, entre Espanha e a Índia: a conservatória estrangeira da nação espanhola e as penas de degredo para Goa em finais do século XVIII

AutorLuis Pedroso de Lima Cabral de Oliveira
Páginas41-59
Em Lisboa, entre Espanha e a Índia: a conservatória estrangeira da nação espanhola... 41
RJUAM, n.º 33, 2016-I, pp. 41-59ISSN: 1575-720-X
EM LISBOA, ENTRE ESPANHA E A ÍNDIA: A CONSERVATÓRIA
ESTRANGEIRA DA NAÇÃO ESPANHOLA E AS PENAS DE
DEGREDO PARA GOA EM FINAIS DO SÉCULO XVIII*
L P D L C D O**
Resumo: O propósito deste artigo é analisar os privilégios e imunidades garantidos aos nacionais
espanhóis residentes em Portugal durante o século , tendo em especial atenção a intervenção
da Conservatória da Nação Espanhola e o seu juízo privativo. Em teoria, era impossível punir
nacionais espanhóis com penas de degredo para Goa, a capital do Estado português da Índia. No
entanto, a documentação indicia o contrário. Como tantas vezes sucede, a aplicação do direito
vai mais além do que é prescrito pela lei.
Palavras-chave: nacionais espanhóis em Portugal, Conservatória da Nação Espanhola, privilégios
e imunidades, Goa.
Abstract: The aim of this article is to analyze the privileges and immunities conferred on Spanish
citizens resident in Portugal during the eighteenth century, in particular the intervention of the
Conservatória da Nação Espanhola and its exclusive jurisdiction. Theoretically, it was impossible
to punish Spanish citizens as convicts to Goa, the capital of the Portuguese India. Nevertheless,
documents demonstrate the opposite. As usual, law in books is surpassed by law in action.
Key words: Spanish citizens in Portugal, Conservatória da Nação Espanhola, privileges and
immunities, Goa.
S: I. PALAVRAS INTRODUTÓRIAS; II. LIMITAÇÕES E PRIVILÉGIOS DOS EN-
TRANGEIROS NO PORTUGAL DE FINAIS DO ANTIGO REGIME; 1. Estatuto e tratamento
jurídico; 2. Os privilégios do foro: o caso das conservatórias estrangeiras; 3. O caso particular
da conservatória espanhola; 4. Ponto da situação; III. UM ELEMENTO DE CONFUSÃO: AS
CARTAS DO AHU; IV. UMA CONCLUSÃO REPLETA DE QUESTÕES.
I. PALAVRAS INTRODUTÓRIAS
A descoberta de um pequeno lote de cartas inéditas no Arquivo Histórico Ultramarino,
em Lisboa, proporcionou-me a oportunidade de estudar a ação da conservatória da nação
* Fecha de recepción: 20 de octubre de 2015.
Fecha de aceptación: 26 de marzo de 2015.
** Investigador do CEDIS - Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa; professor na Escola
Superior de Tecnologia e Gestão do Instituto Politécnico de Leiria. Correo electrónico: lcabraldeoliveira@
gmail.com.
LUÍS PEDROSO DE LIMA CABRAL DE OLIVEIRA
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RJUAM, n.º 33, 2016-I, pp. 41-59 ISSN: 1575-720-X
espanhola na capital portuguesa no que diz respeito à aplicação de penas de degredo para
Goa em fi nais do século .
Vários motivos concorreram para o meu interesse pelo assunto. Por um lado, trata-se
de uma matéria ainda relativamente pouco explorada e sobre a qual estou atualmente a
trabalhar; por outro, de uma problemática que espelha a importância do contexto históri-
co-social para uma melhor compreensão do sistema jurídico – o que reforça a convicção de
que o direito vai muito além de um amontoado mais ou menos coerente de leis, doutrina e
jurisprudência. Por fi m, é uma questão que versa a presença de nacionais dos dois Estados
ibéricos na cabeça da antiga Índia portuguesa.
II. LIMITAÇÕES E PRIVILÉGIOS DOS ENTRANGEIROS NO PORTUGAL
DE FINAIS DO ANTIGO REGIME
1. Estatuto e tratamento jurídico
Se vamos concentrar a nossa atenção sobre estrangeiros em fi nais do século 
convém saber como é que a doutrina jurídica portuguesa dos últimos anos do Antigo Re-
gime os defi nia. Recorri a um Diccionario juridico publicado em 1825 –data póstuma à da
morte do seu autor– que em regra constitui um auxiliar importante para os historiadores
do direito português ao darem início a qualquer trabalho de investigação: «Estrangeiro.
Dá-se este nome áquelle, que nascido em terra estranha, reside em hum paiz em que não
se acha naturalisado, ou seja por causa de seus negocios, ou na qualidade de simples via-
jante»1. A esta breve defi nição o autor junta uma nota história relativamente desenvolvida
a fi m de demonstrar os moldes em que, na sua época, e contrariamente ao que acontecera
em períodos anteriores, considerava dever-se ancorar o tratamento jurídico do grupo em
análise2. Condenava os precedentes cita, romano, grego (ateniense e espartano) e aplaudia
com entusiasmo a política de Alexandre o Grande: só se colhiam vantagens em conceder aos
estrangeiros um tratamento jurídico favorável. Essa seria, frisa, aliás a postura entretanto
adotada na Europa, desde logo devido a interesses mercantis e a razões de natureza política:
«Hoje que o Commercio tem ligado todo o Universo, que a politica tem illustrado os seus
1 PEREIRA E SOUSA, J. J. C., Esboço de hum diccionario jurídico, theoretico, e practico, remissivo às
leis compiladas e extravagantes […], t. . Lisboa (Tipografi a Rolandiana), 1825, s/n.
2 «Os antigos Scythas sacrifi cavam, e comião depois os estrangeiros que tinhão a desgraça de entrar na
Schytia. Os Romanos n’outro tempo, segundo diz Cicero, confundião a palavra inimigo, com a de estrangeiro,
peregrinus antea dictus hostis. Ainda que os Gregos fossem devedores a Cadmo, (que era estrangeiro entre
elles) das Sciencias que lhes trouxe do Egypto, nunca pudérão sympatisar com os estrangeiros, ainda os mais
estimaveis. Exprobrárão a Antisthenes, que sua mãi não era natural de Athenas, e a Iphicrates, que a sua era da
Thracia: mas os dois fi losofos lhes respondêrão, que a mãi dos Deoses, tinha vindo da Phrygia, e dos desertos
do monte Ida, e que nem por isso deixava de ser respeitada em toda a terra. O rigor de que se usava em Sparta,
e Athenas, foi huma das principaes causas da pouca duração destas Republicas. Pelo contrario, Alexandre,
nunca se mostrou tão digno do nome de Grande, que quando fez declarar por hum Edicto, que todas as pessoas
de bem erão parentes humas das outras, e que só os malvados se devião tornar estrangeiros». Ibíd.

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