Direito de integridade e genuinidade da obra de arquitectura no direito português

AutorMaria Victória Rocha
Cargo del AutorProfessora Auxiliar da Escola de Direito do Porto da Universidade Católica Portuguesa
Páginas427-438

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I A obra de arquitectura enquanto obra complexa

As obras de arquitectura são complexas, uma vez que se expressam em duas e três dimensões. Confluem na arquitectura arte, técnica, e funcionalidade, para além de uma série de constrangimentos, nomeadamente de natureza legal e administrativa, ou que têm que ver com a localização da obra:.

Numa primeira fase, a obra expressa-se em projectos, planos, desenhos, ou seja, expressa-se a duas dimensões; seguem-se as maquetas, que se traduzem em modelos plásticos em tamanho reduzido da construção. Por fim, todas estas fases confluem para o edifício ou outras estruturas funcionais, expressos em três dimensões

A obra de arquitectura analisa-se numa obra complexa, efectuada em diversas fases, que poderíamos sintetizar em duas: uma em que é projecto e, portanto, em duas dimensões (ressalvadas as maquetas) e outra quando é obra acabada (o edifício, entendido o termo em sentido amplo). A construção é o objectivo final da obra, mas isso não significa que o Direito de Autor não tenha em conta todas as fases prévias.

Todas as fases desta obra complexa são susceptíveis de protecção. A obra de arquitectura é composta tanto pelo projecto do edifício, como pelo edifício em si, enquanto bem imaterial, pelo que se devem incluir na protecção pelo Direito de Autor, desde que os requisitos de protecção se satisfaçam, tanto os esboços, desenhos, projectos, maquetas e da obra arquitectónica, como a própria obra construída, enquanto bem imaterial. Todos as fases parcelares podem ser elas próprias obras, desde que satisfeitos os requisitos de protecção. Qualquer outra solução seria irrazoável.

Se apenas se protegessem os planos poderíamos chegar a situações deste tipo: um terceiro utilizava os planos de um edifício não construído e com base neles construiria uma obra, que não seria protegida pelo Direito de Autor; caso se construísse uma obra copiando outra já construída, também não haveria violação do Direito de Autor. Apenas haveria violação do Direito de Autor quando os planos do mesmo edifício fossem copiados por um terceiro e explorados economicamente, construída ou não a obra.

Se apenas se protegesse a construção, chegaríamos a soluções igualmente irrazoáveis: os planos de um edifício não construído seriam apropriados por um terceiro e com base neles construiria a obra, sem qualquer violação do Direito de Autor. Apenas haveria infracção ao Direito de Autor no caso de cópia de edifício já construído.

A falta de razoabilidade de qualquer destas soluções implica que só faça sentido uma protecção da obra arquitectónica que abranja a todas as fases da mesma, em duas ou três dimensões.

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Com o mesmo entendimento, refere Oliveira Ascensão que nenhuma distinção se poderia fazer entre a protecção da obra e a protecção do projecto. Se se protege a obra de arquitectura, protege-se forçosamente o projecto que a exterioriza2.

O legislador português não deixou, sequer, margem para dúvidas quanto à bondade da solução. No artigo 2.º, núm. 1, CDADC, onde se encontra uma cláusula geral seguida de uma enumeração exemplificativa das obras protegidas, são referidas expressamente na alínea g) as obras de desenho, tapeçaria, pintura, escultura, cerâmica, azulejo, gravura, litografia e arquitectura" e na alínea l) do mesmo artigo os "projectos, esboços e obras plásticas respeitantes à arquitectura, ao urbanismo, à geografia ou às outras ciências.

A divisão em duas alíneas diferentes é uma clara demonstração da protec-ção, quer da construção, alínea g), quer dos planos, alínea l).

O CDADC confirma uma tendência precursora, quando comparada com outras legislações, e tradicional da nossa legislação nesta matéria, uma vez que já eram referidas as obras de arquitectura na Lei de 18 de Julho de 1851 e, posteriormente, no Código Civil de 1867, no Decreto 13.725, de 3 de Junho de 1927, e no Código do Direito de Autor de 1966. Portanto, no nosso Direito de Autor, como na generalidade das legislações estrangeiras3, uma obra de arquitectura é susceptível de protecção em todas as suas fases, desde os planos até à construção tridimensional, desde que em cada uma dessas fases se satisfaçam os requisitos de protecção. Mais, cada uma dessas fases pode ser autonomizada e explorada como obra. Inclusive, na obra arquitectónica moderna e contemporânea atribui-se cada vez mais importância à concepção em detrimento da execução4.

A obra de arquitectura só poderá ser protegida se, e na medida em que, a técnica e as imposições legais, ou outras, deixem algum espaço de liberdade criativa ao autor.

II O direito moral de integridade e de genuinidade da obra (art. 56º. núm. 1 cdadc)

O capítulo VI do Código ocupa-se dos denominados direitos morais, genericamente já referidos no artigo 9.º, entre os quais consta o direito à integridade ou genuinidade da obra. A regra geral, a este respeito, consta do artigo 56.º, núm. 1, segundo o qual: Independentemente dos direitos de carácter patrimonial e ainda que os tenha alienado ou onerado, o autor goza durante toda a vida do direito de reivindicar a paternidade da obra e de assegurar a genuinidade

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e integridade desta, opondo-se à sua destruição, a toda e qualquer mutilação, deformação ou outra modificação da mesma e, de um modo geral, a todo e qualquer acto que a desvirtue e possa afectar a honra e reputação do autor. Nos termos do núm. 2, o direito é inalienável, irrenunciável e imprescritível, perpetuando-se após a morte do autor, mesmo depois de a obra ter caído no domínio público

A interpretação do artigo 56.º, núm. 1 tem dado origem a posições bastantes diversas na doutrina, por já ser problemática a sua redacção na Convenção de Berna. Deixa claro, todavia, que, do ponto de vista do direito moral de autor não são proibidas todos os actos que afectem a integridade e genuinidade da obra, mas apenas os actos dos quais resulte que a obra seja desvirtuada e, nessa medida, possam afectar a honra e reputação do autor5. Mesmo na hipótese regra, no entanto, embora o direito à genuinidade e integridade seja inalienável e irrenunciável, fica na disponibilidade do autor convencionar alguma limitação aos direitos morais. A obra pode ser modificada desde que haja o consentimento do autor, criador intelectual.

Embora a letra da norma não seja linear, consideramos que, neste contexto, a possibilidade de serem afectadas a honra e reputação do autor se deve considerar aferida à obra e não nos termos gerais do Código Civil. Só assim faz sentido que tal hipótese esteja incluída entre as normas relativas aos direitos de autor. Ou seja, há uma diferença ente os direitos de personalidade do autor, traduzidos no direito à honra e reputação, e os direitos morais de autor, que passam necessariamente pelo acto que afecte a obra. Embora próximos, estão em planos diversos 6.

O autor não pode invocar o direito à integridade e genuinidade de obra para aquém deste limiar ético previsto no artigo 56.º, núm. 1 CDADC. Dito de outro modo, não se pode opor a toda e qualquer modificação da obra que a não desvirtue e/ou não afecte a sua honra e reputação, invocando para tanto o direito moral à integridade ou genuinidade. Como afirma Oliveira Ascensão: "A motivação do autor não é irrelevante. A lei quer evitar oposições conduzidas pelo autor unicamente com o fito de extorquir dos utentes um pagamento suplementar, e evita-o pelo estabelecimento de um critério ético, destinado a excluir todo o arbítrio" 7.

III Restrições estritas no âmbito da obra de arquitectura resultantes da tensão entre os interesses do arquitecto e do proprietário do suporte (art. 60º. cdadc)

Como nas obras plásticas em geral, na obra de arquitectura enquanto edifício, há uma fusão entre o corpus misticum e o corpus mechanicum. A situação

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agrava-se porque na obra de arquitectura há o aspecto fundamental da sua funcionalidade, estamos perante uma obra utilitária por excelência. Há que ter em conta, para além dos aspectos de direito de autor, ou seja, a obra como criação intelectual, outros factores que lhe são alheios, como a localização, as questões de urbanismo e engenharia, os materiais utilizados, a mão-de-obra, o desgaste, a evolução técnica, etc. Há sempre uma tensão entre os direitos de autor do arquitecto e os direitos reais do proprietário do suporte. Em especial, a funcionalidade da obra, o seu carácter utilitário, conduz a que se tenha de considerar de forma mais restrita o direito moral de integridade e genuinidade8.

O problema central, relativamente a este direito moral resulta do conflito de interesses, na tensão permanente entre o dono da obra e o arquitecto e da solução encontrada no Direito Português.

A particular questão do direito à modificação e destruição da obra de arquitectura traduz um dos aspectos do mais vasto direito à integridade e genuinidade.

Por um lado, é legítimo que o proprietário do suporte em que a obra se plasma, ou seja, da construção, pretenda introduzir nela modificações, tanto mais que é uma obra que se destina a perdurar indefinidamente e a ser por ele usada. Se o proprietário pretende a construção, não apenas por razões artísticas, mas essencialmente para um uso profissional, comercial, habitacional ou outro de carácter utilitário, é legítimo e razoável acautelar o seu interesse no tocante às eventuais alterações ou modificações que pretenda introduzir, ou mesmo a destruição da obra.

Essas modificações podem-se tornar necessárias, ou ser queridas, tanto na fase de construção como depois de o edifício estar...

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