Dispositivos tecnológicos de protecção, informações para a gestão electrónica de direitos e utilizações livres no direito português: um desequilíbrio paradoxal em desfavor dos utilizadores

AutorMaria Victória Rocha
Páginas429-445

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I Noções gerais: dispositivos tecnológicos de protecção, informações para a gestão electrónica de direitos e utilizações livres no direito internacional e no direito português

Os dispositivos tecnológicos de protecção e de informação para a gestão dos direitos de autor e direitos conexos são regulados em Portugal, como nos restantes países da União Europeia, de acordo com os Tratados OMPI 1996 (respectivamente, arts. 11.º e 12.º do Tratado sobre Direito de Autor e arts. 18.º e 19.º do Tratado sobre Interpretações ou Execuções e Fonogramas) e a Directiva 2001/29/CE, de 22 de Maio, relativa à harmonização de determinados aspectos dos direitos de autor e direitos conexos na sociedade da informação (arts. 6.º e 7.º) 1.

De acordo com os Tratados, os dispositivos tecnológicos de protecção só podem ser tutelados se forem eficazes, utilizados por autores, artistas intérpretes, executantes ou produtores de fonogramas, no exercício dos direitos de autor ou direitos conexos previstos nos Tratados ou na Convenção de Berna e restringirem actos não autorizados pelos titulares dos direitos em causa ou não permitidos por lei.

Quanto aos dispositivos tecnológicos de protecção, aparentemente, a Directiva foi mais longe do que os Tratados OMPI 1996. Não se limitou a proibir actos de neutralização dos dispositivos tecnológicos, mas também a abranger os actos preparatórios dessa neutralização, como fabrico e venda, aluguer, publicidade para efeitos de venda ou aluguer ou posse para fins comerciais desses produtos 2. A tutela é extensiva ao fabricante da base de dados, não abrangido

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nos Tratados OMPI 1996. Ainda, é admitida a protecção dos dispositivos tecnológicos de protecção contra formas de utilização livres de acordo como Direito de Autor e Direitos conexos, não consentidas pelos autores, titulares de direitos de autor ou titulares de direitos conexos 3.

Com a transposição da Directiva, os dispositivos tecnológicos de protecção e as medidas para a informação e gestão de direitos passam a ser previstos no Código do Direito de Autor e Direitos Conexos (doravante designado por CDADC), no Título VI, sob a epígrafe «Protecção das medidas de carácter tecnológico e das informações para a gestão electrónica de direitos», artigos 217.º a 228.º.

Nos termos do artigo 217.º, núm. 1 CDADC, é assegurada a protecção jurídica prevista no CDADC, para os autores e titulares de direitos conexos, bem como a protecção assegurada pelo direito sui generis ao fabricante da base de dados (prevista no D.L. 122/2000, de 4 de Julho) 4, excepcionados os programas de computador, contra a neutralização de qualquer medida de carácter tecnológico eficaz. Para que as medidas sejam eficazes, basta que permitam algum grau de controlo da utilização dos bens protegidos, não é necessário que impeçam o acesso aos bens em causa.

Os Tratados OMPI de 1996 e a Directiva não indicam directamente quem são os titulares da protecção. Embora o artigo 8.º, núm. 2 da Directiva indirectamente refira «os titulares dos direitos cujos interesses sejam afectados por uma violação», tal não implica que outros sujeitos não possam estar abrangidos. O

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CDADC resolveu a questão no núm. 1 do artigo 217.º, abrangendo os autores, os titulares de direitos de autor, os titulares de direitos conexos e o fabricante da base de dados protegida pelo direito sui generis, exceptuados os programas de computador, por terem legislação própria 5.

De acordo com o núm. 2, as «medidas de carácter tecnológico» compreendem toda a técnica, dispositivo ou componente que, no decurso do seu funcionamento normal, se destinem a impedir ou restringir actos relativos a obras, prestações e produções protegidas, que não sejam autorizadas pelo titular dos direitos de propriedade intelectual, excluídos os protocolos, formatos, algoritmos e métodos de criptografia, de codificação ou de transformação 6.

Nos termos do núm. 4, a aplicação destas medidas de controlo de acesso é voluntária e opcional para o detentor de direitos de reprodução da obra, enquanto tal seja expressamente autorizado pelo criador intelectual. Esta disposição implica que a autorização do criador intelectual seja essencial para a lícita introdução de medidas tecnológicas de restrição do acesso à obra. No entanto, a decisão sobre a sua utilização compete aos titulares dos direitos de distribuição, não podendo o autor, que haja permitido essa distribuição, impor a implementação de tais medidas. 7 Ao exigir autorização expressa, o artigo 217.º, núm. 4, vai além do imposto pela Directiva 8. No entanto, uma vez que o CDADC já reserva ao titular de direitos de autor o poder de escolher livremente os processos e condições de exploração da obra, nos termos do artigo 68.º, núm. 3, e, quanto ao contrato de edição, que o mesmo deve mencionar o núm. De edições, o núm. De exemplares de cada edição e o preço de venda ao público de cada exemplar (art. 86.º, núm. 1 CDADC), a exigência do artigo 217.º, núm. 4 não se afasta do regime anterior.

O artigo 219.º estende a protecção aos actos preparatórios, tais como fabrico, importação, distribuição, venda, aluguer, publicidade para venda ou aluguer ou posse para fins comerciais de produtos ou componentes, bem como à prestação de serviços com a finalidade de neutralização e o artigo 220.º aos acordos, decisões de autoridades, ou de aplicação voluntária pelos titulares de direitos.

O artigo 223.º, núm. 1, alarga a protecção jurídica aos titulares de direitos de autor e de direitos conexos, bem como ao fabricante das bases de dados protegidas pelo direito sui generis, contra as violações dos dispositivos de informação para a gestão electrónica de direitos, com excepção dos programas de computador, entendendo-se como tal, nos termos do núm. 2, toda a informação prestada pelos titulares dos direitos que identifique a obra, a prestação e a produção protegidas, a informação sobre as condições de utilização destes, bem como quaisquer números ou códigos que representem essa informação.

O núm. 3 esclarece que a protecção jurídica incide sobre toda a informação para a gestão dos direitos presente no original ou cópias das obras,

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prestações ou produções protegidas ou, ainda, no âmbito de qualquer comunicação pública.

Nos termos do artigo 228.º, a tutela do CDADC não prejudica outros tipos de tutela, designadamente, a Propriedade Industrial, caracteres tipográficos, acesso condicionado, acesso ao cabo de serviços de radiodifusão, protecção do património nacional, depósito legal, concorrência, concorrência desleal, segredo comercial, segurança, confidencialidade, protecção dos dados pessoais e da vida privada, acesso aos documentos públicos e ao direito dos contratos.

II Razão de ser destas medidas

A protecção das medidas de tecnológicas e dos sistemas de informação e gestão de dados insere-se na questão mais vasta da criminalização dos downloads não autorizados (nomeadamente, através das redes P2P) e das iniciativas para cortar o acesso à Internet (cfr. Lei HADOPI, em França 9 e Lei SINDE, em Espanha 10, projectos PIPA 11 e SOPA 12 nos EUA, e Tratado ACTA 13).

A ideia de base é a de que as redes internacionais de comunicações electrónicas e a digitalização implicaram o acesso fácil do público em geral à informação, máxime, que circula na Internet, e também aos bens culturais protegidos pelo Direito de Autor e pelos Direitos Conexos. No entanto, este acesso maciço implica um enorme risco de violação à escala mundial das obras, prestações ou informação protegidas, nomeadamente, dado o fácil acesso a tais bens e à realização de cópias idênticas aos originais. Aos riscos tecnológicos pode-se responder com a própria tecnologia (na frase conhecida de Charles Clark: the answer to the machine is the machine) 14, desde que sancionada pela lei. Daí as tecnologias destinadas a impedir e a controlar o acesso aos utilizadores não autorizados. Mas, a tecnologia só por si não é suficiente, uma vez que é sempre possível criar novas tecnologias destinadas a neutralizar as já existentes. Impõese a intervenção do sistema jurídico, para sancionar a neutralização dos dispositivos tecnológicos e dos sistemas de informação e gestão de dados 15.

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O problema surge quando estas sanções impostas pelo Direito vão além do desejável, criando uma protecção hipertrofiada que coloca em causa os direitos dos legítimos utilizadores das obras prestações e produtos protegidos. Cria-se, então, um paradoxo na própria Sociedade da Informação: uma protecção exces-siva injustificada dos titulares direitos que asfixia a circulação da informação, prejudicando os utilizadores e, indirectamente, a sociedade em geral, condenando-os à info-exclusão, numa época em que praticamente toda a informação relevante passa por meios digitais, em particular pela Internet.

Os titulares de direitos de autor e direitos conexos nunca tiveram o direito de controlar o uso privado, há limites ao direito de autor e direitos conexos que sempre foram impostos e obras e prestações que não são protegidas, por não satisfazerem os requisitos de protecção ou por os direitos de exploração já terem caído no domínio público.

Os dispositivos tecnológicos e os sistemas de gestão e informação, aplicados indiscriminadamente, fazem com que se corra o risco sério, paradoxal e irónico, de a Sociedade da Informação se transformar numa sociedade pay-per-view, em que o acesso à informação, às ideias e bens culturais tradicionalmente livres na era analógica, têm que ser pagos, numa época em que a Internet, meio, por excelência, de comunicação...

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